A diplomacia de cabeça para baixo: Como a chegada de Bolsonaro ao poder transformou a percepção do mundo sobre o Brasil
Estudo com base em entrevistas com a comunidade de política externa das grandes potências mostra a deterioração da reputação do país desde 2018, com uma imagem caótica de ruptura com as tradições, ameaças às instituições e incertezas nas relações com o resto do mundo
Estudo com base em entrevistas com a comunidade de política externa das grandes potências mostra a deterioração da reputação do país desde 2018, com uma imagem caótica de ruptura com as tradições, ameaças às instituições e incertezas nas relações com o resto do mundo
Por Daniel Buarque*
Quando Jair Bolsonaro foi eleito presidente do Brasil, em outubro de 2018, ele começou a transformar o Brasil, empurrando o país para uma direção mais conservadora. Ele promoveu mudanças extremas no estilo e na retórica da política nacional e subverteu as tradições da política externa brasileira. Antes mesmo de assumir o poder, o presidente começou a transformar a diplomacia brasileira, criou um ambiente de incertezas e mudou a forma como outras nações pensam sobre o Brasil, dificultando as perspectivas de o país alcançar um status internacional mais elevado.
Este texto apresenta os principais argumentos do artigo Upside-down diplomacy – Foreign perceptions about Bolsonaro’s intentions and initial transformations of Brazil’s foreign policy and status, publicado neste mês na revista acadêmica Third World Quarterly. Ele é parte de uma pesquisa ampla sobre o status do país conduzida durante o doutorado conjunto pelo King’s College London e pela USP. E avança no estudo do status internacional do Brasil ao desenvolver uma avaliação sobre o que mudou nas interpretações intersubjetivas sobre o prestígio do país e sua política externa após a eleição de Bolsonaro. O artigo argumenta que, do ponto de vista das elites diplomáticas das grandes potências, Bolsonaro virou a política externa brasileira de cabeça para baixo.
A eleição de Bolsonaro afetou profundamente a imagem internacional do Brasil, com indícios de piora na reputação nacional e críticas na imprensa estrangeira. Essa transformação da reputação do país pode ter impactos importantes para o nível do prestígio do Brasil e suas relações com outras nações, uma vez que o status de um país é definido como a posição dele em uma sociedade global estratificada e é altamente dependente das crenças intersubjetivas de atores fora dessa nação.
O estudo apresentado aqui é baseado em uma análise das percepções da comunidade de política externa (CPE) dos cinco membros permanentes do Conselho de Segurança das Nações Unidas (CSNU): Estados Unidos, Reino Unido, França, Rússia e China. Com base em uma análise temática reflexiva de dados primários de 94 entrevistas com essas elites, a pesquisa contribui para o estudo do status em um contexto político em plena transformação por conta da ascensão de Bolsonaro, e fornece uma avaliação das percepções externas sobre as mudanças ocorridas no Brasil desde as eleições de 2018.
Política externa em transformação
A eleição de Bolsonaro foi vista no exterior como uma grande transformação na política e diplomacia brasileiras. Para os entrevistados, o presidente gerou um forte sentimento de incerteza nas relações com outros países, criando uma situação caótica no Ministério das Relações Exteriores. A percepção estrangeira era de que a chegada dele ao poder rompeu com os arranjos domésticos tradicionais de longo prazo que davam estabilidade ao posicionamento global do país.
Essas interpretações estrangeiras evidenciam o mal-estar que o novo presidente do Brasil promoveu no status internacional do país. Muitos dos entrevistados se disseram chocados e tinham dificuldade em entender o significado da virada do Brasil à extrema-direita. A percepção internacional da eleição e dos primeiros meses do novo governo era de que essa mudança tinha o potencial de virar o país de cabeça para baixo e transformar o lugar do Brasil no mundo, dificultando sua tentativa histórica de alcançar um maior status internacional.
“Bolsonaro vai prejudicar muito as aspirações do Brasil”, disse um pesquisador do think tank Diálogo Interamericano. Segundo um pesquisador do Instituto Francês de Assuntos Internacionais e Estratégicos, “o perfil do novo presidente Bolsonaro é percebido pela direita e pela esquerda na França como muito negativo. Isso cria uma imagem mais negativa do Brasil.”
Enquanto Bolsonaro iniciava seu governo, havia muita preocupação entre os entrevistados sobre a forma como as instituições brasileiras reagiriam ao que era visto como uma ameaça à democracia.
Segundo um consultor em assuntos relacionados ao Brasil no Quay D’Orsay, o Ministério das Relações Exteriores da França, “vai demorar um pouco para chegarmos a conclusões sólidas sobre Bolsonaro e até que ponto ele ameaça a democracia e os direitos humanos. Sabemos que ele não é um democrata, mas pode mudar de ideia em muitas questões. De qualquer forma, é um trauma para o Brasil e toda a América Latina ver um personagem como esse ganhar as eleições. É horrível. É triste, mas infelizmente há muito disso no mundo. É uma tendência mundial. São tempos difíceis.”
Um dos argumentos apresentados pelos entrevistados era que as mudanças tornaram a política externa brasileira caótica: “Vemos uma diplomacia que, se não sem muita coerência, não tem uma orientação clara e que tem uma característica mais ideológica do que uma resposta aos interesses nacionais do país. O que leva a inconsistências”, argumentou um pesquisador do Instituto Francês de Assuntos Internacionais e Estratégicos.
Preocupação chinesa e russa, interesse americano
A ascensão de Bolsonaro ao poder foi percebida como particularmente preocupante para entrevistados da China, um país que muitas vezes aparecia no discurso de política externa do Brasil sob o novo governo como um rival. Antes da eleição, Bolsonaro atacou a China e criticou a crescente influência do país, que dizia estar tentando comprar o Brasil.
“Houve muito debate quando o presidente Bolsonaro assumiu, e há quem diga que as relações entre China e Brasil podem encontrar algumas dificuldades”, argumentou um pesquisador do Centro de Estudos Brasileiros da Academia Chinesa de Ciências Sociais.
De acordo com um jornalista da Xinhua, a agência de notícias chinesa, “há um clima de suspense. E a China está tentando descobrir de todas as formas possíveis qual será a posição do governo brasileiro, justamente porque antes das eleições e até depois de eleito, Bolsonaro fez algumas declarações não tão positivas sobre a presença da China no Brasil.”
“Se o Brasil decidir se inclinar demais com os EUA, pode não ser muito bom para os investimentos chineses no Brasil”, disse um professor da Escola de Estudos Internacionais da Universidade Renmin da China.
Bem antes da atual crise global por conta da invasão russa da Ucrânia, e de o Brasil ficar neutro, mas Bolsonaro ter declarado solidariedade a Vladimir Putin, os entrevistados russos também mencionaram a preocupação com o alinhamento do Brasil com os EUA, o que poderia afetar as possibilidades de parcerias com Moscou.
“Putin e Bolsonaro não têm nenhuma ligação”, argumentou um analista político e pesquisador do Instituto da Rússia Moderna. Mesmo que ambos pudessem ser vistos como parte de uma safra global de políticos autoritários e populistas, o alinhamento com os EUA poderia afetar as relações bilaterais.
Uma percepção semelhante foi descrita por um diretor geral do think tank Conselho de Assuntos Internacionais da Rússia: “Agora, com a gravíssima mudança política em Brasília, algumas pessoas estão confusas sobre o que esperar da nova liderança, e se o Brasil é um país que ainda pode ser considerado um potencial parceiro. A nova liderança brasileira levantou uma questão sobre a adesão do Brasil à Otan, e definitivamente não é provável que isso aconteça, mas a própria inclinação sugere que provavelmente a posição do Brasil [como potencial parceiro da Rússia] foi superestimada.”
A ideia de alinhamento do Brasil aos interesses dos EUA –especialmente enquanto Donald Trump ainda era presidente– foi percebida de forma mais positiva pelos entrevistados norte-americanos. Mesmo que ainda houvesse muito ceticismo sobre as ações do então novo presidente, as mudanças foram interpretadas como rompendo com uma rejeição que o país parecia ter à hegemonia dos EUA na região
Segundo um diretor da Brazilian Studies Association, “uma das coisas que me impressiona agora é que existiu um esforço do Brasil de mais de uma geração, especialmente com o PT, de não aceitar a hegemonia econômica dos EUA nas Américas, inventar alternativas, Mercosul e tudo o mais, e tudo isso parece desaparecer completamente agora. Como o novo governo diz que quer estar mais perto dos Estados Unidos e ter melhores relações comerciais e ‘blablabla’. Talvez isso não dure, mas isso me parece uma verdadeira mudança da desconfiança tradicional de estar sob o domínio econômico dos EUA.”
Prestígio em baixa
Uma das transformações que mais surpreendeu os entrevistados ao discutir o que Bolsonaro representava para a diplomacia brasileira foi a mudança de foco da busca por prestígio e o aparente abandono da candidatura a um assento permanente no CSNU. Embora Bolsonaro ainda tenha mencionado a reforma do CSNU como um dos objetivos do Brasil, suas primeiras ações após a chegada ao poder foram na contramão dessa política externa tradicional do país.
Segundo um professor do Instituto de Estudos Latino-Americanos da Academia Russa de Ciências, “o que é absolutamente novo e surpreendente é a visão atual em torno do desejo de longa data do Brasil de se tornar um membro permanente do Conselho de Segurança da ONU. Isso é interessante, porque acontece pela primeira vez em muitos e muitos anos, mesmo passando por governos de direita e de esquerda. Isso é surpreendente, mas faz parte da nova lógica da política externa, que o Brasil não deve participar de relações multilaterais, e tem que desenvolver, como os Estados Unidos, apenas relações bilaterais.”
O governo iniciado em 2019 negou, no entanto, ter desistido completamente da busca por status. Durante seu mandato como chanceler, Ernesto Araújo argumentou que, apesar da cobertura negativa da imprensa internacional sobre Bolsonaro, o prestígio do Brasil estava em ascensão. A análise de entrevistas com a elite política em nações poderosas mostra que isso não era verdade. Por mais que os dados apresentados aqui sejam relativos aos primeiros meses do governo, e o contexto global tenha passado por mudanças, a avaliação representa uma tendência clara que se manteve evidente ao longo do mandato do presidente.
Com base nessas percepções externas, é possível ver que as mudanças promovidas por Bolsonaro têm implicações importantes tanto para seu status internacional quanto para suas ambições e estratégias de política externa. Com Bolsonaro, o Brasil terá dificuldades para alcançar o alto prestígio a que sempre almejou, pois qualquer melhora em sua posição dependerá das percepções intersubjetivas que poderiam levar a um reconhecimento das nações que possuem status mais elevado. Os dados aqui analisados mostram que a percepção da política do presidente é principalmente negativa.
Também é problemático que o sistema democrático do país seja visto sob pressão desde a eleição de Bolsonaro. A consolidação das credenciais democráticas brasileiras tem sido frequentemente citada como um dos aspectos positivos que impulsionam a emergência do país, juntamente com o desenvolvimento econômico e a redução das desigualdades.
Bolsonaro não só mudou o rumo da política externa brasileira e piorou a imagem do Brasil, como também não conseguiu gerar resultados positivos de sua administração que pudessem ajudar a projetar o país internacionalmente. O Brasil não tem sido capaz de oferecer soluções para problemas globais, sua economia não gerou crescimento nem se tornou mais aberta, houve aumento da pobreza em todo o país, e o Brasil foi visto como tendo uma das piores políticas de combate à pandemia de Covid-19.
O governo de Bolsonaro reforçou a visão negativa de que o Brasil carece de uma agenda internacional coerente e clara, o que é visto como fundamental para o desenvolvimento de uma estratégia abrangente de busca dos interesses da nação. Isso tem uma implicação muito problemática para o futuro da política externa brasileira, pois a ruptura trazida por Bolsonaro pode manchar a imagem do Brasil no longo prazo, tornando mais difícil para qualquer outro governo no futuro próximo convencer o mundo de que o país não vai mudar mais uma vez o que deveria ser uma política de Estado imune aos caprichos e visões radicais de qualquer governo. Mesmo que Bolsonaro acabe deixando a Presidência e o Brasil volte ao padrão estabelecido antes de sua ascensão, provavelmente não será fácil redefinir a política externa brasileira e colocá-la de volta no caminho que já teve de uma potência emergente em ascensão.
*Daniel Buarque é editor-executivo do portal Interesse Nacional, doutor em relações internacionais pelo programa de PhD conjunto do King’s College London (KCL) e do IRI/USP. É jornalista, tem mestrado em Brazil in Global Perspective pelo KCL e é autor dos livros “Brazil, um país do presente” (Alameda) e “O Brazil É um País Sério?” (Pioneira).
Editor-executivo do portal Interesse Nacional. Jornalista e doutor em Relações Internacionais pelo programa de PhD conjunto do King’s College London (KCL) e do IRI/USP. Mestre pelo KCL e autor dos livros Brazil’s international status and recognition as an emerging power: inconsistencies and complexities (Palgrave Macmillan), Brazil, um país do presente (Alameda Editorial), O Brazil é um país sério? (Pioneira) e O Brasil voltou? (Pioneira)
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