‘Mito da multipolaridade’ levou a expansão exagerada do Brasil nos anos 2000 e causou danos a posicionamento do país
Em entrevista, o pesquisador Luis L. Schenoni discute seu estudo que mostra como o Brasil acreditou que o potencial das nações emergentes era garantido pela multipolaridade para reclamar um lugar de destaque no mundo, o que acabou atrapalhando sua projeção global
Em entrevista, o pesquisador Luis L. Schenoni discute seu estudo que mostra como o Brasil acreditou que o potencial das nações emergentes era garantido pela multipolaridade para reclamar um lugar de destaque no mundo, o que acabou atrapalhando sua projeção global
Por Daniel Buarque
Uma crença em uma suposta multipolaridade do sistema internacional nos anos 2000 levou a uma expansão exagerada da diplomacia brasileira, segundo um artigo acadêmico publicado pela revista acadêmica Foreign Policy Analysis. De acordo com esta avaliação, o Brasil acreditou que o potencial das nações emergentes era garantido por esta multipolaridade para reclamar um lugar de destaque no mundo, o que acabou causando danos ao posicionamento global do país.
O estudo foi liderado pelo pesquisador argentino Luis L. Schenoni (com co-autoria de Pedro Feliú Ribeiro, Dawisson Belém Lopes e Guilherme Casarões). Professor de ciência política na University College London (UCL) e no Centro de Investigación y Docencia Económicas (CIDE), Schenoni explicou este processo em entrevista à Interesse Nacional. Segundo ele, de fato houve uma maior abertura a emergentes no início dos anos 2000, mas isso acabou não se concretizando, o que criou problemas para países que acreditaram demais no processo.
Schenoni explicou que começou a escrever e pesquisar a política externa do Brasil durante seu mestrado na Argentina, em 2012, quando analisou a influência do Brasil na região no período de ascensão do país, as rivalidades e conflitos que surgiam nesse período. O artigo sobre a expansão exagerada, ele disse, surgiu durante o doutorado na Universidade Notre Dame, nos Estados Unidos, quando analisou a evolução da política externa brasileira no momento da crise econômica e política, com o impeachment de Dilma Rousseff.
“Eu fiz um trabalho de campo em Brasília em 2017 e entrevistei entre 20 e 30 diplomatas e acadêmicos, e com base nisso publiquei um artigo no jornal argentino La Nación sobre a percepção da época do governo Temer sobre a retração da política externa brasileira. Parecia haver uma noção em Brasília, e sobretudo na Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República, de que agendas essenciais do Brasil haviam sido deixadas de lado e tinha existido essa ‘sobre-expansão’ em muitas agendas que não eram fundamentais”, contou.
Após a publicação do artigo, o então embaixador brasileiro na Argentina, Sergio Danese, respondeu ao artigo no mesmo La Nación alegando que não havia tido ‘sobre-expansão’ e que o Brasil havia feito o que qualquer país com as mesmas características, em termos do seu território, da sua população, das suas riquezas naturais, e sua economia, teria feito. “Na época, eu comecei a trabalhar em uma resposta para a imprensa argentina em que comparava o Brasil com outros países de características similares e mostrava que mesmo assim a gente ia chegar à conclusão de que teria havido uma ‘sobre-expansão’. Comecei a trabalhar isso dentro da metodologia de Synthetic Control Method, que foi desenhada para testar se unidades similares que podem servir para comparação para medir a expansão. A pesquisa rendeu resultados significativos, pois, se pegarmos todos os países do mundo e aplicarmos este método que seleciona variáveis (e usamos especificamente as variáveis que o Danese apresentou) e cria um contrafactual para o Brasil, aparece uma diferença significativa em todos os indicadores de extensão da política externa”, disse.
Leia abaixo a entrevista
Daniel Buarque – De que forma ocorreu essa expansão exagerada da política externa brasileira, e como ela foi diferente da de outros países?
Luis L. Schenoni – A análise tentou medir se um outro país igual ao Brasil teria feito uma expansão semelhante. O artigo foca especificamente em comparar o Brasil e países que são iguais em termos de população, território, diversidade natural, e outros indicadores. O método cria um Brasil contrafactual, com as mesmas características, mas a única diferença é a especificidade brasileira de ter tido uma política baseada em uma narrativa de um Brasil mais importante no mundo, que teve a ver com a ascensão do partido dos trabalhadores no poder.
A teoria indica que, para um país ter uma ‘sobre-expansão’, é preciso ter uma série de fatores importantes e de grupos de interesse que se beneficiam desse processo e que estão representados no governo para que isso vire política. Além disso é preciso ter apoio popular, o que se consegue muitas vezes através dessa ideia do mito da multipolaridade. Através desses mitos, esses grupos criam uma narrativa política que justifica essa ‘sobre-expansão’ e consegue cooptar o aparato estatal para que a expansão aconteça.
No caso desses mecanismos, é mais difícil comparar todos os países, então a nossa lógica foi analisar a causa e efeito, então analisamos de que forma isso ocorreu no Brasil.
Daniel Buarque – O Brasil sempre teve a ambição de expansão do seu papel global. Porque isso não ocorreu antes?
Luis L. Schenoni – O que aconteceu não foi só que o governo do PT quis levar isso adiante, mas o fato de que houve condições permissivas no mundo. Isso aconteceu para o Brasil por conta dessa questão doméstica, mas também por conta do contexto internacional. De um lado, houve o fato de que em uma unipolaridade, a partir dos anos 90, os Estados Unidos apoiavam esse tipo de iniciativa de ter lideranças regionais. Havia uma lógica de compartilhar o poder com potências regionais, descentralizando o poder com nações que não contestavam a primazia americana. E, por outro lado, a ascensão da China, que criou um boom econômico em muitos países, incluindo na América Latina. Então mesmo que o Brasil pudesse ter uma ambição desde o século XIX, nunca tinha havido um contexto que permitisse isso no nível internacional. Em outros períodos da história, como na Guerra Fria, os Estados Unidos se oporiam a esse tipo de expansão, ou em outras épocas, quando a situação econômica não permitiria a expansão. Existiu essa convergência em um momento histórico particular, o que criou um choque para os anos seguintes.
Daniel Buarque – Essa questão do contexto parece importante porque essa ideia de mito da multipolaridade não parece algo exclusivo do Brasil. Todo o mundo acreditou nele?
Luis L. Schenoni – Sim, isso foi evidente em todo o mundo, por mais que nos Estados Unidos tenha começado a haver uma percepção antecipada de que o mundo viraria essa bipolaridade em relação à China.
A multipolaridade foi uma possibilidade que foi considerada pelo mundo todo desde os anos 1990, quando se via que a governança teria que ser compartilhada pelo mundo, e nos anos 2000, com a ascensão dos BRICS, isso se tornou uma narrativa global. Quando falamos de mito da multipolaridade, queremos dizer que houve um momento em que aquilo deixou de ser apenas uma possibilidade, um jeito de pensar o mundo para o futuro, e virou um ato de fé, uma matriz que determinou como desenhar a política externa. E muitos atores passaram a acreditar que isso já era uma realidade e não apenas uma possibilidade para o futuro. Só que isso estava desvinculado da realidade de poder internacional. Quando se falava da multipolaridade e das potência emergentes, pensava-se em potencialidade e na possibilidade de em 20 ou 30 anos esses países poderem ter um papel mais relevante.
Mas, no caso do Brasil, e de outros países, especialmente entre os BRICS, isso virou uma característica identitária, do que o Brasil já era e teria que reclamar do mundo. Esse é o aspecto mítico que causou mais danos ao país.
É preciso ressaltar que este mito da multipolaridade também atingiu outros países que também acreditaram nele, acreditaram ser parte desse grupo seleto de países do futuro, como África do Sul, Índia, Turquia, países que também vivenciaram essa mudança de expectativas.
Daniel Buarque – E como isso está hoje? Alguém ainda acredita em multipolaridade?
Luis L. Schenoni – Acho que acabou de vez. O que se publica no mundo hoje é ligado à ideia da China como outro polo importante do mundo, além da Rússia, que se mantém como ameaça por conta do seu potencial. Mas houve uma virada nos últimos anos, especialmente desde que Trump assumiu nos Estados Unidos e a multipolaridade desapareceu bastante da cena.
Daniel Buarque – O artigo que você publicou fala sobre os efeitos desta chamada ‘sobre-expansão’ do Brasil, que depois passou a viver uma retração da sua política externa, mas em seguida houve um processo contrário de crença numa fantasia como o antiglobalismo. Como avalia a política externa brasileira atualmente?
Luis L. Schenoni – O que o ex-chanceler Ernesto Araújo representou é que mitos vão existir sempre e não apenas na política externa brasileira. Houve um momento, enquanto escrevi meu primeiro artigo refletindo sobre a retração no governo Temer, o clima era mais de desilusão e reajuste da política externa. Isso depois de uma crise fiscal, que levou a corte de verbas e redução do financiamento de embaixadas. Ali houve um momento de ressaca, de tentar ter alguma lucidez depois da festa. Mas com o tempo o Brasil de fato virou o oposto. De um ator com ambições globais, passou a este antiglobalismo e a ter essa visão dicotômica da realidade global, com uma grande ignorância em relação ao que tinha havido antes.
Sim, a imagem do Brasil sofreu muito com Bolsonaro. Muitas das coisas construídas durante o governo do PT tinham valor importante para o Brasil, e seria fácil manter o status e o prestígio do país mesmo com uma retração das ambições, mantendo a participação em organizações internacionais, e certo nível de cooperação internacional, numa posição constante em algumas agendas-chave, como a mudança climática. Mas o que aconteceu foi uma rejeição a isso, e o Brasil sofreu muito com este novo mito.
O artigo saiu em um momento em que vai haver eleição no Brasil e que não é oportuno, pois o leitor pode acabar vendo o artigo como uma crítica ao pt, quando na verdade ele quer fazer uma reflexão sobre a dificuldade de ter uma política externa com objetivos desenvolvimentistas, mas sem excessos que possam levar a uma crise fiscal ou a uma crise de corrupção. O artigo é uma crítica construtiva, e o que aconteceu com Araújo e dali para a frente foi muito pior.
Daniel Buarque – o ex-presidente Lula tem feito campanha para voltar à Presidência e falado muito em recuperar o prestígio do Brasil. Isso é possível? Sem o contexto de multipolaridade do passado, qual o limite para a expansão do Brasil no mundo?
Luis L. Schenoni – O Brasil estará em uma melhor posição em um possível governo de Lula para ter uma agenda que faça sentido, de buscar prestígio internacional e status, representar a América Latina em Fóruns internacionais.
O que está ausente, além das condições de permissibilidade do contexto global, são os fatores que levaram à expansão. O Brasil terá que ser muito mais sóbrio em sua política externa, no manejo das suas finanças, e duvido que uma ‘sobre-expansão’ possa acontecer de novo.
O artigo mostra que houve uma confluência de fatores externos e internos que não vão voltar a ocorrer se o Lula voltar ao poder. A política pode ser de expansão, mas vai haver freios do contexto político, com uma crescente bipolaridade, e ele não poderia ter uma política abertamente pró-BRICS, pois os Estados Unidos não vão mais olhar para o outro lado e não há mais espaço para um boom econômico como no passado. Além disso, no aspecto doméstico, depois da Lava Jato, não há espaço mais para uma expansão exagerada. Acredito que, após a eleição, tudo o que era bom a política externa do PT pode voltar, mas tudo o que era ruim dificilmente vai ser replicado.
Editor-executivo do portal Interesse Nacional. Jornalista e doutor em Relações Internacionais pelo programa de PhD conjunto do King’s College London (KCL) e do IRI/USP. Mestre pelo KCL e autor dos livros Brazil’s international status and recognition as an emerging power: inconsistencies and complexities (Palgrave Macmillan), Brazil, um país do presente (Alameda Editorial), O Brazil é um país sério? (Pioneira) e O Brasil voltou? (Pioneira)
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