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Interesse Nacional
20 abril 2022

O Brasil pode ser um mediador na guerra entre Rússia e Ucrânia?

A busca por solução pacífica de conflitos é elemento constitutivo da diplomacia brasileira e limitações enfrentadas no passado não significam que o país está fazendo pouco, mas que pode fazer mais.

A busca por solução pacífica de conflitos é elemento constitutivo da diplomacia brasileira e limitações enfrentadas no passado não significam que o país está fazendo pouco, mas que pode fazer mais.

Por Mikelli Marzzini L. A. Ribeiro*

Chefes de Estado da Ucrânia e da Rússia durante negociação de paz em Minsk em 2014 (Ukrainian President press office)

O Ministro das Relações Exteriores, Carlos França, afirmou no fim de março que o Brasil poderia ser um mediador na crise entre Rússia e Ucrânia. Na ocasião, o ministro demonstrou preocupação com o volume das sanções lançadas contra a Rússia. Com ressalvas ao distanciamento geográfico do Brasil, França salientou que, considerando a “posição de serenidade, de construção de consenso nas Nações Unidas, [o Brasil] pode ser sim facilitador desse diálogo” .

Solução pacífica na política externa brasileira
O discurso do ministro França está em sintonia com a ideia de solução pacífica de controvérsias como traço identitário da política externa brasileira. Como documentado pela vasta literatura acadêmica sobre política externa brasileira – ad nauseam – a busca por solução pacífica de conflitos é elemento constitutivo da diplomacia do nosso país. O entendimento, maturado ao longo da história diplomática do Brasil republicano, foi inclusive sedimentado no art. 4º da Constituição Brasileira de 1988. O dispositivo traz as diretrizes constitucionais que devem guiar nossas relações internacionais. Como Dawisson Belém Lopes e Mario Valente demonstram em interessante pesquisa acadêmica, esse artigo constitucional adveio, em boa medida, da atuação política do próprio Itamaraty durante a constituinte.

A ideia de solução pacífica de conflitos não está apenas na retórica do MRE. É possível identificar o papel do país como facilitador em momentos importantes na história diplomática brasileira; sejam eles figurando como um dos principais líderes políticos em um quadro de mediação, ou como um fiador menor, em um processo liderado por outros Estados.

Por exemplo, já no começo do século XX, o Brasil, juntamente com Argentina e Chile, participou como mediador na crise entre México e Estados Unidos. O arranjo entre os três países foi conhecido como Pacto ABC (iniciais de Argentina, Brasil e Chile), ele foi um dos responsáveis do arrefecimento das tensões, sendo essencial para evitar a guerra entre os dois países.

Mais recentemente, na década de 1990, o Brasil atuou como relevante player em uma contenda entre Equador e Peru, chamada Guerra de Cenepa – uma disputa por certas porções de terras fronteiriças entre os dois países. Nesse caso, houve também importante participação das Forças Armadas, o que foi conhecido como diplomacia militar. O conflito foi encerrado por um Acordo de Paz entre os dois Estados em 1998, tendo sido nosso país, para os acadêmicos estadunidenses Beth Simmons e David Mares, o principal mediador.

Dois aspectos relevantes entre a participação brasileira nos conflitos mencionados acima podem dizer muito sobre possibilidades e limitações do nosso país como facilitador em controvérsias internacionais: 1) a preferência por atuar conjuntamente com outros parceiros regionais e 2) o fato de ambos os conflitos estarem localizados no continente Americano. Os dois pontos, em menor ou maior grau, encontram paralelos no discurso de França sobre a Ucrânia. O primeiro, ao França citar o Brasil como “um” facilitador, principalmente ao associar o papel de mediador com sua atuação nas Nações Unidas, o que remete ao multilateralismo como diretriz; o segundo, ao atestar claras limitações decorrentes da localização do conflito, quando o ministro faz uma ressalva sobre a localização da crise. O Brasil é uma potência média, em um continente que possui um hegemon regional (os Estados Unidos), o que claramente traz obstáculos para as pretensões de se aventar como grande mediador em cenários para além do sistema latino-americano.

O fator regional é revelador quando se olha para casos mais ressentes onde o Brasil teve destaque, como a liderança da MINUSTAH, operação de paz da ONU no Haiti. No âmbito sub-regional, o Brasil também tem participação em soluções pacíficas de conflitos contemporâneas, como na Colômbia. Apesar de não ter sido um ator central na pacificação das FARC, acordo mediado por Cuba e Noruega, o Brasil garante nas negociações que envolvem outro movimento menor, a ELN , em um segundo acordo de pacificação ainda não concluído – que por sinal encontra-se estagnado.

Limites, possibilidades e a conjuntura política atual
Não obstante o entendimento da diplomacia brasileira de que o país tem maiores condições de engajar na mediação internacional dentro de seu entorno geográfico, nosso país fez ensaios importantes como player global. O caso mais expressivo nesse sentido foi o acordo nuclear com o Irã. Juntamente com a Turquia, o Brasil conseguiu dos iranianos um compromisso que não havia sido alcançado pelas grandes potências. O entendimento foi sedimentado na chamada Declaração de Teerã de 2010. Como é sabido, houve rejeição do acordo pelas grandes potências, havendo consequente substituição por outro no qual essas grandes potências – o chamado P5+1 – tornaram-se os mediadores.

O malogro nas negociações com o Irã, sobretudo a resistência que o Brasil sofreu das grandes potências, provavelmente levou ao retraimento das pretensões de se alçar como mediador em outros conflitos globais. A Turquia, por outro lado, continua buscando ser um mediador relevante em situações de conflito, passando, inclusive, a atuar como stakeholder relevante na atual crise (vale lembrar que a guerra na Ucrânia está dentro do entorno estratégico dos turcos).

As limitações foram salientes nesse processo. O feedback negativo do evento talvez tenha reforçado a ideia de que, dadas as limitações estruturais do país dentro do sistema internacional, ele estaria impossibilitado de exercer sua desejada função de mediador internacional em situações inseridas em ambientes externos ao nosso entorno regional. Contudo, não seria essa uma postura determinística autoimposta muito mais do que uma decorrência de constrangimentos do sistema internacional?

A ideia de que a capacidade do Brasil como mediador estaria necessariamente limitada ao seu entorno regional, apesar de teoricamente plausível, é empiricamente contestável. E perde força quando comparada a casos bem-sucedidos no âmbito da política internacional.

A Noruega provavelmente é o caso comparativo de maior destaque nesse quesito. Apesar de seu IDH com números invejáveis, os noruegueses não são uma grande potência. A Noruega não possui armas nucleares, não tem uma extensão regional subcontinental, não possui uma das maiores populações do mundo nem um vasto território. Ainda assim, a capacidade de entrega da Noruega como mediador internacional impressiona. Desde sua participação nos Acordos de Oslo, em 1993 – os primeiros resultados significativos de negociações de paz entre a Autoridade Palestina e Israel – os noruegueses vêm tendo um papel de destaque nos principais teatros internacionais.

De 1993 até os dias atuais, os noruegueses já participaram/participam como facilitadores em mais de dez conflitos de grande envergadura internacional – sejam eles inter ou intraestatais . A Noruega vem atuando inclusive no continente Americano. Além de facilitador no conflito colombiano, como mencionado acima, os noruegueses também estão envolvidos no caso venezuelano. As negociações entre o governo de Maduro e a oposição iniciaram, inclusive, em Oslo, sendo apenas posteriormente transferidas para o México. Noruega e México hoje são os principais agentes na busca por solucionar a crise no nosso vizinho, juntamente com outros países que fazem parte do Grupo de Amigos da Venezuela (com Rússia e Países Baixos).

Vale salientar que decisões recentes da liderança Brasileira enfraqueceram sua posição como ator relevante mesmo na própria América do Sul. Nossa mudança de postura em relação à crise da Venezuela, que saiu de uma posição de relativa imparcialidade – relativa pois havia uma certa complacência de governos anteriores às lideranças chavistas – para uma clara parcialidade. Desde 2017, o Brasil passou a ingressar o chamado Grupo de Lima, o qual, dentre outras medidas, age para deslegitimar o governo de Maduro e legitimar a oposição. Em setembro de 2020, o governo brasileiro chegou a declarar persona non grata os representantes de Maduro no país, exigindo sua retirada. Ao tomar um lado, o Brasil foi de encontro a outro traço genético da diplomacia brasileira: o princípio da não-intervenção em assuntos domésticos. Certamente, tomar partido de forma tão explícita comprometeu a reputação de imparcialidade brasileira.

Em suma, o ponto sub-ótimo em que nos encontramos como mediadores em conflitos internacionais não significa que estamos fazendo pouco, mas que podemos fazer mais. Assim como a ideia de potência ambiental, a noção de um país pacífico é um asset nosso. Na arena política internacional, a solução pacífica de conflitos é, em certa medida, um bem público a ser entregue pelos Estados. O caso da Noruega revela que nossa capacidade de entrega está sendo comparativamente baixa. Observando e se espelhando em casos como esse, podemos identificar novas estratégias de atuação que ampliem nossa capacidade de entrega desse bem público na política internacional.


Referências
LOPES, Dawisson Belém; VALENTE, Mario Schettino. Construção Social dos Princípios Conformadores e das Normas Programáticas de Política Externa Brasileira. DADOS – Revista de Ciências Sociais, v. 59, n. 4, 2016, pp. 995-1054.
SIMMONS, Beth A. Territorial disputes and their resolution: the case of Ecuador and Peru. Washington: United States Institute of Peace, 1999.


*Mikelli Marzzini L. A. Ribeiro é professor adjunto de relações internacionais do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Doutor em Ciência Política pela UFPE, é fellow do projeto Civil War Paths, vinculado ao Centre for the Comparative Study of Civil War (University of Sheffield – Reino Unido), membro da Rede Brasileira de Pesquisa em Operações de Paz e do Núcleo de Pesquisa de Política Comparada e Relações Internacionais (NEPI) – UFPE.



Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

Miguel Mikelli Ribeiro é colunista do Interesse Nacional e professor de relações internacionais do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Mestre em RI pela Universidade Estadual da Paraíba e doutor em ciência política pela Universidade Federal de Pernambuco. É autor do livro "Política internacional contemporânea: questões estruturantes e novos olhares".

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