Custo Lula
Sabem qual foi a inflação acumulada no Brasil no período de 1984 a 1994, ou seja, nos dez anos anteriores à introdução do real? Quase não dá para ler: 200.819.549.765%! Considerem agora outro período de dez anos (2002/2012), quando o sistema macroeconômico estava consolidado: inflação bem mais civilizada de 88%.Foi uma mudança da água para o vinho – e para vinho bom.
Acontece que há países bebendo coisa melhor. Naqueles mesmos dez anos do início deste século, a inflação na Alemanha foi de 18%; nos Estados Unidos, ficou pouco abaixo de 30%; na China, pouco acima. Neste momento, desde a saída da crise global de 2008/2009, o Brasil tem estado preso a uma armadilha difícil de escapar: a combinação de baixo crescimento com inflação elevada. Uma armadilha brasileira, pois os demais emergentes importantes crescem mais com preços mais estáveis e em níveis mais baixos.
Eis o tema: o Brasil, comparado com o Brasil do passado, é um sucesso. Comparado com outros, está devendo. Por que isso aconteceu?
Eis a tese: em sua maior parte, as lideranças dominantes – na política, na economia, na sociedade civil – não compreenderam nem as razões do sucesso, nem o esgotamento das reformas introduzidas desde 1994. As que compreenderam simplesmente deixaram para lá, por medo ou por acharem inútil tentar enfrentar a força do então presidente Lula.
Este tem um papel dominante em duas fases. Na primeira, seguiu a cartilha ortodoxa e contribuiu para a consolidação do modelo macroeconômico. Na segunda, encaminhou o país para a armadilha em que se encontra hoje. Esse é o chamado custo Lula.
Vale destacar as principais reformas desde o real. Os primeiros quatro anos foram, digamos assim, de aprendizado e tentativa de emplacar uma moeda razoavelmente confiável. A valorização do real diante do dólar jogou papel essencial na estabilização.
Por necessidade, as grandes reformas começaram depois do colapso do regime cambial, em janeiro de 1999. Como outros países emergentes que também haviam passado por crises externas, o Brasil de Fernando Henrique Cardoso (FHC) mudou.
Na avaliação macro, houve regime de metas de inflação com Banco Central independente (1999); responsabilidade fiscal e superávit primário (leis de 1998/2000); câmbio flutuante (1999); e negociação e acerto da dívida dos estados. Pode-se incluir, aqui, a privatização em setores-chave, como telecomunicações, mineração, siderurgia, transportes, bancos e energia elétrica. Cabem também os dois grandes programas de ajuste do sistema bancário, um para o setor privado, outro para o público, neste último caso com a privatização de bancos estaduais e o salvamento e modernização dos bancos federais.
Também foi crucial a quebra do monopólio da Petrobras (por emenda constitucional de 1997). Isso abriu a exploração de petróleo ao capital privado, nacional e estrangeiro, trouxe os investimentos que resultaram na descoberta do pré-sal.Na área de gestão pública, houve uma reforma administrativa e a criação das agências reguladoras. Mais uma importante reforma no INSS foi a introdução do fator previdenciário, em 1999. Na avaliação micro, para facilitar a vida de pessoas e das empresas, foi criado o Simples. Introduziu-se a regra de suspensão temporária do contrato de trabalho, importante flexibilização da legislação trabalhista.
Ajuda do Céu: China
Vem, então, o primeiro governo Lula, com Antonio Palocci no Ministério da Fazenda. Para surpresa inicial de muitos, ele não apenas manteve a base da política macroeconômica como a aplicou de maneira mais rigorosa, aumentando, por exemplo, o superávit primário. E, mais surpresa ainda, avançou muito na agenda micro. Alguns pontos principais foram: a criação da conta bancária e da poupança simplificadas; a portabilidade do crédito; e o regime do Supersimples.
Mudanças na legislação permitiram a volta e a expansão do financiamento imobiliário e a criação do crédito consignado. Saíram a nova Lei das SAs (2007) e as regras de aperfeiçoamento da área de seguros. Além disso, houve a aprovação, em 2004, da contribuição previdenciária de funcionários púbicos aposentados.
Acrescente–se a isso os programas sociais, da valorização do salário mínimo às transferências de renda (as bolsas), e o quadro se fecha.
Enquanto o Brasil se arrumava, caiu do céu a ajuda do mundo, especialmente da China. Do início deste século até as vésperas da crise financeira global, a economia mundial cresceu a taxas extraordinárias. O comércio global de bens e serviços se expandiu na base inédita de 10% ao ano. Nesse processo, a China consolidou sua posição de segunda potência mundial e correu o planeta em busca de alimentos, minérios e petróleo para saciar sua expansão. Todo o mundo emergente pegou a onda. O Brasil quadruplicou suas exportações, vendendo mais a preços mais altos, recebeu investimentos e tomou financiamentos baratos.
Se a estabilidade macroeconômica permitiu a progressiva queda dos juros reais e a volta do crédito, o boom externo trouxe dólares em abundância. De país tradicionalmente devedor, carente de moeda forte, o Brasil, com enormes reservas, tornou-se credor em dólares. A dívida pública externa simplesmente desapareceu.
Por isso, o Brasil não quebrou na crise de 2009, embora tenha sofrido com a recessão. A estabilidade interna (contas públicas arrumadas, por exemplo) e a abundância de dólares permitiram a reação do governo Lula: aumentar o gasto público, reduzir impostos e expandir o crédito para estimular o consumo privado.
Como funcionou – no último trimestre de 2009 a economia já dava sinais de recuperação para, no ano seguinte, crescer 7,5% –, Lula tomou a receita emergencial como definitiva. E foi assim, pouco a pouco, mas de modo firme, retornando ao velho pensamento da esquerda: o governo faz e desfaz, investe, gasta, financia, orienta e manda no setor privado.
Não eliminou o famoso tripé – ajuste fiscal, metas de inflação e câmbio flutuante –, mas deu início à, digamos, flexibilização. Verificou-se, assim, que a ortodoxia do primeiro mandato não resultava de convicção, mas de medo. Não vinha da virtude, mas era fruto da necessidade de dar satisfação a um mercado desconfiado com o esquerdismo estatizante das propostas econômicas do PT pré-governo.
Esse novo Lula – ou o retorno do velho Lula, como queiram – apareceu triunfante na célebre entrevista concedida ao jornal Valor Econômico, de 17 de setembro de 2009. O mensalão dormia, a economia respirava, já se sabia do pré-sal, o então presidente parecia dizer: agora é do nosso jeito.
Com surpreendente franqueza, por exemplo, contou como mandou a Petrobras aumentar seus programas de investimento, quando a diretoria da estatal disse que pretendia adiar alguns projetos: “Convoquei o Conselho da Petrobras para dizer: ´Olha, este é um momento em que não se pode recuar´. Até no futebol a gente aprende que, quando se está ganhando de 1 x 0 e recua, a gente se ferra”.
Resultado: a diretoria da Petrobras foi para o ataque e incluiu nada menos que quatro refinarias no plano de investimentos, a serem construídas ao mesmo tempo, além de previsões fantásticas para a produção de óleo.
Petrobras, banco Votorantim, Vale…
Apenas três anos depois, já no governo Dilma, a Petrobras informou oficialmente aos investidores que, das quatro, apenas uma refinaria, Abreu e Lima, de Pernambuco, continuava no plano com data para terminar. Todas as metas de produção foram reduzidas. As anteriores eram “irrealistas”, disse a presidente da companhia, Graça Foster. Nada se disse ainda sobre os custos disso tudo para a Petrobras.
Mas, há indícios. A refinaria de Pernambuco, se der tudo certo a partir de agora, funcionará no final de 2014, com quatro anos de atraso em relação à meta, e custará algo próximo de US$ 20 bilhões. Reparem: quando anunciada por Lula, a refinaria custaria US$ 4 bilhões e ficaria pronta em 2010. Como uma empresa como a Petrobras pode cometer um erro de planejamento desse tamanho? Só há uma hipótese: a estatal não tinha projeto algum para isso. Lula decidiu, mandou fazer e a diretoria da estatal improvisou umas plantas. Anunciaram e os presidentes Lula e Chávez, sócio, fizeram várias inaugurações. Mas, a PDVSA venezuelana, dona meio a meio da refinaria, não colocou um tostão no negócio.
Das outras três refinarias, uma, a do Comperj, no Rio, está ainda mais atrasada e também mais cara, sem prazo firme de entrada em operação. Quanto às outras duas, as refinarias do Ceará e do Maranhão, continuam no papel, enquanto governadores cobram as antigas promessas eleitorais, e a direção da estatal procura sócios estrangeiros para viabilizar a coisa.
Tem mais na conta Lula. Naquela mesma entrevista, Lula disse que mandou o Banco do Brasil comprar o banco Votorantim, porque este tinha uma boa carteira de financiamento de carros usados e era preciso incentivar esse setor. O BB comprou, salvou o Votorantim e engoliu prejuízo imediato de mais de R$ 1 bilhão, pois a inadimplência ultrapassou todos os padrões. Ou seja, um péssimo negócio, conforme muita gente alertava. Mas, como o próprio Lula explicou: “Quando fui comprar 50% do Votorantim, tive que me lixar para a especulação”.
E tem a história da Vale. De novo, Lula na entrevista, com franqueza: “Tenho cobrado sistematicamente da Vale a construção de usinas siderúrgicas no país. Todo mundo sabe o que a Vale representa para o Brasil. É uma empresa excepcional, mas não pode se dar ao luxo de exportar apenas minério de ferro”.
Por isso ou por qualquer outra razão, o fato é que a Vale está envolvida em três grandes siderúrgicas, ou três imensos problemas, conforme levantamento feito até no final do ano passado. Em Marabá, no Pará, o projeto da planta Alpa está parado, à espera da construção de um porto e de uma via fluvial, obrigação dos governos federal e estadual, e que está longe de começar. No Espírito Santo, o projeto Ubu também fica no papel enquanto a Vale espera um cada vez mais improvável sócio estrangeiro. Finalmente, o projeto de Pecém, no Ceará, está saindo do papel, mas ao dobro do custo original.
São três histórias exemplares. En passant, reparem na linguagem. Lula diz: “convoquei o conselho da Petrobras”; “quando fui comprar o Votorantim”; “tenho cobrado da Vale”… Muitos governantes, especialmente depois de alguns anos no poder, caem nesse uso revelador da primeira pessoa. Sugerem decisões pessoais, não de governo. Lula, de fato, acumulou enorme poder pessoal, decorrente da popularidade recorde, esta, de sua vez, consequência de uma mistura de ortodoxia econômica, sorte (o crescimento do mundo e da China), programas sociais e populismo à velha moda latino-americana.
Mas, esse Lula da parte final de seu governo – caracterizada pela volta progressiva da mão pesada do governo – não poderia ter prosperado se não houvesse no país uma cultura de base. Havia e há, com duas variantes principais reunidas pelo pragmatismo político de Lula.
Intervencionismo estatal e corrupção
A primeira variante vem da esquerda latino-americana. Trata-se da ideologia do capitalismo de Estado: estatais nos setores-chave da economia, empresas privadas nacionais protegidas e subsidiadas pelo governo, estrangeiras toleradas e convidadas para determinados setores, controles gerais sobre toda a atividade econômica, setor público ampliado, impostos elevados (no caso brasileiro).
Na doutrina, diz-se que esse modelo é necessário para impedir as falhas de mercado e evitar os abusos que seriam resultantes do livre mercado. O objetivo é industrializar o país. Sua base, o nacionalismo e o patriotismo.
Quando interlocutores diziam a Lula que as empresas não planejavam refinarias ou siderúrgicas, porque era muito mais caro produzir no Brasil, o presidente respondia sem vacilar: “Os empresários têm tanta obrigação de ser brasileiros e nacionalistas quanto eu!”.
Daí resulta a política de conteúdo nacional. Em vez de uma nova onda de reformas para reduzir o custo de se produzir no Brasil, prefere-se a regra pelo qual o produto nacional tem preferência do governo e de suas estatais, mesmo sendo mais caro. Empresas nacionais se formam para atender a esse mercado, de modo que se tece uma teia de interesses privados em torno do setor público.
Eis uma versão do capitalismo de Estado, com amplo apoio na sociedade brasileira. Mas, há outra vertente que leva ao mesmo interesse de ampliar o controle estatal sobre a economia: aquela que antigamente se chamava de fisiológica ou clientelista. O propósito, nesse caso, é bem mais simples: tendo posições no governo, o líder partidário adquire poder de nomear os correligionários e participar, pelo lado privado, dos grandes negócios que o Estado gera.
Assim, um quer a Petrobras para desenvolver uma política dita nacionalista, outro, porque aquela imensa companhia é uma possibilidade infinita de nomeações e negócios. Amplie isso para o conjunto do governo e se terá a era Lula: o ex-presidente juntou as duas vertentes em sua base, colocando lado a lado os que estavam ali para aplicar uma política e os que simplesmente foram lá para buscar vantagens pessoais.
É exatamente o mesmo formato do “mensalão”. Uns estavam lá para desviar dinheiro para o partido (a causa), outros, para os próprios bolsos. Muitos militantes da esquerda sincera deixaram o PT e o governo, mas a maioria ficou lá. E a convivência é fatal. Líderes sindicais se viciam tanto nos cargos e vantagens quanto os políticos da velha guarda. Colocar no bolso parte do dinheiro que circula por ali se torna uma tentação para todos.
É verdade que uma parte do PT ainda tenta salvar as aparências. Dizem que se trata de algo como “roubar pelo povo”, que é impossível governar sem a participação dos velhos políticos e suas velhas práticas.
Eis o legado Lula, que continua no governo Dilma: uma mistura de intervencionismo estatal e corrupção. Disso resulta a ineficiência estatal e os bons lucros para certos grupos.
Tomemos como exemplo a Valec, estatal no ramo de ferrovias. Primeiramente, foi apanhada comprando dormente a preço de trilho. Trocaram a diretoria e deixaram a companhia no esquecimento. Depois, foi reconvocada para tocar duas importantes obras, há tempos prometidas em comícios eleitorais. E a Valec, por falhas burocráticas, ficou sem trilhos para colocar nas ferrovias.
Não tem nada demais. No novo modelo de concessões lançado pela presidente Dilma, a Valec terá posição de destaque. Ela vai comprar toda oferta de carga ferroviária e distribuí-la entre as transportadoras. Dizem os técnicos do governo que isso afasta o risco de mercado, ou seja, o risco de uma concessionária construir a ferrovia e não ter carga para transportar. No entanto, introduz o risco governo. Uma única empresa estatal, aquela, vai ser compradora e vendedora de todo o mercado. As duas vertentes se encontram aqui de novo: o controle estatal da atividade econômica e as oportunidades de negócios privados para os próximos do governo.
E continua sendo muito caro produzir aço e trilhos no Brasil. Ou qualquer outra coisa sem os subsídios, a proteção e os outros benefícios do governo. Essa é a causa básica da armadilha do baixo crescimento com inflação elevada.
É preciso nova onda de reformas
O país precisa de uma nova onda de reformas no sentido contrário do caminho introduzido por Lula no seu segundo mandato e até acentuado por Dilma. Precisa de mais privatizações, especialmente na infraestrutura, abertura comercial, competição, menos impostos e menos governo. Mas, isso exige uma mudança na cultura política. Reparem como a oposição não conseguiu ou não quis se opor a essa agenda Lula. Resta a outra possibilidade: a força da necessidade. Pensando bem, o programa econômico do real não tinha amplo apoio nem na base do governo FHC. Mas, enfim, o que se ia fazer com uma inflação acumulada de 200.819.549.765% ?
O sucesso da nova moeda deu base ao programa e reformas que se seguiram. O medo levou Lula a manter o caminho. No que as coisas se acalmaram, voltou o velho Brasil. Qual necessidade levaria a uma nova mudança de rumos?
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