16 maio 2022

Teorias da conspiração se consolidam no mundo como instrumento de manipulação política

Em entrevista, professor de filosofia Quassim Cassam explica que a melhor forma de discutir as teorias da conspiração é entender que a função mais fundamental delas é promover e fazer avançar uma agenda política, particularmente a de atores extremistas

Em entrevista, professor de filosofia Quassim Cassam explica que a melhor forma de discutir as teorias da conspiração é entender que a função mais fundamental delas é promover e fazer avançar uma agenda política, particularmente a de atores extremistas

Ato político com ataque a urnas eletrônicas e defesa do voto impresso no Brasil (Clauber Cleber Caetano/PR)

Por Daniel Buarque

A discussão política no Brasil a respeito da possibilidade de fraude nas eleições deste ano alimenta movimentos que rejeitam a ausência de evidências de desvios deste tipo e colocam em risco a própria democracia. Esta situação está alinhada a problemas espalhados por todo o mundo há mais de um século e que se encontram atualmente na negação da ciência durante a pandemia, na rejeição a vacinas, na motivação apresentada pela Rússia para a invasão da Ucrânia, em discussões no Parlamento britânico, na insurreição política e na violência racial nos Estados Unidos e em outras situações em vários outros países. São movimentos inflamados por teorias da conspiração usadas para a manipulação política, segundo o pesquisador Quassim Cassam.

Em entrevista à Interesse Nacional, Cassam explicou que as pessoas tendem a analisar essas teorias da conspiração com um olhar individualista que busca entender o que leva alguém a acreditar nelas. Essa perspectiva está equivocada, ele explica, pois a melhor forma de entender as teorias da conspiração é buscar avaliar qual a sua função e para que elas servem. “A função mais fundamental delas é promover e fazer avançar uma agenda política”, disse. “É tudo sobre política. Você não pode entender essas teorias sem entender quais são seus objetivos políticos”.

Professor de filosofia na universidade de Warwick, no Reino Unido, Cassam é especialista em estudos sobre extremismo e terrorismo, ele é autor de sete livros, incluindo Conspiracy Theories, lançado em 2019. Segundo ele, as teorias da conspiração que as pessoas promovem e as teorias da conspiração em que as pessoas acreditam são aquelas que se encaixam nas suas ideologias e na sua agenda política. A melhor forma de combater essa forma de manipulação, ele explica, é mostrar quem se beneficia dela.

Leia abaixo a entrevista completa

Daniel Buarque – Você começa seu livro Conspiracy Theories dizendo que costumava pensar que teorias da conspiração são resultado de erros individuais de pensamento, e que muitas pessoas ainda culpam os indivíduos por acreditarem em teorias da conspiração. Mas então você passou a pensar que isso é na verdade uma forma de propaganda política. Você pode explicar essa mudança e o que o levou a acreditar nisso e como isso funciona?

Quassim Cassam – Uma distinção que eu acho realmente importante é entre os produtores e consumidores de teorias da conspiração. Se você pensar em teorias da conspiração sob o ponto de vista dos produtores, no caso dos Estados Unidos, pessoas como Alex Jones. Por que ele promove as teorias da conspiração com tanta franqueza? Minha ideia no livro é que pessoas como ele promovem teorias da conspiração por terem objetivos políticos e ideologias políticas que são promovidas pelas teorias que eles apresentam. Considerando que muitas dessas pessoas são hostis ao governo federal, à tributação, ao controle de armas, as teorias que eles inventam e promovem servem a esses fins políticos. Então eu acho que, se você perguntar por que alguém acredita nessas teorias, em primeiro lugar, não sabemos se ele de fato acredita que essas teorias estão certas. E, além disso, essa não é a pergunta mais importante.  A questão importante é por que alguém promove essas teorias. E isso não tem nada a ver com pensamentos equivocados, tem muito mais a ver com sua agenda política. Você pode discordar dessa agenda política, mas você também pode ver que realmente divulgar essas teorias da conspiração pode ser uma maneira altamente eficaz de avançar essa agenda política. Então não tem nada a ver com ser irracional ou ter pensamentos equivocados. É apenas uma estratégia política

Daniel Buarque – Acha que é uma decisão deliberada, então? Quem divulga essas teorias planeja isso?

Quassim Cassam – Em muitos casos, sim. Em termos históricos, a mais famosa de todas as teorias da conspiração é a dos Protocolos dos Sábios de Sião. Se você pensar na pessoa ou pessoas que criaram essa teoria, e aparentemente ela foi inventada por um agente da polícia secreta czarista em 1905, obviamente ele não acreditava que realmente havia uma reunião de anciãos judeus planejando a dominação do mundo. Era claramente era uma peça de propaganda antissemita absolutamente flagrante que foi então retomada pelos nazistas e continua a circular até hoje. Toda a questão de por que eles acreditam nessas teorias, neste caso, pensando do ponto de vista dos produtores dessas teorias, essa não é a pergunta certa, porque nem é certo que eles acreditam. É apenas uma peça de propaganda. 

‘As teorias da conspiração em que as pessoas acreditam são aquelas teorias que se encaixam nas suas ideologias e na sua agenda política’

Se você pensa sobre isso a partir da perspectiva dos consumidores dessas teorias, pode-se dizer que eram pessoas que pensavam de forma equivocada, mas fundamentalmente eles acreditavam nos Protocolos dos Sábios do Sião porque eles eram antissemitas, e a teoria alimentava suas próprias visões antissemitas. 

Minha interpretação é que as teorias da conspiração que as pessoas promovem e as teorias da conspiração em que as pessoas acreditam são aquelas teorias que se encaixam nas suas ideologias e na sua agenda política. Afinal de contas, existem muitas teorias da conspiração e ninguém acredita em todas as teorias da conspiração. Então, se você se perguntar por que um teórico da conspiração em particular acredita em uma teoria, mas não em alguma outra teoria, obviamente porque essas teorias que eles acreditam são aquelas que se encaixam em suas ideologias e políticas. 

Portanto, por mais que possa haver pensamentos equivocados ou falhas intelectuais de um tipo ou de outro, acreditar que essa é a explicação para a popularidade das teorias da conspiração ignora um ponto completamente óbvio, que é que essas teorias são altamente políticas em seu conteúdo e são altamente políticas em seus objetivos. E esse é o seu apelo. Elas são uma ferramenta que sempre foi usada, historicamente, por atores políticos, particularmente atores políticos extremistas, para promover sua agenda política.

Daniel Buarque – Do ponto de vista individual, portanto, é simplesmente um caso de seleção da informação mais alinhada, algo como uma dissonância cognitiva, mas de forma mais extrema?

Quassim Cassam – Sim. As pessoas já têm suas perspectivas, seus compromissos e então eles se apegam às teorias da conspiração que se encaixam com a essas visões. Ela relutam muito mais em acreditar em teorias da conspiração que contradizem o que elas acreditam. Eu dou um exemplo muito simples, se você pensar na situação depois da eleição de Donald Trump nos Estados Unidos e no Reino Unido, havia muita gente à esquerda que acreditava na teoria da conspiração que a eleição de Trump tinha sido provocada pelas atividades dos russos que interferiram na eleição. Por que as pessoas de esquerda acreditaram que a teoria estava certa, mas não as pessoas de direita? Obviamente era uma teoria muito atraente para pessoas que odeiam Trump. Mas, se você perguntar a essas pessoas de esquerda sobre as teorias da conspiração favoráveis a Trump, elas vão acusar quem acredita nelas de serem teóricos da conspiração. Mas qual é a diferença?

‘Ao argumentar que a Terra é plana, elas estão falando sobre como as pessoas são sistematicamente enganadas. São teorias sobre um Estado profundo que engana a sociedade. Então elas têm conteúdo político’

Muitos de nós somos atraídos por teorias da conspiração que se encaixam em nossas próprias perspectivas políticas. E nós, é claro, tendemos a pensar que aquilo em que acreditamos não são teorias da conspiração, são a verdade. Fundamentalmente, é política.

Daniel Buarque – E como explicar teorias de conspiração que aparentam não ser políticas, como o movimento da Terra Plana?

Quassim Cassam – Não acho que a teoria da conspiração da Terra Plana não seja política. Ao argumentar que a Terra é plana, elas estão falando sobre como as pessoas são sistematicamente enganadas. É como não acreditar que o homem pisou na Lua. São teorias sobre um Estado profundo que engana a sociedade. Então elas têm conteúdo político.

Se quisermos pensar em uma teoria da conspiração realmente apolítica, pode-se pensar em teorias da conspiração sobre o desaparecimento de Elvis, ou sobre Paul McCartney ter morrido e sido substituído nos Beatles. Mas, mesmo assim, falar que Elvis fingiu seu próprio desaparecimento não chega a ser exatamente uma teoria da conspiração. Você não pode ter uma conspiração de uma pessoa. Em segundo lugar, essas parecem brincadeiras de conspiração. E as teorias da conspiração são como uma droga de entrada. Elas são uma porta de entrada para outras teorias, especialmente com redes sociais e o algoritmo do YouTube, que vão levar a outras teorias da conspiração, talvez com mais conteúdo político.

Daniel Buarque – Você começou falando das primeiras teorias da conspiração e agora mencionou o YouTube, e redes sociais são um problema sério quando falamos sobre teorias da conspiração. Acha que este uso político de teorias da conspiração está crescendo?

Quassim Cassam – Joe Uscinski [cientista político da Universidade de Miami e autor de American Conspiracy Theories] escreveu um livro sobre teorias da conspiração americanas em que pesquisou essa questão de saber se as teorias da conspiração hoje são mais prevalentes do que eram no passado. O livro dele foi publicado há cerca de dez anos, mas, naquela época, ele argumentava que, na verdade, as teorias da conspiração eram mais prevalentes no passado do que são hoje. Houve períodos no século XX em que houve um pico no pensamento conspiratório que foi maior do que na era das mídias sociais. Talvez as coisas tenham mudado nos últimos dez anos, mas até então era este o cenário. Ainda assim, não há dúvida de que as redes sociais são uma ferramenta muito eficaz para propagar teorias da conspiração. É uma arma política. 

‘Boris Johnson repetiu uma teoria da conspiração sobre o líder da oposição no Parlamento. Dez anos atrás isso seria impensável. Estamos vivendo em tempos muito estranhos. Vocês têm Bolsonaro, nós temos Johnson’

Recentemente, no Reino Unido, o primeiro-ministro Boris Johnson repetiu uma teoria da conspiração sobre o líder da oposição no Parlamento. Foi uma teoria que surgiu na extrema-direita e circulou nas redes sociais de direita nos últimos quatro ou cinco anos, e agora você tem o primeiro-ministro usando isso no Parlamento para atacar o líder da oposição. Dez anos atrás isso seria impensável. Estamos vivendo em tempos muito estranhos. Vocês têm Bolsonaro, nós temos Johnson.

Daniel Buarque –  Como se pode combater teorias da conspiração. Na mídia fala-se muito de checagem de informações, mas isso parece ter mais a ver com notícias falsas do que com teorias da conspiração.

Quassim Cassam – Verificação de notícias não será eficaz a menos que as pessoas que acreditam em teorias da conspiração a aceitem como uma fonte confiável. Mas essas pessoas não vão aceitar a mídia como uma fonte confiável, então isso não vai funcionar. Hoje existe uma questão sobre o uso do humor para combater teorias da conspiração, mas minha suspeita é que não será muito eficaz porque as pessoas vão achar esse humor engraçado são as pessoas que já pensam que as teorias da conspiração são ridículas. As pessoas que acreditam em teorias da conspiração não vão achar esse humor muito engraçado e podem até se sentir ofendidos com isso, o que pode acabar confirmando as próprias suspeitas delas sobre as elites. 

‘A questão de quem se beneficia está no centro das teorias da conspiração. Então acho que essa é uma pergunta que devemos fazer sobre os próprios teóricos da conspiração. Para os produtores de teorias da conspiração, os benefícios são políticos e financeiros’

Acredito que precisamos disputar com as teorias da conspiração em seu próprio jogo. Devemos dizer para quem acredita nelas olhar para os produtores dessas teorias. Vamos olhar para as pessoas como Alex Jones e perguntar como elas se beneficiam delas. A questão de quem se beneficia está no centro das teorias da conspiração. Então acho que essa é uma pergunta que devemos fazer sobre os próprios teóricos da conspiração. Para os produtores de teorias da conspiração, os benefícios são políticos e financeiros. Eles se beneficiam politicamente porque suas teorias promovem suas próprias agendas políticas e eles se beneficiam financeiramente porque é um grande negócio de mídia. Então acho que é uma questão de jogar o jogo deles e tentar deixar claro para o público em geral que essas pessoas estão fazendo isso por uma razão, elas têm uma agenda e se beneficiam dessas teorias.

Além disso, pode-se apontar a associação entre teorias da conspiração e extremismo. Nem todo teórico da conspiração é um extremista, mas praticamente todo extremista acredita em teorias da conspiração. Desde os nazistas, Bin Laden, o Hamas, todos eles são teóricos da conspiração. É uma conexão que vale a pena destacar

É preciso questionar qual é o propósito, qual é a função dessas teorias. Minha afirmação é que sua função básica, a função mais fundamental delas, é promover e fazer avançar uma agenda política. Você aprende o que é uma coisa aprendendo qual é sua função,  o propósito a que ela serve. E, mesmo que não haja um indivíduo responsável por essas teorias, ainda é verdade que elas realmente têm uma função específica. Chamaria minha abordagem de teorias da conspiração de uma abordagem funcionalista ou funcional. Pense nelas em termos de suas funções. A que propósito elas servem? Bem, é tudo sobre política. Você não pode entender essas teorias sem entender quais são seus objetivos políticos.

Editor-executivo do portal Interesse Nacional. Jornalista e doutor em Relações Internacionais pelo programa de PhD conjunto do King’s College London (KCL) e do IRI/USP. Mestre pelo KCL e autor dos livros Brazil’s international status and recognition as an emerging power: inconsistencies and complexities (Palgrave Macmillan), Brazil, um país do presente (Alameda Editorial), O Brazil é um país sério? (Pioneira) e O Brasil voltou? (Pioneira)

Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

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