Década Perdida
O ex-ministro das Relações Exteriores, Antonio Patriota, tinha a obrigação funcional de defender a linha oficial de política externa brasileira. Contudo, ele não precisava fabricar um ensaio de ilusionismo e pres- tidigitação para contornar as perguntas difíceis que se tornaram inevitáveis na hora da criação da Aliança do Pacífico. Infelizmente, é esse o sentido do texto que assinou no número 23 de Interesse Nacional.1 Os analistas que apontam a “paralisia” do Mercosul referem-se à inserção do Brasil no comércio mundial; Patriota replica com (frágeis) argumentos sobre o comércio sul-americano. Diante de críticas às opções de política externa adotadas pelo Brasil, Patriota retruca com informações estatísticas impertinentes.
O artigo assinado pelo ex-ministro não men- ciona, nem uma vez, as siglas TPP e TTIP, se- nhas dos mega-acordos de comércio que os EUA articulam com os países da Bacia do Pací- fico e com a União Europeia. No lugar de um urgente debate político sobre o interesse nacional, Patriota oferece um diálogo de surdos. É como se o Itamaraty vivesse em uma bolha im- permeável: o “berço esplêndido” cantado no nosso hino nacional.
O homem que calculava
Fatos são coisas teimosas, mas estatísticas são maleáveis”, ironizou Mark Twain, que sabia fazer humor. Patriota brinca de modo deprimente com as estatísticas. Ele coteja a expansão do co- mércio mundial com a dos intercâmbios intrazo- na do Mercosul no período 2008-2012, como se a comparação tivesse algum significado. Passa ao largo da “coisa teimosa” que realmente interessa: no mesmo período, a participação do Brasil nas exportações globais permaneceu estagnada (em quase insignificante 1,1%), enquanto a do Mer- cosul cresceu 4,5% e a da América do Sul (sem o Brasil) cresceu 10,5%. Também silencia sobre outra “coisa teimosa” extremamente relevante: no mesmo período, a participação da Aliança do Pacífico nas exportações globais cresceu 13%. Dito de outro modo, no intervalo que o ex-mi nistro escolheu, nossos vizinhos sul-americanos ganharam mercados, enquanto o Brasil andava de lado.
“Existem três tipos de mentiras: mentiras, malditas mentiras e estatísticas”, disse certa vez Benjamin Disraeli. Mentir por meio de estatísti- cas é uma velha arte, sempre aperfeiçoada. No seu artigo, Patriota opera no estágio rudimentar dessa arte, recorrendo a truques colegiais, comoo uso de números absolutos no lugar de números relativos e a seleção de escalas temporais esd- rúxulas ou incongruentes entre si. O período 2008-2012 é significativo, pois corresponde ao colapso financeiro global e à lenta recuperação subsequente. Mas, no contexto do artigo, a refe- rência às mais de duas décadas decorridas desde o Tratado de Assunção (1991) é uma aposta ofensiva no confusionismo.
A primeira década do Mercosul coincide com um ciclo econômico global profundamente dis- tinto daquele aberto no início do século XXI. Além disso, o sentido político impresso ao Mer- cosul sofreu forte mudança desde 2003, em fun- ção das estratégias seguidas pelos governos lulis- tas, no Brasil, e kirchneristas, na Argentina. As exportações intrabloco no Mercosul-4 (Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai) multiplicaram-se por 4,3 entre 1990 e 2000, mas apenas por 2,5 entre 2000 e 2010. Em si mesmo, não há nada de muito surpreendente nesta informação, pois o comércio intrabloco expandiu-se a partir de um patamar inicial muito baixo. Contudo, a redução do ritmo de crescimento do comércio intrabloco é uma evidência dos limites do Mercosul para a expansão das exportações do Brasil. É precisa- mente isso que Patriota evita discutir, com a fina- lidade de ocultar a natureza ideológica das op- ções de política externa do Itamaraty e seus im- pactos sobre a economia brasileira.
Patriota escreve como se o Mercosul funcio- nasse, efetivamente, como união aduaneira. Con- tudo, como sabem por experiência prática os em- presários que exportam para a Argentina, o bloco não opera nem mesmo como uma verdadeira área de livre-comércio. Buenos Aires utiliza ci- clicamente uma série de barreiras não tarifárias que chegaram a atingir, nos últimos anos, quase um quarto do total das vendas brasileiras para o país vizinho. Sob pressão argentina, multiplicaram-se as “cotas voluntárias”, que configuram comércio administrado. As licenças de importa
disso, taxas antidumping impostas aleatoriamen- te gravam produtos brasileiros. Entretanto, o problema de fundo nem está no comércio intrazona. O Mercosul é pequeno demais para o Brasil.
Em 2010, o bloco absorvia 40% das exporta- ções paraguaias e entre 25% e 29% das exportações argentinas e uruguaias, mas apenas 11% das exportações brasileiras. Sabia-se perfeita- mente disso na hora do Tratado de Assunção. Por esse motivo, o Mercosul foi constituído so- bre a base do princípio do regionalismo aberto. De um lado, ele cumpriria a função de polo da integração comercial sul-americana. De outro, seria uma ferramenta para alavancar a competi- tividade das empresas brasileiras (e argentinas), capacitando-as a competir no cenário dos inter- câmbios globais. Contudo, o Mercosul original não existe mais: acabou na hora do ingresso da Venezuela chavista.
Diante do então presidente Lula, em 2006, Hugo Chávez deixou clara a política de seu go- verno diante do Mercosul. “O Mercosul, ou o reformamos e fazemos um novo Mercosul ou também se acabará. Não é um instrumento ade- quado para a era em que estamos vivendo. Va- mos enterrar nossos mortos, irmãos.” O “novo Mercosul” distingue-se cada vez mais do bloco original, à medida que incorpora os integrantes sul-americanos da fracassada Aliança Bolivaria- na das Américas (Alba). Remoldado segundo a visão do caudilho, o Mercosul converte-se num diretório político tripartite entre Brasília, Buenos Aires e Caracas. Hoje, o bloco utiliza seletiva- mente a cláusula democrática do Protocolo de Ushuaia, punindo o Paraguai, mas fazendo vistas grossas às violações dos direitos da oposição na Venezuela, e forma um escudo de defesa para as políticas protecionistas da Argentina e da Vene- zuela. É por esse motivo que, ao longo de uma década, o Mercosul não concluiu nenhum acordo comercial significativo, fechando-se atrás de mu- ralhas construídas com o material da ideologia.2
Só Carolina não viu…
O governo e o Itamaraty nunca escolheram a linguagem da clareza para explicar a paralisia do Mercosul no que tange à negocia- ção de acordos comerciais. No lugar de admitir, abertamente, a resistência ideológica dos prin- cipais países do bloco diante do livre-comércio, o ex-ministro Celso Amorim repetiu inces- santemente a justificativa protocolar de que o Brasil prefere o conceito de acordos globais, na moldura da Organização Mundial de Comércio (OMC). Contudo, essa preferência, que é com- partilhada pelos críticos da paralisia do Merco- sul, não tem o condão de mudar a dura reali- dade: a via multilateral está bloqueada desde o colapso da conferência ministerial da OMC de Cancún, em 2003.
Amorim continuou a jogar todas as fichas brasileiras na OMC, apesar das desilusões geradas pelas negociações de Genebra, em 2006, do desolador impasse atingido em Potsdam, em julho do ano seguinte, e de um novo colap- so em Genebra, em 2008, caracterizado acerta- damente pelo representante europeu, Peter Mandelson, como um “fracasso coletivo”. O brasileiro Roberto Azevêdo, que sucedeu Pas- cal Lamy à frente da OMC, revelou um senso mais aguçado de realismo ao desistir dos ousa- dos objetivos originais da Rodada de Doha, procurando um acordo circunscrito à facilitação de comércio.
No seu exercício de prestidigitação vazia, Patriota só menciona a sigla OMC uma vez: a referência à “vitória do Brasil” representada pela escolha de Azevêdo para diretor-geral da organização. Se Amorim, pelo menos, re- conhecia o desafio que o Brasil enfrenta, o sucessor efêmero preferiu transitar em uni- verso paralelo, olhando para outro lado en- quanto a banda passava. O artigo quase ina- creditável que ele assina sugere que a Améri“Quando se considera a composição da pauta de exportações, a relevância do Mercosul desta- ca-se ainda mais: cerca de 90% das exportações brasileiras para os demais países do bloco são de manufaturados. Para a União Europeia, para a China e para os Estados Unidos, os percentuais de manufaturados são de 36%, 5,75% e 50%, respectivamente. A indústria brasileira, desse modo, tem no Mercosul seu mais importante mercado externo. […] Dado igualmente relevan- te, mas de pouca difusão, é que, graças aos acor- dos de liberalização comercial firmados no âmbi- to da Associação Latino-Americana de Integra- ção (Aladi), é possível afirmar que já existe livre-comércio entre o Brasil e praticamente toda a América do Sul.”3
O Tratado de Assunção representou um ga- nho político extraordinário para o Brasil. Entre- tanto, ao lado das razões estratégicas, a criação do Mercosul tinha motivações econômicas niti- damente definidas. O bloco do Cone Sul serviria como etapa preparatória para a inserção da in- dústria brasileira nas novas realidades moldadas pela globalização. Patriota circunda o problema quando exalta o lugar ocupado pela América do Sul como mercado para os manufaturados brasi- leiros. Livre-comércio não é, essencialmente, uma ferramenta para ampliar as exportações na- cionais, mas um motor de inovação sistêmica. A indústria do país precisa ser exposta à competi- ção global para aumentar seus níveis de produti- vidade. Na última década, obedecendo a impul- sos ideológicos evidentes, o governo travou o processo de abertura comercial do país, conde- nando o setor industrial a acomodar-se no ninho confortável do protecionismo. É disso que se fala quando se critica a paralisia do Mercosul.
O chanceler canadense, John Baird, declarou ao jornal Valor Econômico, em novembro passa- do, que seu país está “ansioso” por uma amplia- ção do comércio com o Brasil – mas, realista, também disse que é “difícil, muito difícil” firmarca do Sul é uma alternativa suficiente para a projeção internacional da indústria brasileira. Citemos: um acordo com o Mercosul, “não pelo Brasil”, e sim devido às resistências “de dois ou três paí- ses”. A proposta mexicana de um acordo de livre comércio nunca foi submetida a um exame sério. Não é um acaso que tal proposta não seja men- cionada, nem de passagem, no artigo de Patriota. O motivo é simples: o México faz parte do Acor- do de Livre Comércio da América do Norte (Nafta) e, portanto, está excluído automatica- mente de um horizonte de integração definido no quadro ideológico do antiamericanismo.
O setor industrial brasileiro agora entende aquilo que Patriota finge não entender. Depois de anos consagrados à autoilusão, durante os quais a maior parte do empresariado industrial acoco- rou-se à sombra do protecionismo envergonhado do governo, uma atitude mais realista ganhou corpo. A mudança refletiu-se nas pressões por uma retomada das negociações comerciais com a União Europeia (UE), deflagradas há mais de 12 anos, antes ainda da Rodada de Doha, que dor- mia o sono eterno devotado pelo governo a qual- quer iniciativa associada ao rótulo maldito do li- vre-comércio. Contudo, precisamente nesse caso, evidencia-se que o Mercosul, refundado como diretório político, transformou-se em obs- táculo intransponível para a conclusão de acor- dos comerciais significativos.
“O novo Mercosul está em fase de constru- ção”, declarou meses atrás o chefe de Estado ve- nezuelano, Nicolás Maduro, que ocupava a pre- sidência rotativa do bloco. A “revisão da doutri- na” do Mercosul proclamada por Maduro parece bastante avançada. No final de novembro, os negociadores dos países do bloco reuniram-se em Caracas para formular uma proposta de consenso a ser oferecida à UE. A Venezuela chavista, ainda em processo de adesão, não participava da negociação, mas a Argentina de Cristina Kirchner desempenhou com perfeição o papel reservado a ela. Depois de um atraso exasperante, os representantes argentinos exibiram uma oferta pífia, com apenas cerca de três quartos do valor do comércio com a UE – e que, além disso, não in- cluía posições sobre três das quatro vertentes de um hipotético acordo (compras governamentais, serviços e investimentos). Na prática, Buenos Aires implodia o acordo antes mesmo das nego- ciações substanciais com os europeus.
No “novo Mercosul”, o Brasil dá cobertura ao eixo Argentina-Venezuela às custas de seus próprios interesses e dos intereses dos dois só- cios menores. Antes mesmo da desastrosa reu- nião de Caracas, o uruguaio José Mujica apontou o dedo na direção certa, dizendo que a “política insular” da presidente argentina está “arruinando o Mercosul”. Ignorando o Mercosul, uruguaios e paraguaios participam das negociações, lançadas por Washington em 2012, para um acordo sobre comércio internacional de serviços. Prudente- mente, para escapar à condição de reféns do “novo Mercosul”, os dois ocupam lugares de ob- servadores na Aliança do Pacífico. A peça de fic- ção assinada por Patriota não faz referência a nada disso.
Um país longe demais
A tentativa de Roberto Azevêdo de salvar al- guma coisa dos ousados objetivos originais de Doha coloriu com tons dramáticos a confe- rência ministerial de Bali, em dezembro passa- do. Mas, muito antes de Bali, constatara-se que a OMC sobrevive apenas como ente vestigial: um tribunal eficaz de solução de controvérsias.
A crise crônica das negociações multilaterais no âmbito da OMC provocou uma corrida rumo aos tratados de livre-comércio (TLCs). A Aliança do Pacífico, ao contrário do Mercosul, não impe- de a conclusão de acordos individuais. Os quatro países do bloco (México, Chile, Peru e Colôm- bia) têm TLCs com os EUA e já firmaram acor- dos com a UE. O Canadá assinou um acordo abrangente com a UE em outubro de 2013. Heinz Hetmeier, chefe do setor comercial do Ministério da Economia da Alemanha, declarou, recente- mente, que, em princípio, o Mercosul ocuparia lugar destacado na agenda de prioridades da UE, “mas somos confrontados com uma postura hesi- tante nas negociações por parte do Mercosul”.
Os arautos do “novo Mercosul”, na Venezue- la e na Argentina, são críticos ferozes dos TLCs. Segundo o argumento que esgrimem, tais acor- dos são componentes de uma estratégia imperia- lista e recolonizadora. De um lado, eles estimula- riam as exportações de manufaturados e de servi- ços das economias centrais para as periféricas; de outro, provocariam uma especialização e uma simplificação das economias periféricas, que re- troagiriam para o patamar de exportadores de produtos básicos. A hipótese, propalada como verdade insofismável, não conta com o respaldo de provas, nem mesmo de indícios fortes. Po- rém, existem provas seguras de que, sem firmar nenhum TLC relevante, o Brasil sofre desse mal. O Brasil ainda não é uma “fazenda modelo”, mas ruma nessa direção. A pujança do agronegó- cio salvou o país de um desastre histórico, inco- mensurável, na conta-corrente do balanço de pa- gamentos. De acordo com dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), nossas ex- portações de produtos básicos representavam 23,4% do total em 2000, mas atingiram 29,9% em 2006 e 47,8% em 2012. Enquanto isso, a par- cela de exportações de semimanufaturados redu- ziu-se de 15,9% para 13,9% e a de manufatura- dos, de 60,7% para 38,3%. Essas informações, ignoradas por Patriota, ajudam a entender a im- portância da América do Sul na absorção das exportações industriais brasileiras, que cresce à medida que se acentua a tendência de “primarização” de nossa pauta de exportações.
Patriota não chega a endossar explicitamente a crítica aos TLCs formulada por kirchneristas e chavistas, mas flerta com ela ao oferecer uma in- terpretação impertinente de um estudo publicado pela Cepal.4 O estudo baseia-se em pressupostos políticos e econômicos discutíveis, mas contém uma análise sólida das tendências de comércio ex- terior de países latino-americanos que firmaram TLCs nas duas últimas décadas. Nas conclusões, os autores assinalam que, de modo geral, os TLCs não lograram diversificar as direções de exporta- ções ou as pautas de exportações dos países signa- tários. O ex-ministro, porém, escreve que, com base no estudo, “pode-se afirmar que a conclusão de acordos de livre-comércio não implica, neces- sariamente, incremento das exportações dos paí- ses signatários”.5 A curiosa interpretação de Pa- triota, além de trair uma primária visão “mercanti- lista” dos objetivos de política de comércio exte- rior, procura impugnar os TLCs com argumentos falsos para salvar a face da diplomacia brasileira. É preciso ler atentamente antes de citar. Os autores do estudo da Cepal não impugnam os tra- tados de livre-comércio, como sugere um Patrio- ta distraído, mas argumentam razoavelmente que eles constituem apenas um componente de “uma estratégia de exportação integral”. Depois de concluir que, isoladamente, eles não têm o poder de diversificar as exportações, escrevem: “Isso não significa que os TLCs não sejam necessários. É preciso reconhecer que tais acordos oferecem numerosos benefícios – mas não esse, em parti- cular, ou ao menos não sem o respaldo de uma estratégia de exportação integral. Um TLC por si mesmo não modificará a estrutura produtiva deuma economia.”6
A década de fracassos sucessivos da OMC abriu espaço para a nova política de mega-acor- dos comerciais deflagrada por Barack Obama – a Parceria Transatlântica de Comércio e Investi- mentos (TTIP), entre EUA e UE, e a Parceria Transpacífica (TTP), entre EUA e os países da região Ásia/Pacífico, com exclusão da China. Na negociação dos mega-acordos, os temas tradicio- nais de comércio, especialmente tarifas e subsí- dios agrícolas, são suplantados pela articulação de regras para o comércio de serviços, investi- mentos, compras governamentais, propriedade intelectual e meio ambiente. Para além dos acor- dos comerciais, a nova política americana tende a deslocar o fórum de produção de regras, esvaziando o sistema multilateral da OMC. A tendência é prejudicial para o Brasil e, em geral para os países em desenvolvimento. Contudo, ignorá-la seria o mais grave dos erros.
A década de fracassos da OMC coincide com a década perdida de política de comércio do Brasil. A aposta exclusiva no sistema multi- lateral, somada à reinvenção “bolivariana” do Mercosul, conduziram-nos a uma difícil encru- zilhada. Se o TTIP for concluído, os europeus aumentarão suas vendas de manufaturados para os EUA, invadindo mercados do Brasil, e os EUA incrementarão suas exportações agrícolas para a UE, prejudicando os exportadores brasi- leiros. Já a conclusão do TTP tem o potencial de aprofundar o intercâmbio dos EUA e dos países asiáticos com a Aliança do Pacífico, estreitando os mercados sul-americanos para os produtos industriais brasileiros.
Insulado nas suas certezas, Patriota faz pouco caso da Aliança do Pacífico. “Os compromissos anunciados em Cali sobre a eliminação de tari- fas”, escreve o ex-ministro, “representam pouco em relação ao que já fizeram os países da Aliança do Pacífico na qualidade de membros da Aladi”.7 É uma forma de cegueira interessada. A relevân- cia da Aliança do Pacífico não está na redução ou na eliminação de tarifas entre seus integrantes, mas na definição de uma política agressiva de in- serção nos fluxos em mutação do comércio glo- bal. Afastando-se do rumo do Mercosul, os paí- ses da Aliança do Pacífico evitam reproduzir nossos erros estratégicos. Hoje, por força dos TLCs, eles estabelecem pontes com o novo siste- ma de comércio, cujo esboço se desenha com os mega-acordos transcontinentais.
O Brasil vai se transformando num país longe demais – e não faltaram avisos a respeito. Em uma entrevista publicada pelo jornal Valor Econômico em agosto de 2010, quando deixava a assessoria da missão brasileira em Genebra, a economista Vera Thorstensen alertou para o fato de que “a dinâmica atual do comércio internacional não está mais na OMC, e sim nos acordos regionais” – e, por isso, “ficar fora dos grandes blocos poderá afetar, sem dú- vida, as atividades internacionais das empresas brasi- leiras”. Thorstensen concluiu o raciocínio com a re- comendação que tantos outros fizeram, sem sucesso: “Se a dinâmica é fazer acordos regionais, o Brasil deveria estar negociando não só no eixo Sul-Sul, mas no eixo Norte-Sul”. O problema é que a expres- são “eixo Norte-Sul” converteu-se em uma abomi- nação doutrinária para a política externa brasileira.
O artigo de Patriota evidencia a corrosão do interesse nacional pelo ácido da ideologia. Con- tudo, felizmente, e com muito atraso, incertos sinais de mudança começaram a emergir no final de 2013, durante as articulações do Mercosul em busca de uma proposta consensual a ser apresen- tada na mesa de negociações com a UE. Na oca- sião, os exercícios argentinos de postergação, seguidos por uma oferta inacreditavelmente va- zia, crisparam o ambiente. Então, contrariando a retórica pública oficial, que continuou a enfatizar a busca pela unidade do Mercosul, fontes do go- verno e do Itamaraty deixaram escorrer para a imprensa uma disposição de avançar sem os ar- gentinos, ao lado do Uruguai e do Paraguai. São os primeiros indícios de uma ruptura brasileira com o “novo Mercosul” de Maduro e Kirchner. Terá chegado o momento de Luiz Alberto Fi- gueiredo reescrever o artigo de Patriota?
- O artigo de Patriota, intitulado “O Mercosul e a Integração Regional”, foi escrito antes da exoneração do ministro, provocada pela crise aberta com a transferência do senador boliviano Roger Pinto Molina para o Brasil, em agosto de 2013. O Itamaraty informou aos editores de Interesse Nacional que o artigo continua a expressar a posição oficial brasileira.
- O Mercosul concluiu apenas três acordos comerciais, de pouca relevância, com Israel, Egito e a Autoridade Palestina.
- PATRIOTA, Antonio de Aguiar. “O Mercosul e a integração regional”. Interesse Nacional, Ano 6, N. 23, outubro-dezembro 2013, p. 67.
- DINGEMANS, Alfonso & ROSS, César. “Los acuerdos de libre comercio en América Latina desde 1990. Uma evaluación de la diversificación de exportaciones”.
- Revista Cepal, n. 108, dezembro 2012.
- PATRIOTA, Antonio de Aguiar. Op. cit., p. 70.
- DINGEMANS, Alfonso & ROSS, César. Op. cit., p. 48.
- PATRIOTA, Antonio de Aguiar. Op. cit., p. 70.
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