11 agosto 2022

Que proteção legal pode haver para as florestas?

Grande parte da diversidade biológica do planeta está concentrada em florestas que cobrem 31% da superfície do planeta e contêm 70% das espécies vegetais e animais do mundo. Apesar de sua importância, não existe um tratado internacional que preveja a proteção total das florestas de forma integrada e é preciso adotar soluções para proteger melhor esses espaços vitais

Grande parte da diversidade biológica do planeta está concentrada em florestas que cobrem 31% da superfície do planeta e contêm 70% das espécies vegetais e animais do mundo. Apesar de sua importância, não existe um tratado internacional que preveja a proteção total das florestas de forma integrada e é preciso adotar soluções para proteger melhor esses espaços vitais

Fogo atinge floresta no Canadá, em 2009 (Cameron Strandberg/CC)

Por Marta Torre-Schaub*

Enquanto dezenas de milhares de hectares estão queimando na Amazônia, na África, nas Ilhas Canárias, California, Austrália e recentemente em Gironde e em toda a Europa em geral, a questão da proteção das florestas no mundo torna-se urgente.

Cobrindo pouco mais de 31% da superfície da Terra, elas são considerados um “pulmão para o planeta”. Grande parte da diversidade biológica terrestre da Terra está concentrada nas florestas, e os ecossistemas florestais contêm 70% das espécies vegetais e animais existentes no mundo.

Apesar de sua absoluta necessidade para a sobrevivência da humanidade, dos ecossistemas e da regulação do clima global, não existe nenhum tratado internacional que preveja a proteção total das florestas. Internacionalmente, elas são protegidas apenas de forma fragmentada. No entanto, existem soluções possíveis para proteger melhor esses espaços vitais.

https://interessenacional.com.br/edicoes-posts/obra-avalia-o-quanto-o-brasil-esta-cumprindo-compromissos-ambientais-internacionais/

Falta de consenso internacional

Muitos dos tratados internacionais existentes contêm disposições destinadas a regular as atividades relacionadas às florestas. No entanto, nenhum instrumento legal global é dedicado exclusivamente às florestas.

Alguns acordos internacionais como a Convenção Quadro sobre Mudança do Clima ou a Convenção sobre a Proteção da Diversidade Biológica exigem tratamento específico reservado às florestas, que incluem pelo menos dez instrumentos multilaterais relevantes para esse setor. No entanto, a atual estratégia de fortalecimento das sinergias entre esses instrumentos provavelmente não será suficiente para garantir o manejo florestal sustentável.

‘Em 1990, foram lançadas negociações internacionais para definir uma convenção global sobre florestas, mas nenhum consenso foi encontrado’

Em 1990, foram lançadas negociações internacionais para definir uma convenção global sobre florestas, e aprovadas pelo G7. Esperava-se que fosse concluído em 1992 na Cúpula do Rio, mas nenhum consenso foi encontrado. Em vez disso, foi adotada uma declaração de princípios não vinculativa.

Desde então, a vontade internacional de chegar a um acordo vinculativo diminuiu. O Protocolo de Kyoto de 1997, por exemplo, não menciona as florestas como “sumidouros de carbono”, nem o Acordo de Paris até hoje definiu com precisão as obrigações dos Estados com florestas. As negociações em torno do comércio de licenças de emissão de gases de efeito estufa e unidades de sumidouro de carbono foram outro ponto de discórdia na COP 24 em 2018 em Katowice. Assim, o Brasil se recusou a se envolver nessas questões e as negociações estão paralisadas até segunda ordem.

Proteção fragmentada

Por seu lado, a Convenção das Nações Unidas de Combate à Desertificação (UNCCD) dá um lugar importante à proteção e expansão das florestas. No entanto, considera as florestas apenas sob o ângulo específico do combate à seca, sem se estender a outros aspectos dos territórios florestais.

O mesmo problema pode ser observado com a Convenção de Ramsar para a proteção de zonas úmidas, que visa garantir a conservação e uso racional das zonas úmidas, por meio da cooperação internacional. Mais de mil locais, cobrindo um total de mais de 80 milhões de hectares, são classificados como zonas úmidas de importância internacional.

Alguns desses locais contêm ecossistemas florestais, por exemplo, manguezais, mas é impossível determinar seu número exato porque as florestas como tal não são identificadas pela convenção.

‘Textos internacionais relativos às florestas as consideram de forma fragmentada, sem levar em conta as questões florestais como um todo’

Em geral, todos os textos internacionais relativos às florestas as consideram de forma fragmentada, sem levar em conta as questões florestais como um todo.

Os bens públicos globais, uma solução possível?

Uma ideia seria considerar as florestas como bens públicos globais, passíveis de ter status legal como tal para que sejam gerenciadas pela comunidade internacional exclusivamente ou em conjunto com vários Estados em coalizão. No entanto, várias dificuldades surgem do ponto de vista jurídico e político.

Recordemos primeiro que a Convenção do Patrimônio Mundial estabelece um sistema de proteção coletiva do patrimônio cultural e natural de valor universal excepcional. Nesse contexto, algumas florestas – como a Amazônia – potencialmente se enquadram na definição de patrimônio natural: “sítios naturais ou áreas naturais estritamente delimitadas, que possuem valor universal excepcional do ponto de vista da ciência, conservação ou beleza natural”.

‘Algumas florestas – como a Amazônia – potencialmente se enquadram na definição de patrimônio natural’

A lista de patrimônios naturais está mudando para levar em conta novos conceitos. As últimas versões revisadas estipulam que os sítios naturais inscritos na Lista do Patrimônio Mundial deveriam ser “exemplos eminentemente representativos de processos ecológicos e biológicos em curso na evolução e desenvolvimento de ecossistemas e comunidades de plantas e animais”.

Atualmente, cerca de 213 sítios naturais estão inscritos na Lista do Patrimônio Mundial. Destes, 41 se enquadram na categoria de florestas tropicais, cobrindo 30,6 milhões de hectares da superfície terrestre. Outros tipos de florestas também estão listados e alguns locais podem estar em breve.

No entanto, a maioria dos locais designados ocupa uma área relativamente pequena. E a Convenção não se impõe de forma alguma à soberania nacional dos Estados em que se localiza o território ou a floresta “classificada”. Para que a vontade política do Estado em questão permaneça decisiva.

A outra dificuldade com esta ideia é a sua falta de operacionalidade em nível internacional. Uma vez classificado um bem como patrimônio comum, quem assume a sua proteção? Quem governa sua gestão? Quem monitora o cumprimento de quaisquer mecanismos implementados pela comunidade internacional para sua proteção? Atualmente, as propriedades classificadas são administradas pelo Estado em que estão localizadas. É, portanto, o princípio da soberania que se aplica a ela (artigo 4 da Convenção da Unesco). Devemos rever toda a governança global, construída sobre a soberania e autonomia dos Estados. Pode ser concebível estabelecer um sistema de “transferência de soberania”, como na União Europeia, mas isso levaria muito tempo e implicaria a renúncia dos países à gestão de parte de seu território.

Se propusessemos uma gestão multilateral ou inteiramente internacional, correríamos o risco de cair na “tragédia dos comuns” descrita por Garrett Hardin, onde um bem comum pertencente a “todos” não seria devidamente protegido porque “ninguém” gostaria de assumir a responsabilidade pela sua gestão?

Ecocídio, uma noção pouco relevante

Ouvimos muito a noção de ecocídio nas últimas semanas. Demasiado abstrato e sem existência legal, em todo o caso não é adequado para situações de incêndios florestais devido às práticas de desmatamento massivo que enfrentamos atualmente.

‘Se o crime de ecocídio fosse reconhecido no direito internacional, isso implicaria equiparar a noção de “genocídio” ou crime contra a humanidade à de crime contra o meio ambiente’

Se o crime de ecocídio fosse reconhecido no direito internacional pelo Estatuto de Roma que rege o Tribunal Penal Internacional, isso implicaria equiparar a noção de “genocídio” ou crime contra a humanidade à de crime contra o meio ambiente. Para isso, seria necessário estabelecer que os danos causados ao meio ambiente causaram o desaparecimento de uma parcela considerável ou eliminaram de forma sistemática, deliberada e programada um ecossistema.

Toda a dificuldade viria de provar essa “intenção” criminosa, inerente à própria noção de crime contra a humanidade durante uma atividade lesiva ao meio ambiente. Finalmente, o ecocídio implicaria poder designar um ou mais culpados e responsáveis, mas em matéria ambiental, as responsabilidades são muitas vezes partilhadas. Às vezes é até uma falta de precaução, até mais do que uma real intenção.

Combinando diferentes ferramentas

Não existe uma fórmula mágica única para desenvolver uma proteção florestal abrangente, mas é possível combinar várias soluções.

No plano nacional, a questão do controle da soberania nacional seria resolvida se internamente fossem respeitados os preceitos existentes na maioria das constituições e legislações nacionais: o direito ao meio ambiente saudável, o direito às autorizações administrativas vinculadas a projetos e atividades um impacto na meio ambiente (e florestas), a lei de estudos de impacto ambiental, a lei de responsabilidade por danos causados à natureza e ao meio ambiente.

Mais precisamente ainda, na América do Sul (e, portanto, no Brasil), os chamados “direitos da democracia ambiental” contemplados no Acordo de Escazu já permitem que as populações afetadas por uma atividade sobre o meio ambiente sejam previamente informadas de maneira efetiva. O objetivo é que eles possam participar das decisões e ter acesso à justiça em questões ambientais.

Direitos humanos e direitos da natureza

Os direitos humanos também seriam mobilizados em determinadas situações, como os atuais incêndios.

No nível americano, existe uma Convenção Regional Interamericana para a Proteção dos Direitos Humanos, que pode ser facilmente invocada perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos. Em nível europeu, a Convenção Europeia para a Protecção dos Direitos do Homem já foi várias vezes invocada com sucesso em questões ambientais e climáticas, como no caso Urgenda.

Direitos constitucionais e administrativos que visam a proteção de direitos fundamentais como o direito à saúde, à vida e a um ambiente saudável são também uma arma eficaz. Em geral, uma ação legal pode ser considerada perante um juiz nacional para que a floresta seja protegida como parte do meio ambiente.

Alguns tribunais até concederam personalidade jurídica a elementos da natureza (rios, espécies animais ou mesmo recentemente à Floresta Amazônica na Colômbia).

Em escala global, a mobilização do direito internacional tradicional que sanciona os atos de um Estado contra outro Estado é sempre possível com a condição de que os dois Estados concordem em se submeter à jurisdição da Corte Internacional de Justiça ou de um Tribunal Arbitral Internacional. Mas um tratado global de proteção florestal, incluindo aspectos ambientais, climáticos e ecossistêmicos, e aspectos econômicos relacionados à madeira, seria mais relevante. No entanto, isso exigiria um repensar completo dos nossos modelos de desenvolvimento e dos nossos modelos agroalimentares.

A recente resolução da Assembleia Geral das Nações Unidas de 28 de julho de 2022 que cria um novo direito humano “a um ambiente saudável e de qualidade”, permitirá uma melhor proteção a nível internacional dos pulmões do nosso planeta, as florestas? Uma coisa é certa: “A resolução ajudará a reduzir as injustiças ambientais, fechar as lacunas de proteção e capacitar as pessoas, especialmente aquelas em situação de vulnerabilidade, incluindo defensores de direitos humanos em termos de meio ambiente, crianças, jovens, mulheres e povos indígenas”, explicou o porta-voz do escritório do secretariado das Nações Unidas.


*Marta Torre-Schaub é professora e diretora de pesquisa do CNRS e diretora do Climalex no Instituto de Ciências Jurídicas e Filosóficas na Université Paris 1 Panthéon-Sorbonne


Este texto é uma republicação do site The Conversation sob uma licença Creative Commons. Leia o artigo original, em francês.


Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional


Daniel Buarque é editor-executivo do portal Interesse Nacional. Pesquisador no pós-doutorado do Instituto de Relações Internacionais da USP (IRI/USP), doutor em relações internacionais pelo programa de PhD conjunto do King’s College London (KCL) e do IRI/USP. Jornalista, tem mestrado em Brazil in Global Perspective pelo KCL e é autor de livros como "Brazil’s international status and recognition as an emerging power: inconsistencies and complexities" (Palgrave Macmillan), "Brazil, um país do presente" (Alameda Editorial), "O Brazil é um país sério?" (Pioneira) e "o Brasil voltou?" (Pioneira)

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