31 maio 2023

Perspectivas jurídicas e políticas da cassação do registro de Deltan Dallagnol pelo Tribunal Superior Eleitoral

Decisão que cassou o registro de deputado federal do ex-procurador gerou um grande debate jurídico e discordâncias em relação à lei ou a decisões judiciais são comuns. Para pesquisador, é questionável tecer críticas com base em argumentos meramente políticos, populistas e até antirrepublicanos que degradem tais instituições e a confiança nelas, especialmente quando encabeçadas por ex e atuais membros dessas instituições

Decisão que cassou o registro de deputado federal do ex-procurador gerou um grande debate jurídico e discordâncias em relação à lei ou a decisões judiciais são comuns. Para pesquisador, é questionável tecer críticas com base em argumentos meramente políticos, populistas e até antirrepublicanos que degradem tais instituições e a confiança nelas, especialmente quando encabeçadas por ex e atuais membros dessas instituições

O ex-procurador e deputado federal cassado Deltan Dallagnol durante participação no programa Roda Viva (Foto: Reprodução)

Por Felipe Tirado*

Nas últimas semanas houve um relevante debate jurídico em relação à decisão do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) que cassou o registro do deputado federal Deltan Dallagnol. Este texto tem como objetivo analisar alguns pontos desse debate, levando em conta também as perspectivas políticas.

Como exposto por Rodrigo Mesquita no Twitter, três fios expõem relevantes aspectos da cassação e suscitam importantes perspectivas sobre a decisão. Na ordem citada por Rodrigo, os fios foram escritos por Letícia Kreuz, professora da UFPR, Fabio de Sá e Silva, professor da University of Oklahoma (que acrescenta pontos ao fio feito por Letícia) e Horacio Neiva, Doutor pela USP, advogado e professor — que apresenta uma perspectiva divergente dos outros. Certamente, sugerimos a leitura dos três.

Tais fios expõem a importância de um debate embasado sobre os fundamentos de decisões judiciais, inclusive para sua legitimidade e para o desenvolvimento de uma maior integridade jurisprudencial. Da perspectiva desta coluna, o debate suscita a análise de três aspectos relevantes que decorrem um do outro.

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O primeiro ponto diz respeito às críticas contra a decisão, feitas, por muitos, a partir de uma perspectiva mais política do que jurídica. O cerne dessas críticas diz respeito às inferências feitas na decisão — no sentido de deduções necessárias para um argumento lógico, como bem lembrado por Horácio Neiva.

Ao contrário do declarado pelo ex-procurador em entrevista à Globo News—em um exemplo de uma defesa mais política do que jurídica de sua situação—não há “quatro suposições, uma em cima da outra” na decisão do TSE. Na realidade, há uma inferência decisional a partir de uma previsão legal. Ou seja, as outras três “suposições” (atribuídas pelo deputado à decisão) têm como origem o texto da Lei da Ficha Limpa. Em seu artigo 1°, inciso I, alínea q, a lei prevê que se tornarão inelegíveis para qualquer cargo.

Os magistrados e os membros do Ministério Público que forem aposentados compulsoriamente por decisão sancionatória, que tenham perdido o cargo por sentença ou que tenham pedido exoneração ou aposentadoria voluntária na pendência de processo administrativo disciplinar, pelo prazo de 8 (oito) anos;” (com destaque)

Assim, a ao contrário de serem “suposições” (como o parlamentar defende de forma um tanto quanto infiel às suas posições anteriores, como se distinguisse de seus precedentes), há uma previsão legal — compreendida como uma espécie de presunção de má-fé — dos membros do Ministério Público que tenham pedido a exoneração ou aposentadoria voluntária de seus cargos, antes da conclusão do processo administrativo disciplinar, visando afastar a inelegibilidade.

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Nesse sentido, o autor da porção relativa ao Ministério Público na alínea q da lei, o ministro Flávio Dino (à época deputado federal), a justificou na necessidade de “evitar que o pedido de exoneração ou de aposentadoria voluntária seja realizado para afastar eventual inelegibilidade” como forma de burlar o “espírito” do Projeto de Lei Complementar — que visa efetivar os “valores tutelados pelos princípios da moralidade e probidade administrativa”.

Ainda em relação à validade da lei, vale ressaltar que, em 2012, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu por sua constitucionalidade. Assim, é possível concordar ou discordar da lei e da decisão do Supremo por sua constitucionalidade — como é o caso do autor e de muitos outros que defenderam a cassação — e até propor iniciativas para revisão da norma. Entretanto, como defendido pelo próprio Dallagnol, enquanto procurador, (e também pelo autor deste texto e pelos juristas citados acima) a lei está em vigor e deve ser seguida de forma efetiva — ou, segundo o ex-procurador, de forma ainda mais rígida.

‘O TSE não faz uma série de “suposições” ou mesmo “exercício de futurologia”, mas uma inferência decisional a partir do texto da Lei da Ficha Limpa’

De tal maneira, é possível afirmar que o TSE não faz uma série de “suposições” ou mesmo “exercício de futurologia”, mas uma inferência decisional a partir do texto da Lei da Ficha Limpa—inferência que o idealizador da lei compreende ser compatível com o “espírito da lei”. A inferência feita pela corte foi que, ao requerer exoneração enquanto durante o curso de “15 procedimentos de natureza diversa” contra o ex-procurador, Dallagnol cometeu “fraude à lei” caracterizada:

“Pela prática de conduta que, à primeira vista, consiste em regular exercício de direito amparado pelo ordenamento jurídico, mas que, na verdade, configura burla com o objetivo de atingir a finalidade proibida pela norma jurídica”. 

De tal forma, segundo a decisão:

“Dallagnol antecipou sua exoneração em fraude à lei. Ele se utilizou de subterfúgios para se esquivar de PADs ou outros casos envolvendo suposta improbidade administrativa e lesão aos cofres públicos. Tudo isso porque a gravidade dos fatos poderia levá-lo à demissão.”— novamente, ainda que a sanção concreta não fosse requerimento da lei, mas apenas o pedido de exoneração.

‘O ex-procurador continua reproduzindo práticas comuns da sua época de Lava Jato, ao criticar decisões judiciais que não lhe convém’

Em relação à defesa política feita pelo deputado, e seguindo a tese defendida por Fabio de Sa e Silva, é possível afirmar que o ex-procurador continua reproduzindo práticas comuns da sua época de Lava Jato, ao criticar decisões judiciais que não lhe convém — levando, em última instância, a uma erosão cada vez maior da confiança pública nas cortes.

Ademais, como lembra Letícia Kreuz, a corte não precisaria ter feito a inferência que pode ser vista como uma interpretação ampliativa da lei (perspectiva defendida pela decisão do Tribunal Regional e explicada no fio feito por Horacio). Segundo a professora, à época de sua saída do Ministério Público Federal, a sanção de dois processos administrativos disciplinares concluídos contra Deltan foram suspensas, em razão de judicialização pelo então procurador. Após sua saída, como aparenta ser o costume, esses processos foram arquivados.

A suspensão dos processos administrativos se deu pelo fato de o procurador contestar a punição atribuída a ele em relação a esses processos — advertência e censura. Assim, como fez a corte, seria possível concluir que, caso houvesse uma nova condenação em processo administrativo disciplinar, a pena poderia ser mais grave (ainda que não fosse necessário).

Em relação às punições pelo órgão de controle, uma breve digressão é necessária. No caso, as penas mais brandas compreendem advertência, a censura e a suspensão. As penas mais graves são a aposentadoria compulsória, a demissão — para membros em estágio probatória — e, posteriormente, a solicitação de cassação da aposentadoria compulsória, perante o judiciário; neste caso, perante o STF.

Entretanto, quando de fato há punição pelo Conselho Nacional do Ministério Público, estas são consideradas brandas em relação a outros órgãos da administração pública. Além disso, quando as penas são aplicadas pelo órgão, é possível que a continuidade prevista perante o judiciário não seja célere. Como exemplo, ainda não há registro de movimentação disponível perante o STF da ação necessária para a demissão de Diogo Castor de Mattos—colega de Dallagnol demitido poucos dias antes de sua saída do órgão.

Após a digressão, é possível avançar para o segundo ponto de relevância. O segundo ponto a ser analisado diz respeito à decisão em relação à jurisprudência do TSE. Por um lado, a decisão se distingue da jurisprudência do tribunal, por outro lado, a distinção do caso se baseia em outro precedente. No primeiro sentido, a decisão se distingue do precedente, pois, naquele caso, não houve conclusão pela tentativa de fraude, nem indícios de “manobra para burlar o óbice à capacidade eleitoral”. Em relação ao precedente seguido pelo TSE, há decisão do STF que reconhece a fraude à lei visando contornar a causa de inelegibilidade para presidente de tribunal (Reclamação 8.025/SP).

Assim, em um primeiro momento, é possível afirmar que a decisão do TSE observou os precedentes relevantes — distinguindo-se de um e seguindo o outro. Inicialmente, não há que se falar em decisão excepcional; entretanto, citando Letícia, mais uma vez: “saberemos no futuro”. Ou seja, se houver manutenção do entendimento, a corte pode ter alterado seu precedente ou, caso siga o entendimento em outros casos similares (nos quais compreender ter havido fraude), feito o distinguishing do caso concreto do ex-procurador (a não aplicação do precedente ao caso, por este não se encaixar nos parâmetros relevantes). Ainda assim, é importante ressaltar, como lembra Fabio, que, em razão da singularidade do caso sob análise, há a possibilidade de a decisão ser, “mesmo, excepcional”.

‘Acusações de que decisões ou investigações são “politicamente motivadas” são comuns. Aqueles que denunciam o sistema judicial por tais práticas muitas vezes visam plantar dúvidas em relação à sua imparcialidade ou efetividade’

Finalmente, o último ponto que este texto analisa diz respeito à natureza do debate sobre a decisão e suas possíveis consequências. Evidentemente, de uma perspectiva política, acusações de que decisões ou investigações são “politicamente motivadas”, fruto de “conspirações” ou até mesmo “parciais” contra determinado investigado, réus ou cassados são comuns. A tendência é exposta na literatura por muitos, como lembra Martin Shapiro em um artigo sobre independência judicial. Exemplos internacionais recentes podem ser notados nas acusações feitas por Trump e George Santos, nos EUA. Mais do que isso, críticas a essas acusações eram repetidamente feitas por Deltan (e outros) aos réus da Lava Jato.

Ao fazerem tais acusações, aqueles que denunciam o sistema judicial por tais práticas, muitas vezes visam plantar dúvidas em relação à sua imparcialidade ou efetividade. Essa perspectiva (de erosão da confiança nas cortes) torna ainda mais temerário que ex-membros do sistema de justiça façam tais acusações em relação a este — acusações que anteriormente criticavam de forma fervorosa — agora que se veem no lado oposto das ações. Inda mais temerário ainda (parafraseando Guimarães Rosa) é que críticas políticas sejam feitas por membros do sistema que ainda se encontram no exercício de suas funções — sendo essas as com maior potencial de degradação.

Em conclusão, discordâncias em relação à lei ou a decisões judiciais são comuns. Por um lado, como exposto, há caminhos legítimos para revisar a legislação. Por outro lado, como exemplificado, discutir os aspectos legais das decisões é necessário para a legitimidade delas e para o desenvolvimento de uma maior integridade jurisprudencial. O que é questionável, da perspectiva do fortalecimento do Estado Democrático de Direito e das instituições necessárias à sua efetivação, é tecer críticas com base em argumentos meramente políticos, populistas e até antirrepublicanos que degradem tais instituições (e a confiança nelas) — especialmente quando encabeçadas por ex e atuais membros dessas instituições.


*Felipe Tirado é colunista da Interesse Nacional, doutorando em direito e política e professor substituto de jurisprudência no King’s College London.

https://interessenacional.com.br/edicoes-posts/felipe-tirado-e-preciso-entender-melhor-como-sao-julgados-os-casos-de-corrupcao-no-brasil/

Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

Felipe Tirado é colunista da Interesse Nacional e do Jota, teaching assistant, tutor e doutorando em direito no King’s College London (KCL). Mestre em direito pelo KCL e pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Pesquisador associado ao Constituições, Crisp/UFMG e ao King’s Brazil Institute

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