11 junho 2022

A influência científica e política do criador de ‘Jurassic Park’

Michael Crichton foi um prolífico autor de romances influentes, como Estado de Medo, que rejeita o aquecimento global e foi usado como base de debates parlamentares norte-americanos ao desvirtuar as evidências científicas, alimentando o ceticismo climático

Michael Crichton foi um prolífico autor de romances influentes, como Estado de Medo, que rejeita o aquecimento global e foi usado como base de debates parlamentares norte-americanos ao desvirtuar as evidências científicas, alimentando o ceticismo climático

Michael Crichton durante apresentação na Universidade de Harvard (Harvard News Office)

Por Víctor Resco de Dios*

Em junho, Claire Dearing e Owen Grady, os carismáticos protagonistas da saga Jurassic World, retornam às telas de cinema. E eles fazem isso acompanhados por Alan Grant, Ellie Sattler e Ian Malcolm, de quem muitos sentiram falta desde que estrelaram o clássico Jurassic Park há 29 anos. É difícil exagerar o impacto que o filme de Spielberg teve na ciência.

Cena do filme Jurassic Park

Jurassic Park inspirou grande parte de uma geração de paleontólogos, agora em seus 20 a 30 anos, que descobriram sua vocação graças aos doutores Grant e Sattler. O sucesso do filme ajudou a aumentar o financiamento para a pesquisa de saurópodes e terópodes. Jurassic Park e, sobretudo, Jurassic World, refletem sobre o que é possível alcançar com a biotecnologia, bem como quais devem ser seus limites.

O romance no qual o filme é baseado foi escrito por Michael Crichton, um prolífico escritor de best-sellers. Além de Jurassic Park, ele escreveu outros romances que também foram influentes em questões científicas. Um exemplo é Estado de Medo, em que um grupo de ecoterroristas planeja ataques para aumentar a atenção às mudanças climáticas.

Este romance foi usado como base de debates parlamentares norte-americanos, e também em artigos científicos publicados na revista da Academia Nacional de Ciências dos Estados Unidos. É uma obra que, ao desvirtuar as evidências científicas, alimentou o ceticismo climático.

O livro Estado de Medo, de Michael Crichton

A ciência de Estado de Medo

Embora seja uma obra de ficção, Estado de Medo mistura gráficos com dados reais em seu texto e cita diferentes trabalhos científicos. Por exemplo, em várias ocasiões é citada a apresentação que James Hansen, cientista da NASA, fez no Senado dos Estados Unidos em 1988.

O discurso de Hansen abriu a primeira página do New York Times em 24 de junho de 1988 e foi muito midiático. Sem dúvida, contribuiu para que o programa eleitoral de George H. W. Bush, o político republicano que tomaria posse como presidente dos Estados Unidos em 1989, incluísse ações climáticas.

Hansen alertou, com base em um estudo publicado anteriormente, que a temperatura global do planeta durante o período 1988-2005 aumentaria em 0,33°C e que o aquecimento seria de 1°C  no ano de 2019.

Como vemos no gráfico abaixo, o modelo climático de 1988 conseguiu reproduzir o clima observado nos últimos 30 anos. Este modelo nos diz, sem sombra de dúvida, como o aumento das concentrações de gases de efeito estufa é o principal responsável pelo aquecimento global observado.

Mudanças na temperatura global observadas e modeladas em 1988 por James Hansen em relação à média durante 1951-1980. NASA / ‘Global climate changes as forecast by Goddard Institute for Space Studies three-dimensional model’, ‘Journal of Geophysical Research’.

Crichton publicou Estado de Medo em 2004 e escreveu que o modelo de Hansen superestimou o grau de aquecimento em 300%. Como ele poderia incluir tal barbaridade?

É verdade que se trata de uma obra de ficção, onde o autor é livre para tirar quantas licenças julgar necessárias. Mas é no mínimo estranho que sejam citados estudos reais, como o de Hansen, e que apenas a interpretação desses estudos seja ficcionalizada. Além disso, Crichton inclui um apêndice no livro com sua visão pessoal sobre as mudanças climáticas, deixando a ficção de lado, e onde não deixa dúvidas sobre sua visão.

Michel Crichton contra as mudanças climáticas

Em suma, pode-se dizer que Michael Crichton divulga em Estado de Medo as teses que haviam sido propostas anteriormente por Pat Michaels, professor da Universidade de Virgínia que admitiu abertamente receber verbas da indústria do petróleo. Esse posicionamento foi chamado de lukewarming, que se traduziria em algo como mornidão ou aquecimento leve.

Ou seja, aceita que a atividade humana aumentou as emissões de gases de efeito estufa e que essas emissões afetam o clima. No entanto, considera que os modelos climáticos exageram a influência das emissões e que o grau de aquecimento experimentado será muito inferior ao previsto.

implicações políticas

As teses de Pat Michaels, divulgadas por Crichton em Estado de Medo, permeariam as fileiras dos políticos republicanos ao longo do tempo. George H. W. Bush inicialmente aceita a evidência científica para a mudança climática. Prova disso é que inicia o Programa de Pesquisa sobre Mudanças Globais em 1989 e a Lei de Pesquisa sobre Mudanças Climáticas em 1990.

Seu filho, no entanto, o também presidente George W. Bush, se opôs a qualquer ação contra as mudanças climáticas e até tentou silenciar Hansen e seus colegas. A revista Science aponta que a mudança ideológica ocorrida entre as fileiras republicanas da época não pode ser compreendida sem a influência de Michaels e, portanto, de Crichton.

O que Michael Crichton pensaria hoje?

Para encerrar este artigo, acho que vale a pena reproduzir um dos parágrafos de Estado de Medo em que Crichton expressa sua visão pessoal sobre as mudanças climáticas:

“Antes de tomar decisões políticas caras com base em modelos climáticos, acho razoável exigir que esses modelos prevejam temperaturas futuras razoavelmente por um período de dez anos. Vinte seria melhor.”

Como já vimos, os modelos climáticos vêm prevendo razoavelmente as temperaturas há mais de 30 anos. Então, eu gostaria de pensar que, se ele ainda estivesse vivo, Michael Crichton não teria mais dúvidas sobre a necessidade e a urgência de uma ação climática sustentável.

Também quero acreditar que o último Jurassic World será tão divertido quanto os anteriores. Espero que não nos engane.


*Víctor Resco de Dios é professor de incêndios florestais e mudança global na Universitat de Lleida


Este texto é uma republicação do site The Conversation sob uma licença Creative Commons. Leia o artigo original, em espanhol.


Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional


Daniel Buarque é editor-executivo do portal Interesse Nacional. Pesquisador no pós-doutorado do Instituto de Relações Internacionais da USP (IRI/USP), doutor em relações internacionais pelo programa de PhD conjunto do King’s College London (KCL) e do IRI/USP. Jornalista, tem mestrado em Brazil in Global Perspective pelo KCL e é autor de livros como "Brazil’s international status and recognition as an emerging power: inconsistencies and complexities" (Palgrave Macmillan), "Brazil, um país do presente" (Alameda Editorial), "O Brazil é um país sério?" (Pioneira) e "o Brasil voltou?" (Pioneira)

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