Direito e política e mais semipresidencialismo
A ciência política estuda e propõe como deve ser o estado. A ciência jurídica estuda o que o estado é. Há diferença, portanto, entre dever ser e ser. É o que separa uma ciência da outra. O dever ser nasce sempre do legislador. Seja o constituinte ou o ordinário. Quando se estabeleceu a reconstituição do estado brasileiro, os reconstrutores receberam delegação para tanto. Eram os constituintes que se manifestaram em 5/10/1988 construindo um novo estado. Fizeram-no, contudo, como representantes da única figura que tem autoridade no estado: o povo.
Digo isto porque só tem autoridade quem tem poder. E a Constituição, para dizer uma obviedade, estabelece que todo o poder emana do povo. Quando se quis estabelecer um novo estado brasileiro foi o povo quem se manifestou por meio dos seus representantes. Sendo assim autoridade primeira, primária, inicial, inaugural, o povo foi o titular do poder. As demais autoridades (presidente, governador, senador, deputado, ministros do executivo e do judiciário) são, todos, autoridades constituídas e, por isso mesmo, secundárias devendo obediência rigorosa à vontade primeira que, repetindo, é a do povo expressada no texto constitucional.
Verifica-se, entretanto que nem sempre isso ocorre. Tome-se o caso do preâmbulo da Constituição federal que determina aos constituintes que, ao criarem o novo estado, o façam enaltecendo a paz no plano interno e internacional. Que os poderes constituídos sejam harmônicos entre si até porque, ao exercitarem suas competências o farão, constituídos que são, em nome da autoridade popular. Vejam, contudo, o que tem acontecido no nosso país. São instituições contra instituições, praticando a desarmonia que, na verdade, viola a determinação constitucional. Praticam, portanto, inconstitucionalidade. E tal fato repercute na própria relação entre brasileiros já que não são poucos os distúrbios cheios de inimizade e plenos de violência física e verbal entre eles por ações de natureza político eleitoral.
Para se ter uma ideia de como o texto constitucional acolheu o fenômeno paz do preâmbulo basta invocar o artigo que decreta a igualdade de todos não podendo haver distinção de nenhuma natureza. Qual é a determinação constitucional? É a de que todos devem unir-se em favor do país, nada impedindo divergências programáticas administrativas e até ideológicas, mas que comportem debate de ideias, e não agressões como as que acabei de anunciar. No plano externo basta verificar o dispositivo estabelecedor de que os artefatos nucleares só podem ser utilizados para fins pacíficos. Portanto, nada de beligerância em relação aos demais países. A solução pacífica e negociada das controvérsias há de ser a tônica das relações internas e internacionais. Obedecer à Constituição e à legislação infraconstitucional é que permite a tranquilidade social porque afinal o direito regulamenta essas relações para dar segurança àqueles que praticam atos públicos ou privados no país.
Aliás, a relativa longevidade da nossa Constituição deriva do fato de termos amalgamado os princípios liberais com os princípios sociais. Só para exemplificar: a livre iniciativa, a propriedade, os direitos individuais são princípios de natureza liberal. Já o capítulo dos direitos sociais, que traz os direitos dos trabalhadores, assim como o direito à saúde, à segurança e à educação são de natureza social. Estes dados é que têm permitido a relativa permanência do nosso texto constitucional, ofendido apenas por aqueles que relutam em dar-lhe cumprimento, o que, na verdade, instabiliza a nossa sociedade.
O direito existe, sendo repetitivo, para pacificar as relações sociais, e não para tumultuá-las. Convenhamos: tão tumultuadas estão as relações governamentais que se impõe medida de grande repercussão política que é a modificação do sistema de governo. Vejam bem: o sistema presidencialista está, com a licença da expressão, roto e esfarrapado.
Vejam que nestes 33 anos do novo estado dois impedimentos já se verificaram. E não há dúvida de que tais impedimentos geram traumas institucionais além de gerarem os inúmeros pedidos de impedimento que se verificam ao longo do tempo. Basta dizer que, desde o governo Itamar Franco, cerca de 396 pedidos de impedimento se verificaram no país. Ademais, o presidente, quando eleito, só depois vai cuidar de obter maioria parlamentar que assegure a governabilidade. E a minha experiência indica que muitas vezes, embora a presidência da República seja apoiada por 15 ou mais partidos, a verdade é que nas votações dos projetos de interesse do governo até os partidos apoiadores têm votos contrários o que, de resto, instabiliza a própria governabilidade.
Daí porque optamos pelo semipresidencialismo. Qual a vantagem? Em primeiro lugar distingue-se a chefia de estado da chefia de governo, ficando esta última para o primeiro-ministro e o gabinete o que impede os traumas institucionais decorrentes dos impeachment. É que, constituído o governo (o que só se verifica quando é estabelecida a maioria parlamentar), se o governo perder essa maioria, imediatamente outra se forma e novo governo se instala com muita naturalidade. Esta é a primeira vantagem. A segunda é que o parlamentar, que hoje depende de verbas por ele levadas a estados e municípios para buscar a reeleição, passa a ser responsável pela execução, portanto, pelo governo, e não apenas pela legislação. Assim, quando ele buscar a reeleição, se for do bloco da situação, haverá de dizer ‘governei bem’, se da oposição, ‘opus-me adequadamente’. Ou seja, melhora o nível das discussões políticas no país.
Situação e oposição bem definidas
Por outro lado, perceba-se que há intensa discussão sobre a redução dos partidos políticos. Mas o que se vê é ampliação do número de siglas partidárias. E chamo de siglas porque os partidos, hoje, não atendem a sua real finalidade já que, para mais uma obviedade, partido é expressão que vem de parte, parcela, e político vem de pólis. Portanto, o partido deve sempre representar uma parcela da opinião pública que quer chegar ao poder para administrar a pólis (União, Estados e Municípios), o que, evidentemente não ocorre nos dias atuais.
Se adotarmos o semipresidencialismo teremos necessariamente um bloco de situação e outro de oposição. Podem ser integrados por várias siglas partidárias mas, conceitualmente, serão tidos como partido único: um de situação, outro de oposição o que, mais uma vez, eleva o debate político no país. Registro que é semi porque não é nem o presidencialismo puro e nem o parlamentarismo puro. Ou seja: é regime em que o presidente da República tem funções também relevantes: indica o primeiro-ministro que, por sua vez, ao compor o gabinete consultará o presidente; será o chefe das Forças Armadas, assim como representante do Brasil no exterior além de ter direito ao veto de projetos de lei.
Proponho essa forma porque o nosso eleitorado tem grande apreço pela figura do presidente da República. Não se pode deixá-lo na posição de ‘o rei reina, mas não governa’. Daí porque essa forma híbrida poderia ser adotada no nosso país com o mesmo sucesso que teve em Portugal e na França. Evidentemente, imagino um projeto aprovado pelo Congresso Nacional e depois submetido a referendo popular. Naturalmente com grande campanha esclarecedora por meio de horário eleitoral em que o tema será debatido pelos favoráveis e contrários ao sistema. Só depois submetido à consulta popular. Também devo deixar claro que esta modificação só pode entrar em vigor a partir de 2026 ou 2030, já que não se pode alterar a fórmula de eleição prevista para este ano.
Impõe-se uma consideração: para a aprovação do primeiro-ministro, que não é necessariamente um parlamentar, deve verificar-se um Congresso unitário. Ou seja: Câmara dos Deputados e Senado Federal constituir-se-ão em Câmara única, dando, portanto, a participação de ambas as Casas no processo de escolha da chefia de governo. Estas são breves considerações sobre o quadro político atual, ressaltando que já foi apresentado projeto desse novo sistema de governo pelo deputado Samuel Moreira e até constituída comissão especial para o exame da matéria.
Advogado, professor, escritor e político brasileiro, filiado ao Movimento Democrático Brasileiro. Foi o 37º presidente do Brasil
Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional