25 junho 2022

O Instituto Guimarães Rosa e a diplomacia cultural brasileira

Em artigo, embaixador Leonardo Gorgulho Fernandes explica que o IGR é a mais recente etapa de modernização e reinvenção de uma longa história em que relações exteriores estiveram aliadas a elementos culturais; instituto buscará promover ações internacionais de forma conjunta para impulsionar no mundo a língua portuguesa, a difusão cultural e a cooperação educacional

Em artigo, embaixador Leonardo Gorgulho Fernandes explica que o IGR é a mais recente etapa de modernização e reinvenção de uma longa história em que relações exteriores estiveram aliadas a elementos culturais; instituto buscará promover ações internacionais de forma conjunta para impulsionar no mundo a língua portuguesa, a difusão cultural e a cooperação educacional

Vista interna do Palácio Itamaraty (Foto: Ana de Oliveira/AIG-MRE)

Por Leonardo Gorgulho Fernandes

Em 31 março deste ano, com a criação do Instituto Guimarães Rosa, o Brasil ganhou novo instrumento para o exercício de uma longa e tradicional vertente da diplomacia brasileira: a promoção da cultura e da língua portuguesa no exterior e a cooperação educacional com terceiros países.

No Brasil, cultura e diplomacia andaram juntas desde antes da Independência. Figuras históricas, como Alexandre de Gusmão e José Bonifácio, estão associadas simultaneamente a feitos na área diplomática e a conhecimentos literário, científico e político. No início do século XX, o Barão do Rio Branco recrutou sistematicamente para o Itamaraty quadros no campo cultural do país.

O escritor e diplomata João Guimarães Rosa

A relação entre cultura e serviço exterior foi institucionalizada em 1934, ano em que é criado o Serviço de Expansão Intelectual, que marca os primórdios da diplomacia da cultura brasileira, com metas e objetivos claros. Em 1945, novo desenvolvimento: o ministério passa a organizar e estimular diversas missões de intelectuais brasileiros aos Estados Unidos, como a de Gilberto Freyre. Na década de 1950, escritores passam a ocupar leitorados e cátedras de estudos brasileiros em diversas universidades de prestígio também na América Latina e Europa.

Prenúncio das unidades locais do Instituto Guimarães Rosa, também começam a ser criados, no mesmo período, os primeiros Centros Culturais do Brasil (CCBs) no exterior, muitos deles contando com chefia de personalidades do campo artístico. Em 1961, a diplomacia cultural brasileira é estruturada de maneira ainda mais sistemática, a partir da criação do Departamento Cultural e de Informações, antecessor do Departamento Cultural e Educacional (DCED). 

Essa breve menção à trajetória dos assuntos culturais na estrutura do Ministério das Relações Exteriores permite concluir que poucas chancelarias no mundo contam com tão antigo e consolidado serviço cultural como a brasileira.

Ao longo das décadas, a marca característica de nossa diplomacia cultural foi a atualização, a modernização constante de seu perfil. Última etapa desse “reinventar-se”, o Instituto Guimarães Rosa é pautado por objetivos que atendem ao imperativo atual de fortalecer o planejamento estratégico da política externa cultural, de maneira a garantir modelo de governança integrado. Parte desse desafio é dar às ações no exterior sentido de conjunto e consolidar uma marca que leve à associação do Instituto com a promoção, por parte do governo brasileiro, da língua portuguesa, da difusão cultural e da cooperação educacional. 

Inspirado em institutos congêneres de chancelarias que dispõem de ativo serviço cultural, como Portugal, Alemanha e Espanha, o IGR permitirá harmonizar iniciativas culturais do Itamaraty no exterior e dotá-las de identidade comum. Contribuirá para o estabelecimento de sinergias, a interoperabilidade entre iniciativas da rede de embaixadas e consulados, a virtualização e a replicação de ações no exterior, além da otimização de recursos públicos. Privilegiará a articulação de pontes institucionais, em colaboração com segmentos representativos da indústria criativa brasileira, com representantes do campo da educação e com interlocutores relevantes no exterior.

‘A escolha de Rosa deve-se também ao fato de ter desempenhado importante papel como gestor no Itamaraty, utilizando a cultura como instrumento de ação diplomática’

O Instituto foi batizado em homenagem ao escritor e diplomata João Guimarães Rosa, uma das figuras de maior destaque da literatura brasileira, grande intérprete da realidade do país. Guimarães Rosa imortalizou personagens, paisagens e idiossincrasias do homem do sertão. Combinou narrativas ao mesmo tempo genuinamente brasileiras e bastante universais. Mas a escolha de Rosa deve-se também ao fato de ter desempenhado importante papel como gestor no Itamaraty, utilizando a cultura como instrumento de ação diplomática.  Em 1967, o então embaixador chefia a Força Tarefa Cultural, com o objetivo de dar novo impulso de modernização dos serviços culturais do Ministério. Em seu relatório, a difusão da língua portuguesa ocupa papel de destaque, por meio de propostas de traduções e divulgação de obras de autores brasileiros no exterior.

Para desenvolver seu trabalho, o IGR atuará com base em diretrizes de difusão cultural e de cooperação educacional já consagradas. A atuação do Itamaraty na área da difusão cultural se faz, tradicionalmente, mediante o apoio à realização de eventos propostos pela rede de embaixadas e consulados no exterior, produzidos diretamente por eles ou por terceiros que solicitam apoio financeiro. São priorizadas atividades naquelas áreas percebidas como de maior interesse e maior potencial de projeção da cultura brasileira localmente.

O IGR nasce em período propício, trazendo consigo a marca do Bicentenário da Independência. Em 2022, suas atividades serão essencialmente voltadas às celebrações da efeméride, em estreita coordenação com a Comissão Interministerial Brasil 200 Anos, que é também integrada pelo Itamaraty. Nossas embaixadas e consulados foram orientados, já em maio de 2021, a priorizar a celebração dos 200 anos em suas programações culturais. Recomendou-se que cada posto buscasse, na concepção de suas atividades, identificar referenciais que, quando possível, pudessem inserir-se no contexto das relações bilaterais do Brasil com o país anfitrião e a sociedade local. No ano passado, foram realizadas mais de 20 atividades alusivas ao Bicentenário, com alcance total de público superior a 15 mil pessoas, a despeito das restrições impostas pela pandemia. Para 2022, planeja-se realizar cerca de 200 atividades, sob a responsabilidade de 93 postos, em 80 países.

‘No plano da difusão da língua portuguesa, o IGR administrará uma rede de ensino composta por 24 unidades no exterior, que já atende a um público de mais de 12 mil alunos’

No plano da difusão da língua portuguesa, o IGR administrará uma rede de ensino composta por 24 unidades no exterior (antigos Centros Culturais Brasileiros), que já atende, em média anual, a um público de mais de 12 mil alunos. Essas unidades já desenvolveram cerca de 120 projetos de difusão do português, tanto como língua estrangeira, quanto como língua de herança, ação voltada às comunidades brasileiras no exterior. Com o objetivo de harmonizar a difusão do idioma nessa rede, foram lançadas, no início de 2019, diretrizes para a difusão do português pelo Brasil no exterior, bem como desenvolvidos currículos unificados para uso da rede de postos do Itamaraty.

O IGR promoverá também a virtualização do ensino e de atividades culturais, tornada premente no contexto da pandemia e incorporada, agora, às ferramentas do Instituto. E administrará o já tradicional programa de leitorados, sob o novo nome de Leitores Guimarães Rosa. Desenvolvido no exterior em parceria com a CAPES, o programa busca aproveitar profissionais criteriosamente selecionados para atuar em centros universitários de excelência internacional. Os leitores encontram-se assim em posição privilegiada para acompanhar as inovações e os cenários mais ricos para o ensino e a difusão do idioma português, bem como para promover a cultura brasileira. Ao final de 2022, haverá um total de 46 leitores brasileiros no exterior.

No campo da cooperação educacional, seu terceiro pilar, o Instituto dará seguimento aos tradicionais programas de Estudantes-Convênio de Graduação (PEC-G) e de Pós-Graduação (PEC-PG), coordenados com a CAPES e o CNPq. Principais ferramentas de cooperação educacional do Brasil, os PECs oferecem a estudantes de países com os quais o Brasil mantém acordo educacional, cultural ou científico-tecnológico vagas gratuitas para realizar os estudos de graduação (PEC-G) e bolsas de estudo para mestrado e doutorado (PEC-PG). O programa contribui para o fortalecimento das relações bilaterais com os países beneficiados e para a internacionalização das instituições de ensino superior brasileiras. Neste século, mais de 10 mil estudantes fizeram estudos no Brasil ao abrigo do PEC-G, muitos dos quais retornaram aos países de origem para ocupar posições de destaque nas respectivas sociedades.

O Instituto Guimarães Rosa surge, assim, como herdeiro de uma longa história de diplomacia cultural na Chancelaria brasileira. Ao mesmo tempo em que carrega a experiência acumulada e o patrimônio construído, entre muitos responsáveis, pelo diplomata que lhe dá nome, o IGR olha para o futuro, ciente de que deve também manter a tradição de constante renovação. Nessa tarefa, estará cumprindo o pensamento do próprio escritor: “Tudo que já foi, é o começo do que vai vir, toda a hora a gente está num cômpito”.   


 * Leonardo Gorgulho Fernandes é embaixador e secretário de Assuntos Consulares, Cooperação e Cultura do Ministério das Relações Exteriores.


Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional


Daniel Buarque é editor-executivo do portal Interesse Nacional. Pesquisador no pós-doutorado do Instituto de Relações Internacionais da USP (IRI/USP), doutor em relações internacionais pelo programa de PhD conjunto do King’s College London (KCL) e do IRI/USP. Jornalista, tem mestrado em Brazil in Global Perspective pelo KCL e é autor de livros como "Brazil’s international status and recognition as an emerging power: inconsistencies and complexities" (Palgrave Macmillan), "Brazil, um país do presente" (Alameda Editorial), "O Brazil é um país sério?" (Pioneira) e "o Brasil voltou?" (Pioneira)

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