01 agosto 2014

Déficit de Representação ou Falta de Consensos Mínimos: o que Paralisa as Políticas?

Junho de 2013 parece ter inaugurado um no vo cenário na história recente da democra cia brasileira. Manifestações populares pas-saram a ter presença regular na cena política. Ainda que as grandes manifestações de junho tenham sido substituídas por uma miríade de demonstrações de pequena escala, o protesto público assumiu formato bem mais generalizado do que até então.

Junho de 2013 parece ter inaugurado um no vo cenário na história recente da democra cia brasileira. Manifestações populares pas-saram a ter presença regular na cena política. Ainda que as grandes manifestações de junho tenham sido substituídas por uma miríade de demonstrações de pequena escala, o protesto público assumiu formato bem mais generalizado do que até então. A novidade pouco diz respeito à existência de manifestações, posto que a história do Brasil registra contextos semelhantes, marcados por ampla e prolongada mobilização. A perplexidade refere-se fundamentalmente ao fato de que a continuidade das manifestações – acompanhada de eventuais explosões de violência – ocorre em um contexto de sustentada queda nos níveis de pobreza, de redução das desigualdades de renda e de pleno emprego. Duas interpretações são preponderantes no esforço que a ciência social brasileira tem feito para explicar esta novidade. Uma delas afirma que esta é a expressão de uma dissociação entre os anseios da sociedade brasileira e as nossas instituições políticas. Segundo esta interpretação, nosso sistema eleitoral resulta na seleção dos piores candidatos. A fragmentação partidária obriga os presidentes a montar coalizões eleitorais e governamentais orientadas a produzir maiorias parlamentares, porém desprovidas de conteúdo programático. Ainda que obtenham sucesso na aprovação de suas iniciativas parlamentares, os presidentes são obrigados a negociar o conteúdo das iniciativas legislativas, para atender a interesses particularistas de sua base parlamentar. Este mecanismo resultaria que os verdadeiros anseios da população não seriam objeto de interesse legislativo. Deste diagnóstico decorre um prognóstico que vaticina ser a reforma política uma condição necessária – ainda que não suficiente – para que aquela dissociação, que está na origem dos demais males, seja superada. Uma segunda interpretação sustenta que a onda de manifestações inauguradas em junho passado seria expressão de uma dissociação entre o Partido dos Trabalhadores (PT) e os movimentos populares. Segundo esta visão, desde sua fundação, o PT foi o principal – ainda que não exclusivo – canal de vocalização das demandas dos grupos organizados, dos sindicatos aos movimentos populares, passando pelas organiza- ções corporativas. Nesta função, selecionava as demandas que entrariam para a agenda pública, liderava a forma de expressão destas insatisfa- ções e negociava seu encaminhamento. Portanto, desempenhava um papel de canalização das demandas com potencial de visibilidade pública. Entretanto, em seu novo papel de partido de sustentação do governo, o Partido dos Trabalhadores afastou-se destes movimentos e, portanto, deixou de desempenhar aquele papel. Na ausência de um partido que filtre e canalize insatisfa- ções e demandas, sua vocalização assumiu formato desorganizado, caótico e até mesmo potencialmente explosivo. Para os partidários desta interpretação, as próximas eleições seriam a ocasião em que o Partido colherá os frutos eleitorais desta escolha, a ser evidenciada pelo perfil do eleitor que permanecerá fiel ao PT. Estas interpretações partilham um pressuposto comum: o diagnóstico de que as manifesta- ções que vimos assistindo há cerca de um ano têm como origem os resultados da produção parlamentar. Isto é, as demonstrações populares são expressão de um déficit de representação, cuja origem estaria em uma problemática relação dos cidadãos com o Parlamento. Evidência deste dé- ficit seria o fato de que parte expressiva daqueles que lideram as manifestações recusam na cena pública ter relação com os partidos políticos. Logo, as insatisfações teriam sua origem na incapacidade das instituições parlamentares e de governo converterem em políticas públicas os legítimos anseios da população. Argumento neste artigo que estas interpreta- ções minimizam os avanços obtidos em áreas de política que estão no centro das preocupações dos eleitores, tais como educação, saúde e renda. Logo, se déficit de representação existe, ele não impediu que políticas fossem aprovadas, implantadas e produzissem resultados efetivos. Por outro lado, o insucesso das políticas de segurança pública e de infraestrutura urbana torna altamente desgastante a vida cotidiana nas cidades brasileiras. A crescente visibilidade das insatisfações é, em parte, explicada pelos ganhos em renda e escolaridade, que resultaram em ampliação expressiva do número absoluto de cidadãos com recursos para atuar politicamente, o que produziu uma elevação dos níveis de exigência e intolerância com a qualidade dos serviços públicos. Entretanto, a diferença entre as políticas melhor sucedidas e aquelas cujos resultados são bem menos efetivos não pode ser explicada por um déficit de representa- ção. Estas últimas foram objeto de sucessivas iniciativas parlamentares e de governo, o que revela sucesso em entrar para a agenda. A diferença de trajetórias é melhor explicada pelo grau de divergência entre os principais grupos que atuam sobre os formuladores de políticas – seja no executivo, seja no parlamento. As políticas melhor sucedidas são aquelas em que os principais grupos organizados foram capazes de produzir consensos mínimos em torno de um paradigma de estratégias de intervenção. A ausência de coesão entre os atores sociais em torno de pilares básicos de atuação torna muito menos provável a adoção de políticas que contem com as condições necessárias à implantação sustentada de medidas por longo período de tempo. Melhoraram as condições sociais no Brasil? Para saber se as demandas da sociedade bra sileira têm sido atendidas ou não, temos que – estabelecer alguma medida do que, afinal, sejam estas demandas. Além disto, ensinam os manuais que, se queremos examinar mudanças ao longo de um período, temos que adotar a mesma métrica para todo o período. A orienta- ção não é, sob hipótese alguma, inconsequente, pois nossas conclusões são absolutamente dependentes do que selecionamos para observar. Parte expressiva das interpretações que concluem que pouco ou nada mudou no Brasil nos últimos anos é derivada da adoção de uma mé- trica móvel, segundo a qual exigências mais elevadas são adotadas à medida que progressos são obtidos. Se novas demandas são apresentadas à medida que anteriores são atendidas, obviamente nenhum sistema político seria capaz de atendê-las. Pela mesma razão, não parece razoável tomar como métrica as reivindicações apresentadas nas diversas manifestações que ocorreram no Brasil de junho para cá, posto que estas se aproximam do “universo e seus problemas”. Menos arbitrária é a métrica apresentada em sucessivas pesquisas de opinião sobre os temas que mais preocupam a sociedade brasileira. Ainda que sua colocação no ranking de prioridades tenha variado, cinco temas são constantes nestas pesquisas: educação, saúde, segurança, emprego e infraestrutura. Iniciemos pela trajetória da política de educação Atabela 1 apresenta dados sobre a trajetória dos níveis de escolaridade no Brasil de 1980 a 2010. A tabela mostra que a dívida educacional a ser debitada pelos governos brasileiros sob a democracia não era pequena. A despeito disto, os índices de escolaridade avançaram muito. 31,5 milhões de pessoas em 2010; sua participa- ção no universo havia caído para pouco menos de um quarto da população brasileira. A conclusão é evidente: a população que usualmente é interpretada como dispondo de menos recursos declinou significativamente nestes últimos 30 anos. Dado interessante refere-se à trajetória daqueles que contam com níveis mais elevados de escolaridade. A população de mais de 18 anos que chegou ao ensino médio pulou de 6,2 milhões, em 1980, para 39,7 milhões, em 2010. A população que chegou ao ensino superior passou de 3,4 milhões, em 1980, para 21,5 milhões, em 2010. Ambas aumentaram em mais de seis
vezes no período. Dado que a população brasileira duplicou em tamanho neste período, os valores percentuais minimizam o número absotabela 1: escolarização da população adulta (18+ anos de idade) Mais de um quarto da população brasileira declarou-se analfabeta no Censo de 1980. Em 2010, esta população era de menos de 10% e estava concentrada na população de idade avançada. Se somarmos esta população com aqueles que declararam ter no máximo três anos de estudo – ní- vel de escolaridade usualmente interpretado como analfabetismo funcional –, temos que aqueles que não dominam habilidades básicas de leitura e escrita representavam quase metade da população brasileira em 1980. Somados, estes representavam luto de pessoas que contam com mais recursos para a atuação política. Se adotamos o desempenho escolar como métrica de avaliação da política educacional, também encontramos evidências de melhora. Juntamente com Edgard Fusaro e Sandra Gomes, vimos medindo a qualidade da educação nas redes municipais brasileiras2. A escolha das redes municipais não é – mais uma vez – desprovida de consequências para as conclusões. A incorpora- ção tardia dos estudantes à escola, como vimos mais acima, ocorreu no Brasil basicamente a partir da década de 1990. Previamente à universalização, o acesso à escola pública favorecia os estratos mais elevados de renda e escolaridade e as redes estaduais de ensino ofereciam a maior parte destas matrículas. A universalização do acesso (estimulada em grande parte pelos incentivos fiscais embutidos no Fundef) coincidiu com a adoção de medidas federais de restrição ao gasto dos governos subnacionais com pessoal (em particular, a Lei Camata e, posteriormente, a Lei de Responsabilidade Fiscal). Da combinação destes fatores no tempo, resultou que a universalização do acesso ao ensino fundamental significou, na prática, municipalização desta oferta. Em qualquer lugar do mundo, a universalização do acesso significa a entrada dos mais pobres em um sistema de serviços públicos. Por esta razão, as redes municipais apresentam – ainda que, com alguma variação entre os estados – níveis mais baixos de desempenho escolar, quando comparadas às redes estaduais de ensino e às escolas privadas. A razão é simples: a trajetória que acabo de descrever implicou que as redes municipais de ensino são aquelas que concentram maior nú- mero de pobres. Logo, se examinamos a trajetó- ria destas redes escolares, temos um panorama do desempenho dos estudantes que poderíamos plausivelmente esperar que apresentem pior desempenho escolar. Se temos evidências de que estes melhoraram seu desempenho, podemos supor que os demais também estejam melhorando. Qualidade da educação melhorou Nosso estudo atribuiu um índice de desempe nho às redes municipais de ensino, cujos – scores podem variar de 0 a 10. A comparação da trajetória de cada município no triênio 2003-2006 (eixo x) e no triênio 2010-2012 (eixo y) pode ser observada no gráfico 1. Cada município brasileiro representa um ponto no gráfico de dispersão. Os pontos acima da reta representam os municípios que melhoraram seu desempenho, ao passo que aqueles abaixo da reta representam o oposto. A comparação mostra que a qualidade da educação melhorou na maioria das redes municipais de ensino entre 2003 e 2012. Mas, os valores variam entre 2 e 10. Logo, há grande desigualdade no desempenho escolar entre as redes municipais. Além disto, a mudança no valor dos scores obtidos por cada município entre um período e outro está próxima à reta. Isto significa que esta melhora foi incremental, isto é, sua velocidade é gradual. Se examinamos a trajetória das condições de saúde, também encontraremos evidências de sensível melhora. Entre 1980 e 2010, a taxa de mortalidade infantil – indicador clássico das condições de saúde – caiu de 69 para 16 por 1.000 nascidos vivos. No mesmo período, a esperança de vida ao nascer – outro indicador clássico – passou de 62 anos para 73 anos de idade. Este estudo que realizamos no Centro de Estudos da Metrópole também examinou o desempenho das redes municipais de saúde3. Neste caso, observamos as condições básicas de saúde. Mais uma vez, a escolha das unidades de observação não é neutra. Caso tivéssemos observado as con dições de atendimento hospitalar, nosso retrato da saúde nos municípios brasileiros seria certamente outro. Diferentemente, escolhemos observar os resultados dos programas básicos de atendimento prestados pelos municípios: saúde infantil, atendimento às gestantes, cobertura odontológica, vacinações, doenças contagiosas. Os resultados estão apresentados no gráfico 2. Cada ponto do gráfico de dispersão corresponde a um município. Os scores obtidos – que variam de 0 a 10 – para o triênio 2010-2012 estão apresentados no eixo y, ao passo que o percentual de pobres em cada município está disposto no eixo x. política de saúde no Brasil logrou reduzir a valores bastante baixos a intensidade desta associação. Deste modo, é possível, como mostra o gráfico, que um município apresente boas condições de saúde mesmo que sua população seja majoritariamente pobre. Observe-se que, na metade direita do gráfico, onde estão os municípios em que mais da metade da população é pobre, a maioria dos casos obteve score semelhante ao daqueles municípios em que a população pobre é inferior à metade da população. Ganhos de renda Passemos à trajetória da renda. A trajetória anu al da renda média domiciliar per capita dos – 20% mais pobres, dos 30% menos pobres (5° ao 10° vintis de renda) e dos 10% mais ricos4 de 1981 a 2012 está apresentada no gráfico 35. Este mostra que o final do processo de redemocratização foi marcado por queda da renda, para os mais ricos e também para os mais pobres. No governo Sarney, todos os estratos sociais tiveram ganhos de renda com a adoção do Plano Cruzado, para perdê-la logo em seguida devido ao fracasso do plano. Com o Plano Real, tanto os mais ricos quanto os mais pobres tiveram ganhos de renda, mas, diferentemente do Plano Cruzado, estes ganhos permaneceram estáveis nos governos Fernando Henrique Cardoso. Nos governos Lula, superada a retração econômica associada às incertezas da transição para um governo de esquerda, todos os estratos sociais tiveram crescimento sistemático da renda, O gráfico mostra claramente que a desigualdade entre os municípios brasileiros no que diz respeito às condições básicas de saúde é menor do que aquela encontrada para o desempenho das redes escolares municipais. Os scores obtidos concentram-se entre 4 e 8. Diferentemente da educa- ção, praticamente não há casos em que a nota final obtida pelo município é inferior a 3, o que indicaria muito precárias condições de saúde. Mais que isto, a associação entre concentração de pobres e condições de saúde é baixa (ρ = – 0,325). A conclusão que decorre desta informação não é trivial. Ainda que exista uma associação negativa entre condições básicas de saúde e pobreza, a tendência que se manteve no governo Dilma, a despeito das baixas taxas de crescimento econô- mico. Nos governos do PT, a inclinação das curvas é mais acentuada, o que indica ganhos de renda monotonicamente mais elevados ao longo de todo o período. O paradoxo da insatisfação Opico da desigualdade de renda ocorreu em 1989, final do governo Sarney, quando a média da renda dos 10% mais ricos foi 70 vezes a média da renda dos 20% mais pobres. Desde então, esta razão vem apresentando queda sistemática. A despeito desta queda, em 2012, ano em que esta série atingiu seu patamar mais baixo, a renda média dos 10% mais ricos ainda era 33 vezes superior à dos 20% mais pobres. À luz destas evidências, parece de fato paradoxal a insatisfação com o desempenho daquelas políticas que estão no ranking de prioridades dos brasileiros. Em três das cinco áreas com presen- ça permanente naquele rol de preocupações, temos evidências claras de que ganhos materiais fora

m obtidos. O regime democrático iniciado 30 anos atrás recebeu como legado uma dívida social mais alta do que aquela encontrada para países com nível de desenvolvimento econômico semelhante6. Mas, os indicadores de saúde, educação e renda melhoraram sob a democracia. Em outras palavras, se déficit de representação existe, ele não impediu que ganhos substanciais nestas três áreas cruciais de política fossem obtidos. Nos governos petistas, não encontramos evidências de uma piora destes indicadores. Diferentemente, os ganhos de renda foram superiores aos dos governos anteriores, o que implicou acelera- ção da desigualdade de renda. Adicionalmente, gráfico 3: evolução da renda – brasil – 1981-2012 Fonte: IBGE, Pesquisa Nacional de Amostra dos Domicílios – 1981 – 2012. Elaboração: Rogerio J. Barbosa 6 Ver Barros, Ricardo Paes de; Henriques, Ricardo; Mendonça, Rosane (2000) “Desigualdade e Pobreza no Brasil: retrato de uma estabilidade inaceitável”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, 15(42): 123-42 e Arretche, Marta (2008) “Estado Nacional y Derechos de Ciudadania: extrayendo lecciones de la parte llena del vaso”, en Mariani Rodolfo (Coord) (2008). Democracia/Estado/Ciudadanía: Hacia un Estado de y para la Democracia en América Latina”. Lima, Editora PNUD. Páginas 139 a 151. 21 não há evidências de deterioração das condições de saúde e de educação. Antes, a associação negativa entre ambas e pobreza vem diminuindo sistematicamente. Logo, não houve ausência de políticas efetivas, como diagnosticam as interpretações que atribuem a insatisfação dos brasileiros ao desempenho de nosso sistema de representação, seja ele o sistema político ou o fato de o Partido dos Trabalhadores ser governo. Diferentemente, desde a aprovação da Emenda Calmon em 1983, 25% das receitas dos governos subnacionais estão vinculadas ao ensino. Legislação subsequente (a Lei de Diretrizes e Bases – LDB, o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Fundamental – Fundef, o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Básico – Fundeb, o Piso Nacional de Professores, o Plano Nacional de Educação – PNE) incorporou mecanismos de controle sobre o destino de gasto e acompanhadas de mecanismos de avaliação de desempenho. Na mesma direção, as políticas adotadas por sucessivos governos a partir de meados dos anos 1990 na construção do Sistema Único de Saúde deslocaram a prioridade à saú- de curativa predominante no regime militar para a saúde preventiva. Na esteira da vinculação constitucional do gasto com educação, também a área da saúde vinculou o gasto dos governos subnacionais à saúde. Por fim, os estudos sobre a trajetória da desigualdade de renda no Brasil apontam o Programa Bolsa Família, a elevação sustentada do valor do salário mínimo e os ganhos de renda no mercado de trabalho, decorrentes dos ganhos em escolaridade, como os principais fatores explicativos da queda nos índices de pobreza e da consequente redução da desigualdade de renda7. Ainda que a transição demográfica possa explicar parte destes resultados, ela não é certamente o único fator explicativo desta trajetória. Parte expressiva deles é resultado de políticas que foram sustentadas por diferentes governos. Sob o regime democrático contemporâneo, firmou-se um pacto nacional, que concedeu grande prioridade de gasto às políticas de educação e saúde bem como à elevação sustentada da renda. Estes ganhos foram acelerados nos governos da coalizão liderados pelo Partido dos Trabalhadores, mas este esforço também foi empreendido por governos anteriores. Ganhos sociais e elevação de expectativas Se isto é verdade, por que razão os temas que são objeto destas políticas permanecem sistematicamente na lista de preocupações dos eleitores? Penso que à luz destas evidências, não é razoável concluir que esta permanência possa ser explicada pela incapacidade de nosso sistema político gerar políticas que tenham impacto sobre as condições de vida dos brasileiros. Diferentemente, penso que parte da explicação se encontra em uma elevação das expectativas, que é ela mesma decorrente dos ganhos obtidos no passado recente. Não é a incapacidade de nosso sistema político de produzir resultados tangíveis que explica a insatisfação dos eleitores, mas sim o caráter móvel destas demandas. Sólida tradição de estudos nas ciências sociais afirma que há estreitas relações entre participação política e escolaridade. Indivíduos mais escolarizados contam com mais recursos cognitivos para obter e processar informações. Também contam com mais recursos para manifestar suas preferências, seja pelo voto seja pela pressão sobre seus representantes, quer por canais parlamentares ou extraparlamentares. Em suma, indivíduos mais escolarizados são mais exigentes e apresentem maior capacidade de pressão política. O fato é que o universo de indivíduos com estas características cresceu em proporções bastante elevadas sob a democracia. Portanto, as manifestações a que assistimos são parcialmente explicadas pela expressiva am- pliação do número absoluto de indivíduos mais escolarizados, mais exigentes e com mais recursos para participar politicamente. Neste caso, a insatisfação diz respeito a demandas mais exigentes com relação à qualidade dos serviços públicos e à velocidade com que este atendimento deve ser realizado. Isto significa que nossas instituições polí- ticas têm crescentemente de lidar com um fenô- meno de elevação do nível de expectativas por parte de um número crescente de indivíduos com posse de recursos para manifestá-la. Entretanto… Para dois dos cinco temas apontados nas pes quisas de opinião como centrais para os brasi- – leiros temos a sensação de que pouco ou nada mudou sob a democracia: segurança e infraestrutura urbana. A julgar pelas notícias publicadas na mídia, as condições de segurança nas grandes cidades vêm se deteriorando progressivamente. A violência cresce em volume e intensidade. Infelizmente, para esta política não contamos com estatísticas regulares e confiáveis que nos permitam inferir com precisão a extensão do problema. Indicadores – tais como sequestro relâmpago ou morte por causas desconhecidas, por exemplo – tiveram seu método de registro modificado ao longo do tempo, de modo que não há séries de dados que revelem com segurança a trajetória deste fenômeno. O mesmo pode ser dito com relação à seguran- ça no trânsito. Sabemos que a mortalidade no trânsito só aumenta desde que o Datasus produz este dado, mas ninguém sabe com certeza qual é de fato esta taxa, pois as estatísticas oficiais são muito precárias. Quando registrada, apenas a morte no momento do acidente é notificada como morte no trânsito; quando esta ocorre posteriormente, fora da via, não é registrada como tal. A inexistência de indicadores confiáveis é, ela mesma, expressão das dificuldades encontradas na formulação e na execução destas políticas nos últimos 30 anos. Estes problemas não se confundem com o volume de gasto, pois a política de segurança está entre as principais rubricas de gasto de parte significativa dos estados brasileiros. Também não dizem respeito ao fato de que estas políticas têm sido objeto de diversas iniciativas de governo e de propostas que tramitaram no parlamento. Na verdade, os grupos organizados da área de segurança pública não lograram obter um consenso mínimo em torno de um paradigma de intervenção capaz de garantir a aprovação e a implantação de políticas sustentadas e estáveis. Na infraestrutura, baixa renda e carência de serviços essenciais estão superpostas nos domicí- lios mais pobres. Esta associação está exposta no gráfico 4, que apresenta as taxas de cobertura nos serviços essenciais por vintis de renda para 2012 (ordenados a partir dos mais pobres, da esquerda para a direita). Para o acesso a energia elétrica, as taxas de cobertura chegam a 100% para todos os estratos de renda, excluídos os 5% mais pobres

, concentrados no meio rural, que – 133 anos depois da invenção de Thomas Edison – ainda não tinham acesso à luz elétrica. Esta universalização é basicamente explicada pelo Programa Luz para Todos. Entretanto, observe-se que, para ligação à rede de água, coleta de esgoto e de lixo, as curvas apresentam uma inclinação à esquerda. Isto significa que, nestas políticas, quanto mais baixa a renda domiciliar per capita, também mais baixa é a cobertura destes serviços. Há uma clara associação negativa entre renda e acesso a serviços essenciais. Entre os domicílios cuja renda domiciliar per capita é inferior a R$ 270 (5° vintil de renda), há carência expressiva de acesso à rede de água e de serviço de coleta de lixo. Este afeta cerca de um quarto destes domicílios. O acesso à rede coletora de esgoto também é claramente afetado pela renda. Para os domicílios cuja renda é inferior a R$ 770 (14° vintil de renda), mais da metade ainda não contava com coleta de esgoto em 2012. Entre os 20% mais pobres, cerca de 80% dos domicílios não contavam com acesso a esgoto. A baixa efetividade da política de saneamento está associada à descontinuidade e à paralisação. À extinção do Banco Nacional de Habitação em 1986 sucedeu-se intensa instabilidade federal da inserção institucional do setor. No governo Fernando Henrique Cardoso, a privatização das companhias estaduais de saneamento teve grande centralidade na agenda. No governo Lula, foi criado o Ministério bem como foram estruturados estatutos importantes, tais como os Planos Nacionais de Habitação, Saneamento e Resíduos Sólidos. Entretanto, a retomada dos investimentos federais concentrou-se mais na construção habitacional. Conclusões Se existe déficit de representação na democra cia brasileira, ele não impediu que ganhos de – renda, saúde e educação fossem obtidos em nosso passado recente. Mas, as condições de habitabilidade não melhoraram, em particular para um nú- mero significativo dos domicílios mais pobres. O cidadão comum ampliou seu consumo individual, mas sua cidade não é um lugar habitável, o que carrega de insatisfações a vida cotidiana. Os menos pobres gastam horas em congestionamentos presos no interior de seus carros. Os mais pobres gastam horas de suas vidas em transporte coletivo lotado de passageiros. Ambos são ameaçados pela insegurança pública. Concentrada nas cidades e nos estados mais ricos do país, as manifestações populares revelaram que tornar nossas cidades mais habitáveis e seguras deve ir para o topo da agenda dos governos, obtendo centralidade comparável à das políticas de saúde e educação. Ainda que o gasto em saúde e educação possa ser considerado insuficiente, estas políticas lograram construir sistemas nacionais que contam com fontes seguras e estáveis de financiamento bem como sistemas de informação e monitoramento razoavelmente sofisticados. Enfrentar a gravidade e a extensão de nossos problemas nas áreas de segurança pública e infraestrutura urbana requer, igualmente, grandes aportes de recursos e políticas estáveis e sustentadas de longo prazo. Sua sustentação, contudo, dependerá que os principais atores destas políticas setoriais obtenham consensos mínimos em torno de uma estraté- gia básica de intervenção. Na ausência destes acordos, o voo da galinha é o resultado mais provável.


Marta Arretche é professora titular do Departamento de Ciência Política da USP, diretora do Centro de Estudos da Metrópole e editora da Brazilian Political Science Review.

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