08 julho 2022

Missões de paz da ONU na África estão funcionando melhor do que se imagina

Ações para a manutenção da paz costumam ter destaque internacional apenas quando fracassam, o que cria uma narrativa que desvaloriza essas missões, mas estudos mostram que na África essas missões estão sendo bem-sucedidas na proteção de civis, na contenção de conflitos, na resolução de guerras civis, na reconstrução das instituições estatais e na redução da violência em meio à guerra

Ações para a manutenção da paz costumam ter destaque internacional apenas quando fracassam, o que cria uma narrativa que desvaloriza essas missões, mas estudos mostram que na África essas missões estão sendo bem-sucedidas na proteção de civis, na contenção de conflitos, na resolução de guerras civis, na reconstrução das instituições estatais e na redução da violência em meio à guerra

Soldados de missão da paz da ONU em ação na República Democrática do Congo (Marie Frechon/UN Photo)

Por Lise M. Howard*

As manchetes da imprensa muitas vezes fazem parecer que as missões de manutenção da paz não estão indo bem. Elas tendem a destacar a violência, o deslocamento e o abuso. Os dados quantitativos, no entanto, contam uma história diferente. Os pacificadores estão salvando vidas e ajudando a manter a paz.

Estudei manutenção da paz desde o início dos anos 1990, quando trabalhei nas Nações Unidas em Nova York durante os fracassos devastadores na Somália e em Ruanda. Desde então, apliquei uma lente acadêmica à manutenção da paz –examinando todos os casos, não apenas os fracassos– e descobri que mais missões foram bem-sucedidas do que fracassadas. Também testemunhei forças de manutenção da paz em ação em vários conflitos na África, Oriente Médio e Europa.

’A narrativa de que as missões de manutenção da paz estão fracassando contribuiu para a diminuição dos orçamentos e impasses no Conselho de Segurança da ONU’ 

A narrativa de que as missões de manutenção da paz estão fracassando contribuiu para a diminuição dos orçamentos e impasses no Conselho de Segurança da ONU. O conselho não autorizou nenhuma missão de manutenção da paz nova e importante em oito anos.

Embora as missões de manutenção da paz da ONU tenham muitos desafios, elas continuam sendo um importante instrumento de paz.

Missões de paz na África

Durante os anos 2000, os países do sul da Ásia –Bangladesh, Índia, Nepal e Paquistão– forneceram a maioria das tropas de manutenção da paz. Na década de 2010, no entanto, tanto as principais contribuições de tropas quanto os locais das missões mais complexas mudaram para a África.

A maioria das tropas da ONU agora vem do continente, e ele abriga seis das 12 missões atuais, incluindo as quatro maiores. Essas missões estão na República Democrática do Congo, na República Centro-Africana, no Mali e no Sudão do Sul.

Essa mudança nos números reflete duas tendências.

Em primeiro lugar, incorpora a institucionalização da ideia de “soluções africanas para problemas africanos”. Essa ideia foi cunhada pelo falecido economista ganense George Ayittey na esteira da operação desastrosa dos Estados Unidos na Somália e tem sido amplamente debatida desde então. Representa uma resposta aos legados da escravidão, do colonialismo e, mais recentemente, das práticas de exploração e abuso.

Em segundo lugar, reflete uma mudança em alguns princípios básicos. Pesquisas sobre a transição da Organização da Unidade Africana para a União Africana traçam uma passagem do princípio da “não-interferência” para a “não-indiferença”. Esperava-se que as organizações regionais e outras ajudassem a prevenir conflitos dentro dos estados e salvassem vidas.

Mudanças semelhantes ocorreram no sistema da ONU de forma mais ampla. Isso se refletiu na adoção, em 2005, da doutrina da Responsabilidade de Proteger.

‘Na década de 2010, as missões de paz da ONU se expandiram em número e tamanho’

Na década de 2010, as missões de paz da ONU se expandiram em número e tamanho. Em 2015, cerca de 125.000 membros de missões de paz da ONU foram implantados em 16 missões, nove delas na África.

O número total de missões e tropas diminuiu desde então –para 12 missões e cerca de 90.000 pessoas– por várias razões. A mais notável é a ausência de apoio financeiro durante o governo do presidente dos EUA Donald Trump entre 2017 e 2021.

Cerca de metade das atuais operações de manutenção da paz da ONU são simples missões de monitoramento de cessar-fogo, e as outras são esforços mais complexos de construção do Estado em guerras civis.

As três missões mais complexas –no Mali, na República Democrática do Congo e na República Centro-Africana– são denominadas missões de “estabilização”. Essas missões enfrentam uma ampla gama de desafios, incluindo transições políticas não-democráticas, redes ilícitas e terroristas. Mas tudo o mais sendo igual, elas estão salvando vidas e impedindo a propagação da violência.

O problema com a manutenção da paz

As missões de paz ganham as manchetes quando estão associadas a tragédias, mortes e exploração e abuso sexual. Não há como escapar dessas realidades.

’As missões de paz ganham as manchetes quando estão associadas a tragédias, mortes e exploração e abuso sexual’

Há também outros problemas. Mercenários foram mobilizados na África Central e no Mali, e até mesmo forças externas bem intencionadas podem trazer consequências negativas e não intencionais.

Os pacificadores podem ser arrogantes e indiferentes. Eles podem criar “economias de manutenção da paz” e redes ilícitas. Eles geralmente aumentam as taxas de tráfico humano e sexo transacional.

Mas este não é o fim da história.

As boas notícias

Mais de uma dúzia de estudos quantitativos publicados nas principais revistas acadêmicas mostraram –usando diferentes conjuntos de dados, métricas, períodos de tempo e controles– que as forças de paz estão protegendo civis. É uma das descobertas mais robustas no campo das relações internacionais, e a maioria desses estudos restringe a seleção de casos à manutenção da paz na África.

Há uma conexão entre diversidade na manutenção da paz e menor quantidade de mortes de civis. Enquanto a luta militar exige unidade de comando e treinamento, a manutenção da paz não funciona da mesma maneira. Na manutenção da paz, a diversidade de habilidades e experiências estão ligadas a melhores resultados.

Ela provou ser eficaz na contenção de conflitos, na resolução de guerras civis, na reconstrução das instituições estatais e na redução da violência em meio à guerra.

Também evitou a recorrência da violência, reduziu a duração das guerras e ajudou a promover o crescimento robusto de sociedades civis. A manutenção da paz também está associada a menos violência sexual e de gênero durante conflitos violentos.

‘A ONU completou missões de manutenção da paz complexas em 16 conflitos. Destes, 11 implementaram mandatos com sucesso e deixaram os países’

Desde o fim da Guerra Fria, a ONU completou missões de manutenção da paz complexas em 16 conflitos. Destes, 11 implementaram mandatos com sucesso e deixaram os países. Nenhum desses países voltou à guerra civil. Essa é uma taxa de sucesso de dois terços.

As missões fracassadas mais notáveis ​​são aquelas de que as pessoas lembram vividamente –na Somália, em Ruanda, na Bósnia e, mais recentemente, no Haiti. Tão tragicamente como essas missões terminaram, elas não são a norma.

Mais frequentemente – como na Namíbia, em Serra Leoa, na Costa do Marfim, na Libéria, em El Salvador, no Camboja, na Eslavônia Oriental/Croácia e no Timor Leste –as missões de construção do Estado da ONU conseguiram cumprir mandatos complexos e partir.

Anos depois, esses países não são todos democracias perfeitas, mas também não estão em guerra.

O futuro da manutenção da paz

A missão de manutenção da paz não é uma luta de guerra.

A doutrina da manutenção da paz tem três partes: consentimento das partes, imparcialidade e uso limitado da força.

É fundamentalmente diferente das missões de contrainsurgência ou contraterrorismo, que se desdobram sem consentimento, ficam do lado do governo e muitas vezes empregam força ofensiva para obter ganhos militares.

Embora a manutenção da paz da ONU tenha sido eficaz, ela não está figurando nos esforços diplomáticos para acabar com conflitos ou ajudar em grandes transições, como as da Etiópia, Sudão ou Líbia.

As forças de manutenção da paz de terceiros não estão à mesa, apesar do fato de que a pesquisa acadêmica ao longo das décadas demonstrou que a promessa da manutenção da paz ajuda as partes a concordarem com a paz.

Recentemente, no Mali e na Somália, em contextos com atores extremistas violentos, as tropas africanas foram convidadas a travar guerras. Focar no que funcionou no passado –manutenção da paz– pode ser justificado.


*Lise M. Howard é presidente do conselho acadêmico sobre o sistema das Nações Unidas e professora de governo e serviço exterior na Georgetown University


Este texto é uma republicação do site The Conversation sob uma licença Creative Commons. Leia o artigo original, em inglês.


Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional


Daniel Buarque é editor-executivo do portal Interesse Nacional. Pesquisador no pós-doutorado do Instituto de Relações Internacionais da USP (IRI/USP), doutor em relações internacionais pelo programa de PhD conjunto do King’s College London (KCL) e do IRI/USP. Jornalista, tem mestrado em Brazil in Global Perspective pelo KCL e é autor de livros como "Brazil’s international status and recognition as an emerging power: inconsistencies and complexities" (Palgrave Macmillan), "Brazil, um país do presente" (Alameda Editorial), "O Brazil é um país sério?" (Pioneira) e "o Brasil voltou?" (Pioneira)

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