27 junho 2022

O papel do Brasil na América Latina ‘pós-americana’

Cúpula das Américas revelou a fragmentação do continente, que se torna menos influente em temas globais, explica o pesquisador Michael Shifter, da Inter-American Dialogue; segundo ele, o Brasil é uma peça-chave na tentativa de tornar a América Latina relevante em nível global, mas isso depende de uma liderança política eficaz –o que não existe hoje

Cúpula das Américas revelou a fragmentação do continente, que se torna menos influente em temas globais, explica o pesquisador Michael Shifter, da Inter-American Dialogue; segundo ele, o Brasil é uma peça-chave na tentativa de tornar a América Latina relevante em nível global, mas isso depende de uma liderança política eficaz –o que não existe hoje

Foto Oficial da IX Cúpula das Américas, em Los Angeles (Alan Santos/PR)

Por Daniel Buarque

A Cúpula das Américas realizada no início do mês em Los Angeles, nos Estados Unidos, deveria servir para reforçar os laços entre o governo de Joe Biden e os demais líderes da região. Em meio a ausências marcantes, ameaças de boicote e concessões a interesses conflitantes, o encontro acabou revelando o estado fragmentado, problemático e sem liderança das Américas. Para o pesquisador americano Michael Shifter, a Cúpula se consolida como um marco do que chama de “América Latina Pós-Americana”.

“Não há uma direção coerente nem uma liderança forte e eficaz dos Estados Unidos ou de outros países da região”, disse Shifter em entrevista à Interesse Nacional. Segundo ele, falta uma visão hemisférica aos países do continente, que estão todos distraídos por problemas domésticos e falta de coesão de interesses internacionais. “A situação da relação dos Estados Unidos com a América Latina reflete o fracasso dos países da região em empreender reformas importantes para tornar a América Latina uma região mais competitiva para aumentar seu papel e influência nos assuntos globais e torná-la uma fonte provável de investimentos e interesse”, explicou.

Jair Bolsonaro e Joe Biden durante a Cúpula das Américas (Alan Santos/PR)

Professor da Georgetown University e pesquisador sênior do think tank americano Inter-American Dialogue, Shifter apresentou a ideia de um momento “pós-americano” do continente em um artigo que publicou na revista Foreign Affairs, escrito com o doutorando Bruno Binetti, sobre este novo cenário das Américas sem a liderança dos EUA. 

Na entrevista, ele diz que o Brasil tem influência na fragmentação do continente, já que perdeu o papel de importante ator da América Latina conquistado nos 16 anos de governos de Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva. A depender do resultado das eleições de outubro, avaliou, o Brasil tem potencial de tentar reconstruir um papel de liderança regional. “Se a ideia é tornar a América Latina relevante em nível global, isso é inconcebível sem um líder brasileiro eficaz”, disse, acenando a uma preferência internacional por uma volta de Lula ao poder no lugar de Bolsonaro.

Leia a entrevista completa abaixo

Daniel Buarque – Dias antes da Cúpula das Américas você publicou um artigo argumentando que o encontro poderia revelar o estado fragmentado, conturbado e sem liderança das Américas. Depois da Cúpula, acha que foi isso realmente que aconteceu?

Michael Shifter – Não vejo muitas evidências de coerência e liderança forte na Cúpula. Acho que o hemisfério está indo em muitas direções diferentes ao mesmo tempo, então não estou muito mais otimista em relação ao continente após a Cúpula. Não há uma direção coerente nem uma liderança forte e eficaz dos Estados Unidos ou de outros países da região. 

Isso não quer dizer que não tenha havido passos importantes no encontro, como a declaração de migração. E certos líderes deixaram uma impressão positiva, como o presidente Gabriel Boric, do Chile. Mas acho que, no geral, não foi uma Cúpula muito produtiva.

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Daniel Buarque – Você escreveu que a política dos EUA em relação à América Latina está presa no passado, e descreveu o que chama de América Latina pós-americana. Como vê essa relação dos EUA com o continente hoje em dia?

Michael Shifter – No artigo tentamos identificar maneiras como o relacionamento pode mudar e acho que houve alguns sinais positivos nessa direção, especialmente na questão da migração ou em como lidar de forma mais eficaz com a pandemia e os futuros choques de saúde, que inevitavelmente aparecerão nas Américas. Acho que houve alguns passos importantes relativos à recuperação econômica. Isso é tudo útil, mas não estamos falando sobre nenhuma grande visão hemisférica, ou sobre uma área de livre comércio das Américas ou uma comunidade de democracias. Qualquer coisa nessa escala é simplesmente impossível. 

‘Houve alguns passos importantes relativos à recuperação econômica. Isso é tudo útil, mas não estamos falando sobre nenhuma grande visão hemisférica’

Houve sinais na Cúpula de que as reivindicações de liderança hemisférica dos EUA soam vazias na América Latina, e que o país tem que ajustar seu papel e ser um parceiro e com quem trabalhar na América Latina. Isso não significa desengajar-se, mas apenas não fingir que tem todas as respostas ou que pode realmente exercer uma liderança eficaz, especialmente por conta das fraquezas que existem dentro dos próprios Estados Unidos, que são restrições muito substanciais ao que qualquer presidente dos EUA pode fazer em termos de política regional.

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Daniel Buarque – Essas questões internas dos EUA podem ser vistas como a origem dessa falta de conexão entre o país e a América Latina?

Michael Shifter – Acho que essa falta de conexão vem tanto de dentro dos Estados Unidos quanto da região e de fora dela –especialmente por causa de um país chamado China. Na Cúpula de 1994, a China provavelmente não foi sequer mencionada, e agora vê-se que é o grande assunto das discussões, já que é um parceiro regional consolidado para a maior parte da América Latina. 

‘Todos os governos americanos no século XXI foram bastante indiferentes em relação à América Latina, distraídos por outras prioridades de política externa e limitados por suas próprias políticas domésticas’

Todos os governos americanos no século XXI foram bastante indiferentes em relação à América Latina, distraídos por outras prioridades de política externa e limitados por suas próprias políticas domésticas. Isso começou com George W. Bush, continuou com Barack Obama, teve seu exemplo mais extremo com Donald Trump, mas essa tendência continuou com Joe Biden, enquanto os problemas domésticos pioraram e tornaram mais difícil para o governo americano realmente formar uma política regional engajada e comprometida. Além disso, a região se deteriorou consideravelmente, especialmente depois de 2012 e 2013, com o colapso dos preços das commodities, o que levou a retrocessos não apenas na democracia, mas também na redução da pobreza e da desigualdade. E a situação obviamente piorou por causa da pandemia –que foi teste real para o Hemisfério, mas no qual os Estados Unidos e toda a América Latina fracassaram no teste de cooperação e no teste de responder efetivamente a problemas profundos que foram tanto expostos quando causados ​ou exacerbados pela pandemia.

A situação da relação dos Estados Unidos com a América Latina reflete o fracasso dos países da região em empreender reformas importantes para tornar a América Latina uma região mais competitiva para aumentar seu papel e influência nos assuntos globais e torná-la uma fonte provável de investimentos e interesse. Parte do motivo pelo qual os Estados Unidos têm sido relativamente indiferentes em relação à região é que ela também não é atraente. Os países estão cercados de muitos problemas, têm lideranças muito fracas em nível nacional e hoje praticamente nenhuma liderança em nível regional. É muito difícil saber como começar a tentar criar algumas áreas produtivas de colaboração nesse contexto.

E muitas das questões que estão na agenda, como a migração, Cuba, Venezuela e China, são questões políticas muito importantes internamente nos Estados Unidos. E o governo Biden tem enfrentado conflitos em todas essas questões. Ele não quer ser como Trump, mas também não quer ir na outra direção porque isso custaria politicamente em um momento em que o risco de o Partido Republicano recuperar o controle do Congresso é enorme.

Daniel Buarque – Qual seria o papel do Brasil nesta América Latina pós-americana?

Michael Shifter – Como nos Estados Unidos, qualquer governo do Brasil também é limitado por disputas e interesses domésticos, econômicos e políticos. Pode-se ter uma visão do Brasil desempenhando um papel muito produtivo, como já teve no passado. O Brasil teve muita sorte no passado. Se olharmos para os oito anos de governo de Fernando Henrique Cardoso e os oito anos de Lula da Silva, não foram nada mal em termos de liderança. Claro que podemos fazer críticas, mas ainda assim foi um período bem impressionante, quando se olha de uma perspectiva regional ou mesmo histórica mais ampla. O Brasil teve muita sorte de ter 16 anos de uma liderança impressionante e dois líderes muito respeitados e que não eram apenas líderes do Brasil, mas tinham um tipo mais amplo de papel regional e credibilidade em toda a região. E agora o Brasil perdeu isso, mas acho que pode recuperar esse papel. Depende muito da liderança e das habilidades políticas de um presidente brasileiro para lidar com as restrições econômicas e políticas para navegar isso para que o Brasil tenha algo a oferecer à região e aos Estados Unidos, e também que tenha de forma muito clara uma definição de o que quer da região e dos Estados Unidos. É certamente uma possibilidade, mas depende muito do tipo de liderança efetiva que o Brasil terá, e que não tem tido nos últimos anos..

Daniel Buarque – Com a vitória de Gustavo Petro nas eleições da Colômbia e a perspectiva de que Lula tem chances de ser eleito no Brasil, muitos analistas falam de uma nova onda de governos de esquerda na região. Esse seria um cenário positivo para o Brasil no continente? E como os EUA tendem a lidar com este cenário?

Michael Shifter – Se Lula for eleito presidente no Brasil, claramente haverá um conjunto de governos de esquerda, mas chamar de ‘onda rosa’ é um engano, não só pelas diferenças muito fortes entre os líderes –Boric e Petro, por exemplo são muito diferentes–, mas mais importante é a diferença na economia, que não é a mesma do passado, que teve uma situação extremamente favorável, alimentando a onda rosa e dando protagonismo a líderes como Chávez, Morales e Corrêa, com preços de commodities extremamente altos, as economias estavam crescendo e havia programas sociais. Estamos apenas vivendo em uma realidade diferente. A situação global é muito mais difícil e a própria região vive um período muito mais difícil.

Isso não quer dizer que não possa haver um conjunto de países que tentem definir a agenda em certas questões de luta contra pobreza, redistribuição a pobres e excluídos. Mas não se deve subestimar o quanto Petro ou Lula realmente vão ter que se concentrar em colocar suas próprias casas em ordem na Colômbia e no Brasil –que têm sérios problemas. É mais fácil pensar em coordenação regional quando as condições domésticas estão indo na direção certa, e agora Lula ou Petro podem não se dar ao luxo de focar em alianças regionais.

‘Estou impressionado com a quantidade de pessoas com quem falo que olham para a região hoje e ficam muito preocupados com o que veem e acreditam que a única esperança é a volta de Lula no Brasil’

De qualquer forma, estou impressionado com a quantidade de pessoas com quem falo –e não apenas pessoas de esquerda, mas muitas que eu consideraria de centro ou mesmo de centro-direita– que olham para a região hoje e ficam muito preocupados com o que veem e acreditam que a única esperança é a volta de Lula no Brasil. Essas pessoas veem que ele tem a capacidade que certamente não acham que Bolsonaro ou outro candidato até agora tenha. E o Brasil é fundamental. Se a ideia é tornar a América Latina relevante em nível global, isso é inconcebível sem um líder brasileiro eficaz. Então mesmo em outros países há uma sensação de que para existir alguma possibilidade de que isso possa acontecer para a América Latina, seria preciso a volta de Lula. Mas infelizmente não está claro como seria um próximo governo de Lula, se ele for eleito. O que me impressiona é quantos latino-americanos que não são de esquerda e não são grandes fãs do PT estão sonhando que isso possa acontecer

Daniel Buarque – O que achou do encontro entre Bolsonaro e Biden?

Michael Shifter – A reunião não resolveu o problema de Bolsonaro, que é a percepção, e a realidade, de que ele é um líder sem credibilidade na América Latina, e que nem mesmo governos de direita, como Duque, querem se aproximar muito dele. Essa realidade foi reforçada na Cúpula. A linguagem corporal entre Biden e Bolsonaro também mostrou que não havia muitos sentimentos calorosos ali. O encontro aconteceu por causa de interesses mútuos, pois, se Bolsonaro não tivesse participado da cúpula, teria sido um golpe muito forte para Biden, dado que a Andrés Manuel López Obrador não foi, e ele fez tudo o que podia para garantir a presença do Brasil. Para Bolsonaro, ele parecia achar que o encontro de alguma forma superaria a visão de que ele é rejeitado por todo mundo internacionalmente, pelos Estados Unidos e mostrar que ele não é um pária. Não acho que ele tenha conseguido isso, pois não pareceu haver muita confiança no encontro entre ele e Biden.

Daniel Buarque – Após o encontro, houve relatos de que Bolsonaro pediu ajuda a Biden na eleição contra Lula, e tem havido muita preocupação em torno da ideia de que Bolsonaro possa não aceitar uma possível derrota nas urnas. Quanto isso seria um problema para as relações do Brasil com os EUA?

Michael Shifter – Isso complicaria substancialmente o relacionamento entre os dois países. Seria um problema sério se Bolsonaro seguisse o roteiro de Trump. Esperaria mensagens muito claras do governo Biden de que, se isso acontecesse, seria um problema muito, muito sério e os afetaria na relação bilateral. Se Bolsonaro acredita que de alguma forma Biden não quer que Lula volte ao poder porque ele é muito de esquerda, essa é uma visão que é gravemente equivocada. Não tenho dúvidas de que o governo Biden preferia lidar com um governo de Lula e está numa espécie de compasso de espera para ver o que vai acontecer no Brasil antes de dar qualquer passo para aprofundar o relacionamento com o Brasil. Se Lula for eleito e estiver interessado nisso, o governo Biden seria um parceiro para conversar sobre mais algumas áreas de cooperação.

‘Não tenho dúvidas de que o governo Biden preferia lidar com um governo de Lula e está numa espécie de compasso de espera para ver o que vai acontecer no Brasil antes de dar qualquer passo para aprofundar o relacionamento com o Brasil’

O atual presidente brasileiro foi hostil a Biden e a suas visões sobre democracia, meio ambiente, direitos humanos e todas as questões que são muito importantes na agenda do Partido Democrata. O governo Biden não vai expressar nenhuma preferência, não conheço ninguém que acompanhe isso de perto e que acredite que, de alguma forma, o governo Biden prefira a reeleição de Bolsonaro a uma presidência de Lula.

Editor-executivo do portal Interesse Nacional. Jornalista e doutor em Relações Internacionais pelo programa de PhD conjunto do King’s College London (KCL) e do IRI/USP. Mestre pelo KCL e autor dos livros Brazil’s international status and recognition as an emerging power: inconsistencies and complexities (Palgrave Macmillan), Brazil, um país do presente (Alameda Editorial), O Brazil é um país sério? (Pioneira) e O Brasil voltou? (Pioneira)

Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

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