01 abril 2023

Desafios da política externa do terceiro mandato de Lula

Ao mesmo tempo em que vê o presidente Lula diante do desafio de recolocar o Brasil no cenário internacional, após quatro anos de isolamento e de perda de liderança em temas essenciais para a agenda interna – de mudanças climáticas à saúde global, passando por direitos humanos –, o cientista político Guilherme Casarões, considera potenciais obstáculos: “Penso que a revitalização da nossa política externa pode ser um dos pontos de partida para que o novo governo cumpra sua promessa de reconciliação nacional. Afinal, não faltam exemplos mostrando que é possível que um presidente construa legitimidade política de fora para dentro – usando a diplomacia, em suas múltiplas manifestações, para viabilizar a consecução de seu programa governamental.”

Guilherme Casarões é professor da Fundação Getúlio Vargas, doutor e mestre em Ciência Política pela Universidade de São Paulo e mestre em Relações Internacionais pela Universidade Estadual de Campinas. Coordena o Observatório da Extrema Direita

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva assume seu terceiro mandato presidencial diante de um país dividido. Sua vitória nas eleições de 2022 contra o incumbente Jair Bolsonaro foi a mais apertada de toda a história da democracia brasileira. Uma de suas tarefas, portanto, será a pacificação do Brasil, seja por meio do combate à fome e à desigualdade, da reconstrução das políticas públicas que foram desmanteladas pelo governo anterior e até mesmo de medidas de enfrentamento ao discurso de ódio e ao extremismo. São tarefas tão necessárias quanto difíceis, que certamente não surtirão o efeito necessário no tempo de um mandato presidencial. Isso não significa, claro, que o atual governo não deva dar passos decisivos rumo a uma reconciliação ampla.

Ao mesmo tempo, Lula se vê diante do desafio de recolocar o Brasil no cenário internacional, após quatro anos de isolamento, de confrontações desnecessárias e de perda de liderança em temas essenciais para nossa agenda interna – de mudanças climáticas à saúde global, passando por direitos humanos e cooperação para o desenvolvimento sustentável. A despeito de potenciais obstáculos, penso que a revitalização da nossa política externa pode ser um dos pontos de partida para que o novo governo cumpra sua promessa de reconciliação nacional. Afinal, não faltam exemplos mostrando que é possível que um presidente construa legitimidade política de fora para dentro – usando a diplomacia, em suas múltiplas manifestações, para viabilizar a consecução de seu programa governamental.

Lula sabe disso e já vem se movimentando, com sua desenvoltura costumeira, no tabuleiro internacional. Trouxe para o governo figuras experimentadas, como Celso Amorim na assessoria internacional, Mauro Vieira nas Relações Exteriores e Marina Silva no Meio Ambiente. Nesse processo, ainda conta com inédita boa vontade de lideranças e chancelarias estrangeiras, que naturalmente aguardavam a saída do antigo presidente e de seu conspiracionismo predatório e autoritário para reativar contatos políticos mais sistemáticos com o Brasil. Além disso, graças à rápida e decisiva resposta governamental, os atentados de 8 de janeiro em Brasília acabaram reforçando o papel do novo presidente como uma espécie de guardião da democracia contra a extrema direita em ascensão. Se a fortuna não falta ao novo governo, sua virtù ainda está por ser testada.

O papel da política externa no terceiro mandato

O emprego da política externa como esteio da legitimidade política vem atender um duplo objetivo. Resgatar a agenda pública em áreas sensíveis é o primeiro deles. A viagem de uma comitiva da nova administração à COP-27 no Egito, antes mesmo da posse, foi sinal claro do renovado compromisso brasileiro com questões ambientais. Escolher a Argentina como o primeiro destino de Lula deixou claro o interesse de retomar o Mercosul como plataforma para o desenvolvimento econômico e ampliação do interesse comercial pela vizinhança. O encontro com o presidente Joe Biden em Washington, um mês mais tarde, reforçou o interesse mútuo em temas como combate ao racismo e ao extremismo, além da preocupação comum com as mudanças climáticas. E a próxima viagem do roteiro, rumo à China, reitera a relevância econômica (e, em muitos sentidos, política) do nosso principal parceiro comercial.

O segundo objetivo diz respeito à própria trajetória política de Lula. Ao concluir seu longo mandato, em 2010, o presidente contava com nada menos que 83% de aprovação pessoal. Por trás da popularidade, havia, claro, grandes feitos domésticos, entre os quais o Bolsa Família, responsável pela histórica redução da pobreza e da desigualdade no país, além de outras políticas estruturantes em áreas como educação, infraestrutura e habitação. Mas a equação também incluía um inédito protagonismo global que, a certa altura, seria uma das marcas da autoestima de uma nação emergente. Ao colocar-se como presidente-diplomata, amparado por um Itamaraty fortalecido e pelas redes históricas de atuação internacional do PT, Lula conquistou o respeito e a admiração de lideranças estrangeiras, que até hoje o veem como construtor e porta-voz de um Brasil altivo e integrado ao mundo.

Se o desejo de Lula é deixar um grande legado político ao final de um ciclo de 12 anos no poder, tudo indica que ele virá na forma da diplomacia. Em circunstâncias normais, o tempo da política externa costuma ser mais lento que o da política doméstica. Pelas próprias vicissitudes do relacionamento entre nações soberanas, grandes feitos internacionais não costumam se materializar no período de um mandato. Nesse caso, parece ser o contrário. Diante de um quadro econômico adverso, de uma sociedade profundamente dividida e de uma governabilidade frágil, Lula dificilmente repetirá o feito de 15 anos atrás. Se há algum caminho para redimir a biografia do atual presidente – que foi acusado de corrupção, preso e impedido de disputar as eleições de 2018, abrindo caminho para a chegada do bolsonarismo ao poder –, ele se dará por meio de uma grande contribuição à ordem internacional.

O grande desafio: qual o lugar do Brasil na nova ordem?

Qualquer impacto significativo que o Brasil deseje produzir no mundo dependerá de sua capacidade de navegar numa ordem internacional fundamentalmente distinta daquela do início dos anos 2000. Se durante a primeira passagem de Lula pela presidência o país alçou voos importantes, assumindo a condição de potência emergente, os anos seguintes testemunharam um movimento de declínio, introspecção e isolamento do Brasil. Éramos a sétima economia do mundo em 2010, hoje somos a décima segunda. De liderança em temas de meio ambiente, direitos humanos e saúde global, fomos alçados à condição de pária, a reboque da trágica posição de segundo país com maior número de mortos por Covid-19, de queimadas recorde na Amazônia e de inúmeros retrocessos em temas que vão de liberdade religiosa a direitos indígenas. A Lula, não basta manifestar o desejo de resgatar a política externa “ativa e altiva” de outrora, mas liderar o país diante de um contexto global menos cooperativo e mais hostil.

A atual ordem mundial é caracterizada, por um lado, por um movimento amplo de desmonte da globalização em suas dimensões econômica, política e cultural. Apresenta, por outro lado, novos contornos de bipolaridade, desta vez entre Washington e Beijing. Não se trata de uma disputa propriamente militar, ainda que os gastos em defesa chineses estejam cada vez mais vultosos, mas de uma corrida que combina comércio, investimentos e tecnologia. Ao passo que a China tem buscado assumir, muitas vezes de forma agressiva, a primazia comercial com diversos países do mundo, notadamente no Sul Global, a postura dos Estados Unidos tende a ser mais reativa, pressionando parceiros a recusar a entrada de empresas chinesas na provisão de bens públicos, sobretudo no campo da comunicação digital.

Ainda assim, os impactos militares e geopolíticos também se fazem sentir nessa nova configuração da competição global. Tensões recentes envolvendo Taiwan, a reorganização da disputa naval no Mar do Sul da China (por meio da recém-criada aliança trilateral entre Austrália, Reino Unido e EUA, AUKUS) e a derrubada de balões que supostamente serviam para espionagem chinesa colocaram as duas potências em rota de confrontação direta. Outra dimensão dessa rivalidade escancarou-se no contexto da invasão russa da Ucrânia em fevereiro de 2022, com Xi Jinping alinhando-se a Vladimir Putin por meio de uma “parceria sem limites” celebrada logo antes da guerra, enquanto o governo Biden vem investindo pesadamente no armamento das tropas ucranianas, ao lado dos aliados da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN).

A nova ordem mundial coloca um desafio imediato à política externa do novo governo Lula. Ainda não está claro se o Brasil conseguirá manter uma postura de “equidistância pragmática”, para usar expressão consagrada pelo historiador Gerson Moura, diante da disputa cada vez mais acirrada entre as superpotências. Ao Brasil, naturalmente, interessa manter boas relações com ambos os lados: a China é nosso maior parceiro comercial e um crescente fiador da infraestrutura nacional e os Estados Unidos, ao menos sob a atual gestão, possuem significativas convergências políticas com o governo Lula, seja no combate às redes transnacionais da extrema direita, na defesa de pautas progressistas e na preocupação com mudanças climáticas e preservação da Amazônia.

Num primeiro momento, é bem possível que o Brasil não seja instado a tomar lados nessa disputa bipolar. Contudo, um eventual acirramento da guerra na Ucrânia ou um entrevero político-militar mais grave entre Washington e Beijing exigirá de Lula uma postura cautelosa para preservar os interesses nacionais. Além disso, a eleição de um republicano à presidência norte-americana em 2024, impondo uma visão de soma zero aos parceiros na relação com a China, certamente dificultará a capacidade brasileira de navegar entre os dois polos de poder. Até agora, contudo, o equilíbrio entre as superpotências tem funcionado.

Integração regional e cooperação multilateral

Existem duas potenciais contribuições que o governo Lula poderá prestar à ordem internacional no curto tempo de um mandato. Ambas envolvem a reconstrução de plataformas de cooperação nas quais o Brasil foi protagonista – ou até mesmo liderança – ao longo das últimas décadas. A primeira delas diz respeito às relações continentais. Nos últimos anos, a política externa brasileira abandonou os mecanismos de integração regional que nos colocavam como centro de gravidade político da América do Sul. O Mercosul, ainda resiliente no papel, perdeu sua capacidade de organização política, comercial e financeira na vizinhança imediata. Diante do acirramento da crise venezuelana e da polarização ideológica das relações sul-americanas, incentivada pelo bolsonarismo, o Brasil retirou-se na Unasul e da Celac, organizações criadas por ele próprio alguns anos atrás.

A boa notícia é que o vácuo de poder deixado pelo desinteresse brasileiro ainda não foi totalmente preenchido, a despeito de ensaios de protagonismo regional por parte de Chile, Colômbia e México. O Brasil poderá resgatar seu espaço, beneficiado por uma nova “onda rosa” de partidos de esquerda ascendendo ao poder na região. Mas não se trata de tarefa simples. Do ponto de vista econômico, a presença chinesa na região cresceu nada menos que 26 vezes entre 2000 e 2020, reduzindo significativamente as possibilidades de expansão de comércio e investimentos brasileiros nas áreas em que o país ainda possuía alguma entrada na América do Sul: infraestrutura e manufaturas. Em termos políticos, a combinação de caos social e regimes cada vez mais autoritários na Venezuela e na Nicarágua é um obstáculo para a reconstrução da integração regional – e um teste para o posicionamento do novo presidente e seu partido, que nunca esconderam sua simpatia por Nicolás Maduro e Daniel Ortega.

Por isso mesmo, um dos legados diplomáticos possíveis ao presidente Lula é a pacificação dos autoritarismos de esquerda na América Latina – notadamente a Venezuela, parceiro estratégico importante graças ao seu potencial energético e comercial, e cuja crise humanitária vem causando fluxos migratórios por toda a região. Ainda não está claro se uma reconciliação nacional venezuelana, que fatalmente envolveria a saída de Maduro do poder, é viável e até mesmo desejável do ponto de vista do governo brasileiro. Não obstante, caso Lula realmente queira reconstruir as bases da integração regional sul-americana, é imprescindível que contribua construtivamente para superar a crise no vizinho setentrional.

O multilateralismo é a segunda área de potencial influência brasileira. Ao longo das últimas décadas, a capacidade de atuação multilateral do Brasil foi seu maior ativo reputacional, permitindo-lhe participar, como potência média, da criação de regras internacionais em temas como biodiversidade, mudanças climáticas, desarmamento nuclear, comércio de armas, saúde global e direitos humanos. A condição de potência emergente fez, inclusive, com que a política externa brasileira reivindicasse maior protagonismo normativo em temas outrora distantes do alcance do país, como segurança e finanças internacionais. O desengajamento dos últimos anos, iniciado em meados do governo Dilma Rousseff, enfraqueceu o posicionamento brasileiro nos temas de “alta política”, mas não impediu que o Brasil seguisse na vanguarda dos assuntos em que já exercia alguma ascendência.

Quatro anos de governo Bolsonaro, contudo, foram capazes de minar a liderança brasileira mesmo naqueles temas em que o país é protagonista inconteste. Teorias conspiratórias como o “globalismo”, difundidas pela cúpula bolsonarista como elemento norteador de sua política externa, serviram de justificativa para a retirada do Brasil dos debates ambientais e de saúde global, um contrassenso diante das crescentes preocupações com emergências climáticas e pandemias, ou para a reversão de posicionamentos históricos sobre direitos reprodutivos, migrações e até mesmo o conflito israelo-palestino.

A tarefa de Lula diante de um sistema multilateral fragilizado será organizada em três dimensões. A primeira delas envolve reocupar os vazios deixados pela o Brasil nos últimos anos. O chanceler Mauro Vieira tem adotado uma postura bastante assertiva quanto ao desejo do novo governo em assumir responsabilidades e compromissos multilaterais nas mais diversas áreas – o que não somente é correto, da perspectiva tradicional da diplomacia, como também essencial para que o governo legitime sua complexa agenda interna. A ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, é uma das mais ativas nesse processo, tendo participado da COP-27, do Fórum Econômico Mundial e da delegação brasileira na visita aos Estados Unidos.

Em segundo lugar, o governo Lula vem demonstrando interesse em oferecer abordagens inovadoras a crises contemporâneas. Sob a liderança do ministro Silvio Almeida, a agenda brasileira de direitos humanos no plano multilateral incorporará, de maneira mais assertiva, temas como direitos indígenas (à luz da recente crise humanitária do povo Yanomami), trabalho escravo e racismo, além do combate à proliferação de discursos de ódio, sobretudo nos espaços digitais. O próprio presidente Lula propôs, por ocasião da visita do chanceler alemão Olaf Scholz, a realização de uma “cúpula da paz” que reunisse esforços globais para a mediação do fim da guerra entre Rússia e Ucrânia. Mesmo que improvável e longe de ser consensual entre as partes envolvidas, a solução de Lula colocou o Brasil sob os holofotes e sinalizou um caminho possível de participação de países não alinhados à Rússia ou à OTAN no processo de paz.

Finalmente, a terceira dimensão da política multilateral de Lula deverá reativar a noção de cooperação sul-sul, incorporando parceiros relevantes em termos políticos e econômicos, como Índia, África do Sul, Nigéria e Egito às estratégias externas do novo governo. Para além das relações bilaterais estratégicas com tais nações emergentes, que compreendem uma agenda comercial promissora e possibilidades de contatos políticos amplos, é fundamental que o governo brasileiro enfatize o papel desses países no fortalecimento do combate à pobreza e à desigualdade, do desenvolvimento sustentável e do intercâmbio técnico e tecnológico. Para tanto, a articulação minilateral, por meio de fóruns, como o IBAS, e a plataforma multidimensional das Nações Unidas colocam-se como elementos fundamentais rumo ao resgate do valor do multilateralismo em nossa política externa.

Considerações finais

Este ensaio buscou apresentar um panorama geral dos desafios e das potencialidades do novo governo diante de uma ordem internacional menos aberta aos interesses e à atuação diplomática brasileira. Contando com a simpatia e o otimismo de diversos parceiros relevantes, bem como com a expectativa de um Brasil mais ativo e construtivo nos planos regional e multilateral, acredito que o Brasil tentará reunir condições favoráveis de curto prazo com o ímpeto de um governo que não somente percebe a importância da legitimidade internacional para a reconstrução de uma agenda positiva doméstica, como também buscará contribuir ativamente com esta ordem internacional por meio da política externa.

Se é verdade que neste terceiro mandato a busca por um legado diplomático guiará as ações do Brasil no mundo, é também verdade que esse processo envolverá uma complexa articulação de diferentes atores governamentais, econômicos e sociais. Tampouco, pode-se perder de vista a importância de se pavimentar o caminho para estratégias duradouras, que extrapolem o tempo de um presidente ou partido no poder. A julgar pelas movimentações dos últimos três meses, ainda que não seja uma caminhada fácil, tudo indica que o governo está disposto a fazer bom uso da política externa.   n


Guilherme Casarões é professor da Fundação Getúlio Vargas, doutor e mestre em Ciência Política pela Universidade de São Paulo e mestre em Relações Internacionais pela Universidade Estadual de Campinas. Coordena o Observatório da Extrema Direita

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