13 abril 2022

Brasil e China no século XXI: A construção de uma parceria estratégica

Artigo sintetiza os principais pontos do livro “Brazil-China Relations in the Twenty-first Century: the making of a strategic partnership”, e argumenta que independente do que aconteça nos próximos anos, a China seguirá como um país fundamental na política externa brasileira

Artigo sintetiza os principais pontos do livro “Brazil-China Relations in the Twenty-first Century: the making of a strategic partnership”, e argumenta que independentemente do que aconteça nos próximos anos, a China seguirá como um país fundamental na política externa brasileira

Os presidentes Jair Bolsonaro e Xi Jinping se cumprimentam durante evento em Pequim (Divulgação/Isac Nóbrega/PR)

Por Maurício Santoro*

Meu pai nasceu em Marabá, uma pequena cidade no interior da Amazônia. Certa vez ele me disse: “Quando eu era criança, na década de 1940, nunca imaginei que um dia teria um filho que estuda mandarim e pesquisa China.” Contudo, sua cidade natal recebeu bilhões de dólares em investimentos chineses, em ferrovias e fábricas, consolidando-se como um centro regional de transporte, mineração e processamento de minério de ferro. É um símbolo da recente jornada sino-brasileira. A China agora é chave para o bem-estar econômico brasileiro, quer vivamos em Brasília, São Paulo, Rio de Janeiro ou Marabá.

A relação entre Brasil e China foi definida pelos dois governos como “parceria estratégica”. O termo foi inventado por seus diplomatas na década de 1990, em uma tentativa de designar uma perspectiva de longo prazo para diálogos que consideravam essenciais, mas que eram diferentes de uma aliança tradicional, como pactos militares.

A parceria estratégica sino-brasileira foi construída a partir de dois pilares. O primeiro é o esforço para promover o desenvolvimento, em termos de incentivo ao comércio, aos investimentos e a colaborações educacionais, científicas e tecnológicas. O segundo são os entendimentos diplomáticos em organizações multilaterais para buscar uma ordem global mais equilibrada, multipolar.

O início: aliados distantes
O início da relação diplomática entre o Brasil e a República Popular da China foi um diálogo inusitado entre um general anticomunista brasileiro e o governo de Mao Tsé-Tung. A decisão ocorreu pelo reconhecimento mútuo da importância de cada nação na política internacional da década de 1970, em meio a transformações mundiais que abriam rachaduras nas rígidas divisões da Guerra Fria.

Naqueles anos os Estados Unidos e a China iniciaram uma aproximação para conter a União Soviética. Embora o processo do reconhecimento diplomático do governo comunista chinês só fosse ser completado em 1979, o começo do diálogo criou oportunidades para que outros governos seguissem os passos de Washington. Isso foi particularmente forte na América Latina. No início da década de 1970 quase todos os países da região reconheciam diplomaticamente Taiwan, e não o governo da República Popular da China, estabelecida após a revolução de 1949 – as únicas exceções eram Cuba e Chile, mais afins ideologicamente aos marxistas chineses.

‘A decisão em reconhecer o governo de Mao foi controversa dentro do Brasil, e Geisel enfrentou oposição dos militares’

No caso brasileiro o reconhecimento se deu em 1974, no início do governo do general Ernesto Geisel. O presidente iniciou um processo de abertura política no regime militar e na diplomacia, ele e seu chanceler Antônio Azeredo da Silveira resolveram reorientar a inserção internacional do Brasil, mudando posições em temas como África, Oriente Médio e China. Buscavam diversificar as parcerias globais brasileiras, independente das orientações ideológicas de cada governo, para enfrentar um cenário econômico mais adverso, com os choques do petróleo e o aumento do endividamento externo.

A decisão em reconhecer o governo de Mao foi controversa dentro do Brasil, e Geisel enfrentou oposição dos militares, muitos dos quais achavam que era perigoso manter relações com autoridades comunistas que apenas alguns anos antes haviam apoiado grupos armados contra o regime brasileiro. Nos primeiros 10 anos o diálogo sino-brasileiro foi restrito à abertura de embaixadas em Pequim e Brasília. Isso só mudou na década de 1980, quando um ambiente político mais calmo em ambos os países criou condições mais favoráveis para aprofundar a cooperação.

Um Brasil em redemocratização, mas às voltas com a crise da dívida externa, e uma China que iniciava seu período de abertura e reforma econômica sob Deng Xiaoping encontraram muitos pontos em comum na agenda bilateral. Começaram as viagens de autoridades de alto nível, projetos conjuntos de desenvolvimento tecnológico e científico, como o programa de construção de satélites CBERS e os esforços de aprendizado mútuo. Naquele momento eram sobretudo os chineses que queriam identificar as lições da experiência desenvolvimentista brasileira, em temas como a usina hidrelétrica de Itaipu, o complexo de mineração de Carajás e a criação da Zona Franca de Manaus.

Contudo, o comércio bilateral continuou pequeno ao longo dos anos 1980-90, não chegando a US$2 bilhões. O Brasil exportava sobretudo produtos siderúrgicos e importava petróleo da China – um perfil muito diferente do que seria no século XXI. Foi nesse contexto que em 1993 os dois governos cunharam o termo “parceria estratégica” para definir a relação.

A declaração não criou obrigações jurídicas, diferentemente de uma aliança tradicional, mas sinalizava o compromisso de longo prazo em construir uma agenda bilateral abrangente, para além das dificuldades em expandir os laços econômicos. No fim da década o presidente Fernando Henrique Cardoso escreveu em seu diário que Brasil e China eram “aliados distantes”, com boa vontade mútua, mas pouca proximidade.

A Parceria Estratégica no Boom Global de Commodities

O boom global de commodities no início do século XXI deu musculatura econômica à parceria sino-brasileira, transformando a China no maior parceiro comercial do Brasil, com as trocas bilaterais ultrapassando US$100 bilhões anuais na década de 2020. Mas também alterou os termos do relacionamento, que passou a ser cada vez mais assimétrico, contraste entre o rápido desenvolvimento chinês e a trajetória brasileira, mais errática. Com um padrão no qual o Brasil exporta minérios, petróleo e produtos agrícolas (soja, carnes) para a China, e importa mercadorias industrializadas, a relação por vezes assumiu características típicas das divisões entre o Norte e o Sul Global.

‘No século XXI a parceria estratégica se implementou também como diálogo multilateral’

A mudança no comércio foi o resultado da crescente necessidade chinesa de se abastecer globalmente das matérias-primas e fontes de energia fundamentais para sua economia. A maior demanda pelos produtos brasileiros foi semelhante ao que aconteceu na relação da China com outros países da América Latina e da África.

A diferença no caso sino-brasileiro foi a percepção por ambos os governos de que a importância da relação ia além das trocas comerciais. No século XXI a parceria estratégica se implementou também como diálogo multilateral, na criação de grupos como o BRICS, os dois G20 (financeiro e na Organização Mundial do Comércio) e no BASIC, de negociações globais do clima.

Nesses fóruns diplomáticos, Brasil e China apresentaram posições críticas aos países ricos e defenderam reformas no sistema internacional voltadas para os interesses das nações em desenvolvimento. O mecanismo de diálogo bilateral foi aperfeiçoado com a criação de uma comissão de alto nível (Cosban) e, na década de 2010, o estabelecimento de um Diálogo Estratégico Global. Foram desdobramentos caros às visões de política externa do Partido dos Trabalhadores, no governo brasileiro de 2003 a 2016, particularmente nas gestões do presidente Luiz Inácio Lula da Silva e de seu chanceler Celso Amorim.

No início do século XXI a China se tornou uma investidora importante no Brasil, que concentra cerca de metade de seus investimentos na América Latina. Em 2021 o estoque de capital chinês no país era de cerca de US$65 bilhões, sobretudo em energia elétrica – geração, transmissão e distribuição – por meio de estatais como State Grid e China Three Gorges. Os chineses também destinaram recursos significativos a grandes projetos de infraestrutura, como a construção de ferrovias, pontes e a modernização de portos.

As Tensões na Parceria Estratégica

A maior presença econômica da China no Brasil despertou também reações que questionam a relação com Pequim. Tais críticas se dividem em três grandes correntes. Uma defende o protecionismo econômico, e está baseada sobretudo em industriais que sofrem efeitos negativos da concorrência chinesa, como brinquedos, calçados e têxteis. Uma segunda tendência crítica diz respeito a preocupações com segurança nacional, como militares preocupados com o controle chinês sobre infraestrutura importante no Brasil. Uma terceira linha usa argumentos ligados à cultura e à identidade nacional brasileira, pregando como prioridade a proximidade com o Ocidente.

Essas correntes ganharam força com a eleição de Jair Bolsonaro à presidência do Brasil em 2018. Ele foi o primeiro chefe de Estado brasileiro desde o general Geisel a chegar ao cargo com visão hostil a Pequim. Embora a parceria estratégica tenha continuado e até se aprofundado no que toca ao comércio, a relação se tornou mais tensa. Declarações do presidente e de seus aliados culpando o governo chinês pela pandemia do coronavírus ou criticando a ideologia do Partido Comunista criaram problemas e despertaram forte rejeição de diplomatas chineses servindo no Brasil, que usaram as redes sociais para manifestar sua oposição a esse tipo de posicionamento.

‘Independentemente do que aconteça nos próximos anos, a China seguirá como um país fundamental na política externa brasileira, mas que cada vez mais demanda um esforço de entendimento’

Contudo, a pandemia também reforçou a dependência que o Brasil tem da China em áreas como insumos médicos, e acabou levando o presidente Bolsonaro a moderar seu discurso com relação a Pequim. Não houve, por exemplo, veto à participação da empresa chinesa Huawei como fornecedora para a instalação de equipamentos do padrão 5G de Internet no país – firma que enfrentou obstáculos políticos em vários outros países.

O Brasil se aproxima de uma nova eleição presidencial e precisa lidar com os efeitos econômicos de diversas crises internacionais, da pandemia à guerra na Ucrânia. Independentemente do que aconteça nos próximos anos, a China seguirá como um país fundamental na política externa brasileira, mas que cada vez mais demanda um esforço de entendimento e de debate entre os vários grupos da sociedade afetados pela parceria entre Brasília e Pequim.


*Maurício Santoro é doutor em Ciência Política pelo Iuperj, professor do Departamento de Relações Internacionais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Este artigo sintetiza os principais pontos do livro “Brazil-China Relations in the Twenty-first Century: the making of a strategic partnership”, publicado pela editora britânica Palgrave MacMillan em março de 2022.


Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional


Daniel Buarque é editor-executivo do portal Interesse Nacional. Pesquisador no pós-doutorado do Instituto de Relações Internacionais da USP (IRI/USP), doutor em relações internacionais pelo programa de PhD conjunto do King’s College London (KCL) e do IRI/USP. Jornalista, tem mestrado em Brazil in Global Perspective pelo KCL e é autor de livros como "Brazil’s international status and recognition as an emerging power: inconsistencies and complexities" (Palgrave Macmillan), "Brazil, um país do presente" (Alameda Editorial), "O Brazil é um país sério?" (Pioneira) e "o Brasil voltou?" (Pioneira)

Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

Cadastre-se para receber nossa Newsletter