E quando acabar, a Educação volta a ser como antes?
É seguro dizer que não volta tudo a ser como era, embora não seja fácil antecipar o que será abandonado e o que se incorpora ao cotidiano. Antecipando o que diremos adiante, a pandemia romperá o mais atávico tabu na educação: a introdução de modernas tecnologias nas salas de aula do ciclo acadêmico – uma barreira em quase todos os países.
O gigantesco terremoto causado por uma coisa tão pequenina tem sua falha tectônica na conversão do ensino presencial para modalidades a distância. Para quem não está próximo das lides educativas, pode parecer uma mera alteração na mecânica diferente para ensinar.
Sociologicamente, não é. Trata-se de um evento sísmico de nível 8 na escala de Richter. Visto de outra maneira, permitirá romper uma gigantesca distância entre o quadro negro e as maquininhas. Para entender, vale a pena recapitular a história da convivência da educação com diferentes manifestações de tecnologia.
A tecnologia trouxe apenas duas grandes revoluções para a escola. A primeira foi a invenção da escrita. A segunda foi o livro. Com alguns pânicos e engasgos, ambas acabaram sendo digeridas. Mas, praticamente, os avanços pararam por aí.
Depois do ensino por correspondência, vieram grandes revoluções tecnológicas, com potencial para revolucionar a educação. O cinema foi anunciado como uma ameaça às escolas, tal como as conhecemos. Deu calafrios. O mesmo com o rádio que permite tirar a educação da aula e levá-la aos mais remotos grotões.
No primeiro ato da computação no ensino, já nos anos 50, o pano abre com os mainframes. Começam substituindo os professores, em aplicativos chamados então de tutoriais. Desde então, multiplicaram-se as estratégias para usar essas fabulosas máquinas na educação. Os exercícios do tipo drill & practice são muito mais pacientes do que os professores para ensinar tabuada e muitos outros assuntos repetitivos. Os jogos tornam-se cada vez mais realistas e inteligentes, sendo retrabalhados, para dar-lhes um conteúdo educativo. O Logo tem seu momento de glória. As simulações abrem uma fabulosa porta para o ensino.
Do lado do hardware, aparece a internet, o www, os laptops, os CDs, os pendrives, os tablets e os smartphones. E começamos a frequentar a nuvem. Com os avanços dos aplicativos de busca, o Professor Google se revela insuperável.
O uso didático dos vídeos é ilimitado. É um cinema portátil. E hoje, com o mais reles celular, podemos fazer gravações perfeitamente adequadas.
Obstáculos para entrada de tecnologia na sala de aula
Em anos mais recentes nos deparamos com uma viçosa colheita de novidades. Bancos de questões bem calibrados geram provas melhores e a correção é instantânea (importante para otimizar o efeito do feedback). Perguntas aos alunos permitem ajustar a dificuldade/facilidade do que está sendo ensinado. Os livros digitais, ainda na infância, oferecem uma riqueza espantosa de recursos. A internet e as redes sociais permitem um grau inaudito de interação entre todos. E por aí vai.
Essa gigantesca traquitana poderia ser o sonho de um educador tecnologicamente arejado. Mas, não foi isso que aconteceu.
Desde o início, os obstáculos se multiplicaram e a escola negaceou. O cinema nem chegou a decolar. Pesquisas cuidadosas mostraram o sucesso das escolas radiofônicas em lugares remotos. Inclua-se aí o belíssimo Projeto Minerva. Mas, nada prosperou.
A entrada triunfal da informática logo foi bloqueada por uma sequência ininterrupta de obstáculos – reais ou imaginários. Primeiro eram as máquinas que enguiçavam. Depois acusavam-se os aplicativos de serem pobres, impróprios ou ininteligíveis. Mais adiante, a explicação é que faltava preparação informática para os professores.
Uma desculpa tradicional resulta da orientação extraordinariamente estreita de cada disciplina escolar, contrastada com o caráter amplo e multidisciplinar de alguns dos aplicativos mais interessantes. O computador se mete na disciplina do outro professor, criando mal-estar.
Um detalhe logístico é que os usos mais interessantes dos computadores não dão muito certo em uma aula de 50 minutos. Para pôr em marcha o processo, é preciso mais tempo.
Basta um par de palavras para descrever tudo que aconteceu com a informática na escola: nada deu certo, tudo gorou.
Todas as revoluções bombasticamente anunciadas levaram a nada. A escola esmagou as tentativas de mudar a sua sala de aula. Assim fracassou o cinema, o rádio, o computador e o que mais apareceu pela frente. Dentro da escola, apenas sobrou um avanço digno de nota: é o computador para processar dados administrativos, financeiros e acadêmicos. É um sucesso, mas nada tem com educação.
Na sala de aula, nada muda. E isso, após mais de meio século de tentativas de enfiar os computadores nas salas de aula. O Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (Pisa) confirma em um plano internacional o que dezenas de pesquisas fizeram nesse ou naquele país. Como demonstrou, o uso do computador nas escolas não melhora o aprendizado dos alunos. Curiosamente, o mesmo Pisa mostra que tê-los em casa traz efeitos benéficos sobre o aprendizado. Em uma pesquisa em que se envolveu o autor, observou-se que, por sua própria iniciativa, os alunos usavam as redes sociais para discutir questões da escola. Em geral, seus professores desconheciam isso.
Em meio a tal fiasco no uso de novas tecnologias, apenas duas invenções tiveram sucesso. E não foi pouco. Trata-se da fotocopiadora (Xerox) e da combinação PowerPoint com projetor. Essas são as únicas aceitas sem restrições.
Paradoxalmente, do ponto de vista pedagógico, não trazem nada de novo. Uma facilita a cópia dos papeis que os professores gostam de distribuir. A outra substitui o quadro negro. De resto, está para ser demonstrado que, de tão mal feitos, são de alguma valia os PowerPoints usados em aulas. Para alguns críticos, atrapalham.
Em suma, há bem mais de um século que o conservadorismo da escola vence galhardamente todas as tentativas de trazer novas tecnologias para a aula.
Mas, é pertinente indagar: será que não foi por boas razões que a escola impediu sua entrada (ou boicotou o seu uso)? Quem sabe, serão ineficazes? É fácil responder pela negativa. Isso porque até agora nos referimos à escola, não à educação, mais genericamente.
Levantamentos sugerem que existe, grosso modo, tanta gente estudando em programas fora do circuito acadêmico quanto dentro dele. Para cada aluninho na escola primária ou marmanjo na faculdade há outros tantos fazendo os cursos mais variados, em instituições igualmente desencontradas.
Culinária, meditação, marcenaria, decoração de bolos e informática são a ponta do iceberg dos cursos para o grande público. Vale lembrar, se hoje os personal trainers estão no Zoom, na década de 40, já havia ginástica pelo rádio, animada por um oficial do Exército de nome Lira.
Na formação profissional, há desde cursos para encanadores até doutores aprendendo novas técnicas de ressonância magnética. As empresas, por sua vez, operam ou contratam cursos para todos os conhecimentos que faltam aos seus funcionários. E são muitos milhões de participantes aprendendo, desde a usar extintores de incêndio até programar para a “Manufatura 4.0”. Em particular, a área de negócios é pródiga em cursos, sejam os tradicionais, sejam os da moda. Não está longe de 200 as “universidades corporativas” das grandes empresas. E há até cursos preparando gente para a sua operação (na FIA/USP).
Em contraste com o ciclo acadêmico, usa-se de tudo. Tecnologia é a aliada de grandes empresas e de instituições dedicadas à formação para o mundo dos negócios. Entram em cena os computadores, vídeos, EAD, realidade aumentada, chatrooms e por aí afora.
Em outras palavras, nos deparamos com um divisor de águas espantosamente impermeável. Fora do acadêmico, usa-se tudo. Na escola, nada – exagerando um pouco, mas não muito.
Cursos por correspondência
Contudo, observa-se uma exceção nessa clivagem tão radical. É o ensino a distância.
Com a invenção do selo de correio, em meados do século XIX, abriu-se uma fórmula simples, segura e barata para aprender longe da escola. Inauguram-se os Cursos por Correspondência.
Ao longo do tempo, seu uso se restringiu a cursos fora do circuito acadêmico. Contudo, no início do século XX, aparecem os primeiros cursos superiores a distância. Mas, sempre corriam em faixa paralela, restrita e pouco valorizada. Uma exceção foi a Rússia que chegou a preparar mais engenheiros a distância do que presencialmente (sobretudo, na década de 30). Ou seja, a EAD viceja, há décadas, fora da academia. Mas, é mirrada naquela educação que concede diplomas oficiais (embora no ensino superior brasileiro o quadro esteja mudando).
Um crítico ponto de inflexão ocorreu quando o governo inglês encarregou o Professor Walter Perry (que virou Baron Perry of Walton) para criar a Open University. Em vez de programas acanhados e de baixo status, desde o início, foi uma iniciativa de grande visibilidade no mundo da educação.
Conforme dito por ele a este autor, para garantir a seriedade e o prestígio da iniciativa, logo pediu a Oxford e Cambridge que patrocinassem a iniciativa. Para a sua surpresa, recebeu uma estrondosa negativa. Não seriam partícipes de uma modalidade duvidosa de ensino.
A decisão de criar um campus próprio em Milton Keynes foi a alternativa encontrada. Ali tudo seria feito da estaca zero. De resto, a única que lhe restava.
Porém, por começar tabula rasa, um programa desse tipo não carregava o peso da tradição de como se fazem as coisas na academia. Não herdava as práticas que vinham da Idade Média. Portanto, foi criado como um programa agnóstico vis à vis a tecnologia. O que servia, era perfilhado. O que não funcionava, paciência.
Desde o início, entram em cena os vídeos e outras tecnologias de imagem. Quando os computadores se tornam mais competentes e mais baratos, era natural que participassem. Os avanços da internet permitem circular arquivos maiores, mais rapidamente e a preços insignificantes. Chegou no mercado, parece promissor, então, usa-se. A Open University deu prestígio ao ensino superior a distância e, com isso, legitimou o uso de tecnologias.
Uma maneira interessante de ver o EAD superior é como a única iniciativa que está dos dois lados desta polarização. Está inserida no circuito acadêmico, pela validade legal dos seus diplomas superiores. E traz um DNA diferente e que sempre cultivou boas amizades com as tecnologias.
Nos dias de hoje, mesmo quando o EAD está em instituições tradicionais de ensino superior, permanece um ser diferente. Já começou tendo intimidades com a tribo tecnológica. Mesmo as universidades mais conservadoras não conseguem impedir que esses programas convivam proximamente com todas as tecnologias que assomam à porta.
Porém, entra ano, sai ano, continuam como compartimentos estanques. Podem até estar no mesmo prédio, mas são animais de outras espécies. Os cursos presenciais pouco ou nada aprenderam com as práticas do EAD.
Pois não é que um vírus desse tamanhinho conseguiu o que os mais eloquentes evangelistas da tecnologia não lograram?
Com isolamento social escolas tiveram de adotar o EAD
Diante do isolamento social compulsório, as escolas tiveram que se bandear para o EAD, gostando ou não, penalizando ou não os alunos. Aos trambolhões, foram obrigadas a conviver com tecnologias que, sistematicamente, haviam rejeitado anteriormente. Mas, mesmo a contragosto, ao conviver se aprende.
Quando acabar esse pesadelo da Covid-19, é difícil imaginar que volta tudo para trás. Vídeos feitos pelos próprios professores, aula invertida, sistemas gerenciadores de aulas (LMS), ementas detalhadas, reuniões virtuais e mais um bando de coisas já terão sido integradas no cotidiano dos alunos e professores.
Um microscópico vírus fará o que autoridades e evangelistas tecnológicos não conseguiram – ao longo de um século. Ou seja, trazer a tecnologia para a sala de aula.
Nem no mais improvável cenário a educação retrocederia ao quadro anterior. Certos aprendizados são irreversíveis. Considerando que muito do que mudou é bem-vindo, uma das implicações de política educacional é a oportunidade de capitalizar nos avanços obtidos, para que não haja recuos indevidos. E oxalá que se deem os próximos passos.
Economista pela Universidade Federal de Minas Gerais, mestre pela Universidade de Yale e doutor pela Universidade Vanderbilt, ambas nos EUA. Pesquisador em Educação
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