23 abril 2022

Sob Bolsonaro Brasil perdeu prestígio e sua imagem em think tanks estrangeiros se tornou negativa, revela livro

Em entrevista, Luciana Wietchikoski e Eduardo Munhoz Svartman falam sobre “O Brasil Visto de Fora”, obra que mostra como o país é visto por centros de pesquisa de diferentes partes do mundo

Em entrevista, Luciana Wietchikoski e Eduardo Munhoz Svartman falam sobre “O Brasil Visto de Fora”, obra que mostra como o país é visto por centros de pesquisa de diferentes partes do mundo

Discurso de Jair Bolsonaro na Abertura da Assembleia Geral das Nações Unidas (Alan Santos/PR)

Por Daniel Buarque*

A eleição de Jair Bolsonaro, em 2018, transformou a avaliação feita sobre o Brasil nos principais centros de pesquisa internacional do mundo. Se antes o país era retratado de forma majoritariamente positiva pelos think tanks das maiores potências globais, a chegada do presidente ao poder foi um momento de ruptura, que fez com que o Brasil passasse a ser associado a uma imagem predominantemente negativa.

A avaliação dos pesquisadores Eduardo Munhoz Svartman e Luciana Wietchikoski, que organizaram o livro “O Brasil Visto de Fora: Os think tanks e as representações sobre o Brasil num mundo em mudança (2000-2020)”, lançado em março pela fundação alemã Konrad Adenauer. A obra avalia como o Brasil é percebido pelos think tanks das principais potências da Europa e da Ásia e o papel atribuído por essas instituições ao Brasil. 

O livro pode ser baixado gratuitamente neste link

O trabalho é um importante retrato sobre a percepção externa a respeito do Brasil porque os think tanks são organizações fundamentais no debate público global. Essas instituições promovem ideias e agendas políticas específicas com o objetivo de influenciar a formulação de políticas públicas em seus países, e fornecem recomendações específicas tanto ao setor público quanto ao setor privado.

Em entrevista à Interesse Nacional, Svartman e Wietchikoski falaram sobre os pontos mais importantes do livro e a percepção sobre o Brasil nos think tanks internacionais. Eles destacam especialmente o capítulo em que tratam da China (que foi escrito por eles próprios), que revela um olhar pouco conhecido no país a respeito da sua imagem no seu principal parceiro comercial.

Leia abaixo a entrevista completa.

Daniel Buarque – É possível perceber alguma imagem em comum entre os think tanks internacionais analisados no livro?

Eduardo Munhoz Svartman – A primeira conclusão geral é que houve um interesse crescente no Brasil ao longo dos 20 anos analisados. No primeiro momento, este interesse envolvia uma certa expectativa e uma visão de tendência positiva. E a partir de meados da década passada houve um progressivo desencantamento, uma visão um pouco mais cética, especialmente com o processo de impeachment de Dilma Rousseff, que foi um momento de ruptura, mas de forma mais contundente e sobretudo com a eleição de Jair Bolsonaro. O início do governo Bolsonaro abriu espaço para uma visão predominantemente negativa em relação ao Brasil. 

Luciana Wietchikoski – Esta é a linha principal dos think tanks das potências consolidadas, como Estados Unidos, Rússia e China. É a mesma visão, por mais que haja diferenças nas interpretações.

‘O início do governo Bolsonaro abriu espaço para uma visão predominantemente negativa em relação ao Brasil’

Daniel Buarque – Dentro dessa piora, qual é a imagem do Brasil de Bolsonaro nesses think tanks? Há alguma separação entre o que é o país e o que é o governo?

Eduardo Munhoz Svartman – Há uma separação. Há um entendimento de que o Brasil não é simplesmente o governo Bolsonaro. A China, por exemplo, assumiu uma postura mais cautelosa, mas continua investindo pesado nos think tanks chineses sobre o Brasil. Ao contrário de think tanks ocidentais, e particularmente dos Estados Unidos que praticamente pararam de produzir conteúdo sobre o Brasil, os think tanks da China continuam produzindo informações para assessorar os tomadores de decisão chineses. Na Europa e no Reino Unido há uma convergência dos think tanks em torno dos valores liberais e dos mecanismos de governança internacional estabelecidos. Consequentemente, eles têm uma visão bastante cética em relação à emergência dos populismos. E o Bolsonaro é enquadrado como um dos exemplos desse populismo de direita com algumas vinculações com a extrema direita, o que acentua a visão negativa, o que debilita a visão geral a respeito do país.

Luciana Wietchikoski – Entre os think tanks russos e chineses o conteúdo da crítica a Bolsonaro é diferente, e está mais relacionado à agenda do Sul Global, dos países em desenvolvimento. A crítica volta-se mais no sentido de que o Brasil deixou de ser um parceiro do Sul Global, deixou de ser um ator importante para reformar o sistema internacional e defender os interesses dos países em desenvolvimento. A crítica também é muito relacionada à aproximação com os Estados Unidos. Por mais que de forma geral o governo Bolsonaro seja visto como ruim e como prejudicando as relações internacionais e os próprios interesses do Brasil, o conteúdo é diferente. E o discurso visto na Rússia e na China é parecida, e muito próximo deste olhar de países em desenvolvimento, inclusive em termos tecnológicos – com queda de investimentos que afeta o posicionamento do Brasil como ator neste setor. 

Crítica ao governo de Bolsonaro publicada pelo think tank americano Boorkings

Daniel Buarque – Essa é uma contribuição importante do livro, de olhar para os centros de pesquisa russos e chineses, que tradicionalmente ficam de fora dessa análise de think tanks internacionais. Quais os desafios de conseguir entender esse olhar externo?

Luciana Wietchikoski – As dificuldades são imensas, ainda mais se pesquisando do Brasil. O sistema de internet é diferente do nosso e o uso da língua nativa é muito importante na pesquisa. Outro problema é a dificuldade de acesso a literatura especializada, o que chega até a gente geralmente são de autores anglo-saxões e não dos pesquisadores chineses, o que creio que se perde em termos de diversidade de visões. No caso chinês, também tem a questão que parte das documentações produzidas pelos think tanks, em específico aqueles divulgados através de revistas acadêmicas especializadas ou através de livros e relatórios, seguem as regras específicas dessas plataformas naquele país, são materiais que para serem acessados necessitam formas específicas de compra que não é tão simples para quem desconhece o sistema ou está no exterior. Nesse contexto, a pandemia teve um lado positivo para a pesquisa. Através da intensificação dos contatos virtuais, esse contexto permitiu que tivéssemos acesso a alguns diretores destes think tanks chineses, o que foi fundamental para formar uma rede importante de contatos, e fazer avançar a pesquisa. Dificuldades semelhantes foram descritas pelos pesquisadores que escreveram o capítulo sobre os think tanks russos (Alexandra Arkhangelskaya, Boris P. Zabolotsky e Fabiano P. Mielniczuk). Ainda é um desafio extremo estudar a política externa da China através da própria China.

Daniel Buarque – E qual você diria que é o achado mais importante deste trabalho? O que podemos saber agora sobre o olhar chinês a respeito do Brasil que não era conhecido antes?

Luciana Wietchikoski – O mais importante é saber que o Brasil é descrito pelos think tanks como tendo um grande potencial de ser um importante parceiro da China em termos internacionais, de agenda para o desenvolvimento, e principalmente o olhar a respeito do que o Brasil já tem em termos de tecnologias. O Brasil é um parceiro não só por estar nos fóruns internacionais, mas por já ter uma tecnologia e ser um ator fundamental por seu tamanho, seus recursos naturais e ambientais e pelo desenvolvimento tecnológico em relação a isso. Claro que isso é o que existe em termos discursivos, mas dentro da política externa chinesa, esta não é uma visão consensual. Esse é o olhar dos think tanks aliados do Sul Global, que estudam América Latina e defendem essa agenda. Este não é o único olhar, entretanto, e há grupos dentro do governo chinês para os quais o Brasil não é importante. Então é preciso identificar que dentro da China há várias visões em disputa. 

Também é importante perceber estes olhares tanto da China, quanto da Europa e dos Estados Unidos por conta do interesse nacional brasileiro. Nós temos uma potencialidade enorme de construir parcerias e aproveitar muito melhor essas relações do que aproveitamos hoje. Existe espaço político para se discutir parcerias muito mais vantajosas para o Brasil, mas o Brasil acaba não aproveitando. 

Análise do Celag sobre Bolsonaro e think tanks

Daniel Buarque – Isso é interessante pois apesar de o livro ser voltado a mostrar como o Brasil é visto por think tanks internacionais, ele acaba ajudando a mostrar também para os brasileiros como funciona o pensamento nesses países, e especialmente na China, que é tão pouco conhecida no Brasil. 

Eduardo Munhoz Svartman – Sim, é verdade. Um achado importante que apresentamos é esta visão de que existem várias visões na China, e que nem sempre há consenso sobre a política externa do país e o papel que o Brasil desempenha para eles. O outro ponto é a brutal assimetria de conhecimento de ambos os lados. Os chineses conhecem muito mais a respeito do Brasil do que os brasileiros a respeito da China. Isso tanto no meio acadêmico, em think tanks, mas até em meios governamentais. Dentro do Ministério das Relações Exteriores da China existe todo um aparato burocrático dedicado ao Brasil, com pessoas que falam português, enquanto no Brasil o número de diplomatas que dominam o mandarim é muito reduzido e não há uma aparato burocrático capaz de estabelecer uma simetria em termos de capacidade. Há uma visão estratégica da China em relação ao Brasil, com foco no Sul Global e nas tecnologias do setor agrário, mas do lado de cá não há. A China já é nosso principal parceiro comercial há um bom tempo e o Brasil não tem uma estratégia para lidar com a China, ou mesmo para lidar com o processo de transição do sistema internacional que está em curso. Entender este problema é um importante primeiro passo.

Daniel Buarque – O livro trata do olhar de think tanks sobre o Brasil entre 2000 e 2020. É possível extrapolar essa análise e entender o que se pensa sobre este ano eleitoral do Brasil nessa visão externa?

Eduardo Munhoz Svartman – Especialmente na Europa há uma preocupação com relação às questões de democracia, direitos humanos, meio ambiente, populismo, uso das redes sociais como armas eleitorais. Há toda uma agenda em torno disso no qual o processo eleitoral brasileiro e o estilo de Bolsonaro são vistos como uma preocupação. Isso especialmente por não ser um fenômeno singular, e ser algo que também se vê na Europa e nos Estados Unidos. O Brasil segue na agenda dos think tanks muito em função disso. Não mais como liderança do Sul Global, não mais por conta do reformismo brando, mas mais como um problema a ser tratado. 

Nos Estados Unidos, vê-se o chamado ‘Trump Tropical’, e a visão sobre o processo eleitoral de 2018 e o início do governo Bolsonaro foram de muito receio. Especialmente entre os think tanks mais progressistas e ligados ao Partido Democrata, via-se uma emulação de Trump e aplicava-se a mesma crítica que era feita a Trump. No início, alguns think tanks mais conservadores, como o Heritage, o American Enterprise Institute, até acharam interessante a agenda privatista que Bolsonaro anunciou. Mas conforme o governo começou a acontecer, esses think tanks também adotaram uma postura crítica em relação à conduta do governo, as referências à ditadura militar, violações de direitos humanos, e uma infinidade de manisfestações e ações tanto do presidente quanto de outros quadros do governo. Em certa medida, isso se mantém. E houve também uma diminuição da presença do Brasil nessas instituições nos Estados Unidos. Alguns programas foram encerrados, como o Brazil Institute do Wilson Center, que foi absorvido num grupo de países da América Latina, o que mostra uma mudança de patamar. E depois da eleição de Joe Biden e da atitude do governo brasileiro de endossar a acusação que Trump fez sobre fraude nas eleições, isso também debilitou bastante a visão americana sobre o Brasil. E isso se transpõe agora. Conforme as candidaturas se definirem e a campanha eleitoral esquentar, certamente vai haver um incremento da cobertura nesse padrão, com uma visão bastante crítica ao governo estabelecido. 

Luciana Wietchikoski – Os think tanks chineses também estão acompanhando o movimento eleitoral. Eles têm análises semanais e quinzenais de todos os principais candidatos até agora, com perfil e projeto de governo deles, bem como as chances de cada um, de forma bastante impressionante. Eles estão especialmente preocupados com a questão econômica e comercial, em como uma possível reeleição de Bolsonaro pode intervir na economia, no crescimento do país e na própria agenda bilateral. 

‘Nos think tanks russos e chineses, a crítica volta-se mais no sentido de que o Brasil deixou de ser um parceiro do Sul Global’

Daniel Buarque – E além da questão eleitoral, qual a agenda futura de pesquisa de vocês em relação a think tanks?

Luciana Wietchikoski – A gente estudou as grandes potências, mas me interessa muito ultimamente estudar o que nossos vizinhos pensam em relação ao Brasil, tanto a agenda doméstica quanto a externa. Estou começando um projeto de identificar os think tanks, que é impressionante o quanto não conhecemos os nossos vizinhos. É uma coisa surreal. E quero entender como esses think tanks pensam o Brasil e as possibilidades de parcerias, e os limites de política externa e de defesa.

Eduardo Munhoz Svartman – E a gente espera que outros colegas também se interessem sobre esse tema, e sobre think tanks de outras regiões, como os da África e seu olhar sobre o Brasil. É importante ressaltar também o papel da fundação Konrad Adenauer, que deu todo o suporte para a produção do livro.


Daniel Buarque é editor-executivo do Interesse Nacional e também é autor de um dos capítulos do livro “Brasil Visto de Fora”.


Daniel Buarque é editor-executivo do portal Interesse Nacional. Pesquisador no pós-doutorado do Instituto de Relações Internacionais da USP (IRI/USP), doutor em relações internacionais pelo programa de PhD conjunto do King’s College London (KCL) e do IRI/USP. Jornalista, tem mestrado em Brazil in Global Perspective pelo KCL e é autor de livros como "Brazil’s international status and recognition as an emerging power: inconsistencies and complexities" (Palgrave Macmillan), "Brazil, um país do presente" (Alameda Editorial), "O Brazil é um país sério?" (Pioneira) e "o Brasil voltou?" (Pioneira)

Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

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