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Enquanto isso, em Moscou

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Em artigo, o embaixador Renato L. R. Marques argumenta que os repetidos fundamentos da invasão da Ucrânia por Putin parecem forjados no contexto da ambivalência russa entre o impulso messiânico e o sentimento de insegurança, que resulta em aventuras militares

Vladimir Putin discursa em estádio e defende a invasão russa da Ucrânia, em março de 2022 (Reprodução)

Por Renato L. R. Marques*

A guerra na Ucrânia é um fenômeno global que manteve em frente à televisão pessoas que não costumam acompanhar temas de política internacional. Não porque esta guerra seja mais letal do que outras, nem porque as imagens de destruição material sejam mais chocantes do que as exibidas em outros conflitos armados, tampouco porque a barbárie infligida contra a população civil ucraniana seja mais condenável do que a praticada em outros recantos do mundo, menos ainda porque seja a primeira a decorrer de uma ação militar não provocada e, portanto, contrária ao direito internacional e ao espírito da Carta das Nações Unidas.  Mas porque ocorre na Europa, no maior núcleo civilizacional do planeta.

Na periferia da Europa, dirão os puristas, mas ainda assim, nos arredores do berço da cultura ocidental, onde floresceu o Renascimento e o Iluminismo, que foram os modelos das principais realizações do período de Pedro, o Grande, que modernizou a Rússia e fundou São Petersburgo, em 1703. E sobretudo porque é uma guerra com todos os sinais trocados.

‘Não se trata de conter um regime que estivesse exterminando sua população, ou que estivesse acumulando armas de destruição em massa, ou que estivesse se preparando para invadir seu vizinho’

Não se trata de conter um regime que estivesse exterminando sua população ou ameaçando o estado de direito (a Ucrânia está listada entre os países de maior tendência democratizante nos últimos 3 anos, pelo Observatório da Democracia); ou que estivesse acumulando armas de destruição em massa (ao contrário, a Ucrânia independente era a terceira maior potência nuclear, mas em 1996 entregou à Rússia os últimos mísseis nucleares do seu estoque de armas da época soviética); ou que estivesse se preparando para invadir seu vizinho (a Ucrânia nunca deu mostras de beligerância contra os países da região, nem se conhece nenhum país próximo que alimente pretensões de ocupar ou reclamar territórios sob a bandeira da Rússia ou sob seu guarda-chuva atômico).

Isto posto, e como diziam os velhos filmes de espionagem, da época da Guerra Fria, “enquanto isso, em Moscou”, é difícil imaginar que a Rússia, maior país do mundo, com 17 milhões de km² (quase o dobro do Canadá, segundo maior), possa estar passando por uma crise de claustrofobia. Não apenas seu território é imenso, como o país detém uma rica variedade de depósitos minerais estratégicos e dois produtos críticos: gás e petróleo. Com eles, montou uma importante rede de dutos que tornou a Europa dependente de seus fornecimentos.

Fica, portanto, em tese, comprometida a hipótese de que o principal objetivo da invasão russa seja apenas uma guerra de conquista, destinada a assegurar o abastecimento de matérias-primas e a reforçar seu parque industrial (como foi o caso da Alemanha nazista, em sua implementação da política de lebensraum/espaço vital, no caso dos Sudetos e, depois, do resto da Checoslováquia, com o argumento da defesa das populações de etnia alemã, sob o manto do Acordo de Munique, de setembro de 1938). Afirmação que não pode desconsiderar a riqueza mineral e industrial da área que a Rússia quer abocanhar na Ucrânia, onde se concentrava parte considerável do complexo industrial-militar da extinta URSS e onde estão localizadas minas de carvão e ferro, usinas siderúrgicas, fábricas de grandes turbinas para aviação e hidrelétricas, engenharia e construção de mísseis, equipamento militar e agrícola, estaleiros, usina nuclear e portos marítimos. Um acervo nada desprezível, mesmo para uma campanha cujo propósito declarado seja um impreciso acerto geopolítico de contas com o Ocidente e a busca de ganhos tão imateriais quanto o reconhecimento de seu poder, respeito e tratamento igual pelos EUA.         

Dada a inviabilidade de ocupar o país todo, por sua extensão e pela inadequação do volume de tropas reunidas para esse fim, não seria de se descartar a hipótese de que o plano se restringisse, em uma primeira etapa, ao leste do país (Donetsk e Lugansk), com a ocupação das províncias ao longo da fronteira que formam um corredor até a Crimeia (esta, indispensável para sua projeção como potência regional no Mediterrâneo), fatia que lhe daria a exclusividade do Mar de Azov. Caso a ofensiva se estenda até Odessa, mais do que o controle do Mar Negro, a Rússia arrebataria todas as saídas ucranianas para o mar, asfixiaria a economia do país e o tornaria mais vulnerável a uma futura incursão (anunciada desde já pela destruição de suas cidades e ativos industriais, como um fator de debilitamento de sua capacidade operacional, de sua resistência militar e de erosão do moral de suas tropas).

Nesse cenário, a Ucrânia se sujeitaria a um papel coadjuvante, de grande produtora agrícola, dependente da boa vontade da Rússia para o escoamento de sua produção. A exclusão atual do resto do país da ofensiva em curso seria, de alguma forma, “compensada” pelo êxodo de boa parte da mão-de-obra existente, enfraquecendo seu peso político nos grandes centros urbanos cosmopolitas, e gradativamente reduzindo a Ucrânia às suas comunidades rurais, conservadoras e religiosas (segundo a nem sempre confiável “sabedoria convencional”), teoricamente mais predispostas a aceitar a presença russa.

Também em compasso de espera ficaria Belarus, presidida por um líder autoritário, no poder desde 1994, aliado de Putin em todas as photo opportunities. O que não o motivou a enviar tropas para a invasão do vizinho, preferindo as manter na fronteira. Mesmo sendo um nacionalista bielo-russo, Lukashenko é mais maleável e atento à dependência de seu país do gás, petróleo, apoio militar e, em última instância, dos humores financeiros do Kremlin, sobretudo depois dos abalos políticos provocados pelas grandes manifestações na capital, em 2020, em repúdio a mais uma reeleição sua.

 A incorporação efetiva (ou a desmilitarização, no âmbito de uma espécie de “protetorado”) dos dois países localizados em seu flanco ocidental daria a Putin, além da ambicionada distância dos pretensos “poderes rivais”, a vantagem adicional e não-desprezível de somar contingentes significativos de eslavos ao diversificado melting pot da Federação Russa, onde em uma projeção de longo prazo deixarão de ser maioria.

Consolidados esses ganhos preliminares, estariam criadas as condições para, no momento que julgar mais apropriado, testar a real determinação da Aliança Atlântica de resistir a uma agressão contra algum dos membros de seu sistema de defesa coletiva (de preferência um que apresente características mais acentuadas de soft underbelly). Que alcance teria essa outra etapa, é difícil julgar.

Putin, em seu pronunciamento de 12 de julho de 2021, defendeu a tese de que todas as Repúblicas ex-soviéticas deveriam “retornar às fronteiras em que aderiram à União”, em 1922. O Comunicado Conjunto com a China, de 4 de fevereiro de 2022, manifesta a intenção de “defender rigorosamente os resultados da Segunda Grande Guerra e a ordem existente pós-guerra mundial”. Há quem se valha ainda de uma “teoria do revanchismo”, de Hans Morgenthau, pela qual os “países derrotados” (o que equivaleria ao caso da Rússia, em 1991) se empenhariam em “retomar os territórios que perderam e, se possível, ganhar ainda mais do que perderam”, como forma de “retomar seu antigo lugar na hierarquia do poder mundial”. Nesse contexto, J. L. Fiori recorda que “a Rússia perdeu 5 milhões de quilômetros quadrados e 140 milhões de habitantes” (uma área tão vasta quanto a Ucrânia, os países bálticos, os Balcãs, o Cáucaso e os países da Ásia Central). Em qualquer leitura, um revisionismo radical e despropositado do mapa geopolítico da Europa e adjacências, em nome do anacrônico imperialismo russo.

Vistas nessa perspectiva, as propostas de cessar-fogo surgidas até agora, como a italiana, não parecem ter grandes possibilidades de êxito. Primeiro, porque implicariam o reconhecimento tácito, pela Rússia, da impossibilidade de uma vitória militar sobre o terreno. Segundo, porque estão muito distantes dos megalômanos objetivos estratégicos anunciados por Putin. E, terceiro, porque não levam em conta o apoio que Zelensky conseguiu amealhar no Ocidente, desconsideram os efeitos políticos, na Ucrânia, de uma rendição camuflada e não tomam na devida conta lições do passado, como a pesada Cortina de Ferro imposta pela Rússia, no pós-guerra (como previra Churchill desde 1946), que sujeitou todos os antigos Estados da Europa Central e Oriental “à influência soviética” e a “medidas de controle de Moscou”. O mesmo Churchill que advertira “não acreditar que a Rússia soviética desejava a guerra, mas os frutos da guerra e a expansão indefinida de seu poder e doutrina”. Essa rationale parece subjacente à frase de Putin, em seu Discurso sobre o Estado da União, em 25 de abril de 2005, no sentido de que “a morte da URSS foi a maior catástrofe geopolítica do século” passado.

Tal como estamos, superado o marco simbólico dos cem dias do início dos combates, vários dos ambiciosos cálculos geopolíticos do Kremlin parecem estar comprometidos: a Europa sai mais unida do episódio, a Otan se fortaleceu, Suécia e Finlândia pleiteiam seu ingresso na Aliança e os EUA, inicialmente recalcitrantes e descrentes da capacidade de resistência da Ucrânia, tiveram, nas palavras entusiasmadas de Roman Romaniuk, “a chance de ser grande de novo/ to be great again”. O fornecimento de mísseis de médio alcance e de alta precisão à Ucrânia, anunciado em junho, poderá mudar os rumos do conflito em um sentido não de todo previsível. As sanções econômicas à Rússia não pararam a guerra, mas produziram danos perceptíveis em sua participação no mercado financeiro (sobretudo de swift). Além disso, a Rússia compromete sua imagem em âmbito internacional, ao ser responsabilizada pela crise de abastecimento alimentar (com impacto sobretudo dramático sobre áreas pobres do Norte da África), ao insinuar repetidas ameaças de recurso a ataques nucleares “táticos” (como se nessa escala fossem defensáveis) e ao deixar suas tropas em Bucha executar, de forma fria e calculada, um novo My Lai.

Putin terá que pesar o custo político-econômico-militar de perseverar no caminho que traçou, seja qual for sua principal motivação e os meios para alcançar seus fins. A presunção inicial era de que as manobras russas estavam voltadas a fortalecer o flanco ocidental do país, que desde a extinção da URSS retrocedeu a uma linha imaginária que liga São Petersburgo, ao norte, a Rostov-on-don, ao sul. Como resultado, sua fronteira nunca teria estado tão próxima de Moscou. “Em sua condição de potência terrestre”, acrescentou Tim Marshall, em 2016, “a Rússia está vulnerável, acomodada em uma planície com poucas barreiras naturais capazes de frear um ataque inimigo vindo do Oeste”.

A esse quadro, ter-se-ia que acrescentar a desfavorável configuração marítima da Rússia, cuja frota naval está condenada a seguir rotas que cruzam mares internos ou estreitos controlados pela Otan (São Petersburgo no Báltico, Murmansk no Ártico, Sebastopol no mar Negro, e até Vladivostok, às margens do mar do Japão). Argumentos que, se bem possam estimular tendências paranoides, aplicam-se basicamente a cenários históricos de guerra convencional (improváveis, ante o conhecido poder de dissuasão das ogivas disponíveis no arsenal nuclear da Rússia), em um quadro de conflito de interesses não identificado (dados os benefícios auferidos pela Rússia e pela Europa no intercâmbio energético). O relacionamento com a Europa parecia orientado na direção de uma crescente interdependência e complementaridade, graças aos suprimentos de gás e petróleo, o que –em uma projeção otimista– poderia vir a redundar em uma eventual parceria futura (aposta que pelo menos a Alemanha de Merkel parecia favorecer –o que a deixa agora, retrospectivamente, na incômoda posição de ser identificada como um “novo Neville Chamberlain”).  

A conjugação desse vasto território com uma fronteira terrestre aberta e a ausência de portos oceânicos (exceto Vladivostok, no Pacífico), pode assim constituir um cenário de insegurança para a Rússia somente se projetado contra o pano de fundo de um mundo historicamente percebido como hostil e voraz, como resultado da memória teimosa de dois episódios traumáticos: as invasões de seu território por Napoleão, no início do século XIX, e por Hitler, na Segunda Guerra. Balanço que se choca, entretanto, contra o número de vezes que as tropas russas incursionaram, desde 1991, em países de seu entorno regional, por iniciativa própria (Chechênia, Geórgia, Ucrânia) ou a convite de déspotas locais (Belarus, Cazaquistão).

O DNA desse ativismo militar não parece ter-se debilitado desde o Longo Telegrama, de 1946, do diplomata e cientista político americano George Kennan, para quem a URSS não poderia manter “uma coexistência pacífica permanente com o Ocidente”, como resultado de sua “visão neurótica dos assuntos mundiais” e do “instintivo sentimento russo de insegurança”. Averell Harriman, embaixador em Moscou na mesma época em que Kennan esteve por lá, também considerou difícil para Stálin, um realista, “entender a crença americana em princípios abstratos” e por que “nós nos empenhamos em interferir com a política soviética em um país como a Polônia, que ele estima tão importante para a segurança da Rússia.”

Da mesma forma Henry Kissinger, no seu livro Diplomacia, concluiu no sentido de que a “excepcionalidade” russa “repousa na persistente ambivalência entre seu impulso messiânico e seu arraigado sentimento de insegurança”, que “com frequência resulta em aventuras militares”. É nesse contexto que parecem forjados os repetidos fundamentos da invasão por Putin, formado na arraigada tradição russa imperial e soviética, no sentido de “libertar” e “desnazificar a Ucrânia”, através de sua sinistra “operação militar especial”, que impõe graves desafios ao direito internacional, à diplomacia multilateral e à paz regional.


* Renato L. R. Marques é diplomata, foi embaixador na Ucrânia (2003/2009) e em Belarus (2011/2014)


Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional


Referências:

– Fiori, José Luís. Entrevista ao site Brasil 247, em 12/2/22 e artigo “A crise da Ucrânia e o acordo entre Rússia e China”, Sul 21, Opinião, 18/2/22  

– Kennan, George. Boundless world history s.d. “The Cold war – The Long Telegram.”https://courses.lumenlearning.com/suny-hcc-worldhistory2/chapter/the-long-telegram/.

– Kissinger, Henry. Diplomacy, A Touchstone Book, 1994

– Kluth, Andreas. “Merkel will enter History as the Neville Chamberlain of our Time”, The Washington Post, 9/6/22.

– Marques, Renato L R. “Memórias de Terrano Quesmar – maragato, diplomata e aristotélico nato”, capítulos “Kiev – revolução laranja em campo branco de neve” e “Minsk – enquanto o ‘amigo urso’ não vem”, de dezembro de 2020

– Marques, Renato L R. “Pensando a Ucrânia”: “Análises de Conjuntura” revisa do CEBRI, 28/3/22

– Marshall, Tim. “The power of Geography – Ten maps that reveal the future of our world”.

– Putin, Vladimir. “On the historical Unity of Russians and Ukranians”, de 12/7/21, in en.kremlin.ru.

– Romaniuk, Roman. “Chance de vencer. O que a Ucrânia está concordando com o Ocidente”, Kyiv Post, 12/5/22 (original em ucraniano).

– Snyder, Timothy. “Bloodlands: Europe between Hitler and Stalin

– Wells, H.G. Entrevista com Stálin, New Statesman and Nation,  27/10/1934

Uma resposta

  1. Excelente artigo, de grande importância para se entender melhor a crise atual.
    Renato une seu forte conhecimento da zona em crise à sua cultura diplomática, dentro de um belo estilo literário.
    Parabéns, Renato e um forte abraço,
    Gilberto Filizola

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