18 maio 2022

Twitter e Elon Musk: enfraquecimento de moderação em prol de liberdade ampla envenena democracia

Para Giulia Sbaraini Fontes, defender a liberdade de expressão não implica apostar no vale-tudo, e plataformas digitais deveriam fortalecer mecanismos de repressão à desinformação e a posts ofensivos, com responsabilização de agressores e banimento de contas que propagam mensagens que causam prejuízos à sociedade

Para Giulia Sbaraini Fontes, defender a liberdade de expressão não implica apostar no vale-tudo, e plataformas digitais deveriam fortalecer mecanismos de repressão à desinformação e a posts ofensivos, com responsabilização de agressores e banimento de contas que propagam mensagens que causam prejuízos à sociedade

O bilionário Elon Musk (Steve Jurvetson)

Por Giulia Sbaraini Fontes*

O anúncio sobre a compra do Twitter pelo bilionário Elon Musk, pelo valor de US$ 44 bilhões, gerou reações distintas. O motivo são posicionamentos do empresário a respeito de questões como liberdade de expressão e moderação de conteúdos na rede social. Os efeitos que o negócio pode ter sobre a política brasileira são incertos, visto que ainda não há garantias sobre quais mudanças serão, de fato, implementadas. O prognóstico, no entanto, é de que a flexibilização de regras para o banimento de contas e a moderação de conteúdo em prol de uma liberdade de expressão ampla (ou praticamente irrestrita) seria prejudicial a democracias do mundo todo.

De início, é preciso ressaltar que Musk se diz um defensor da liberdade de expressão, “de acordo com a lei”. Suas declarações, porém, dão indicativos de que sua concepção do que seria a liberdade de expressão é bastante ampla. O empresário já afirmou, por exemplo, que pode reverter o banimento de Donald Trump do microblog. O ex-presidente dos EUA foi suspenso permanentemente do Twitter depois que a rede social considerou que seus posts promoveram incitação à violência no caso da invasão do Congresso norte-americano, ocorrida em janeiro de 2021. Musk também já disse que pretende fazer alterações na política de moderação de conteúdo da plataforma, flexibilizando as normas.

De um lado, setores da sociedade afirmam que o microblog pode se tornar um ambiente mais agressivo. De outro negócio é visto como uma vitória da liberdade de expressão.

Diante de tais pretensões, de um lado, há setores da sociedade que afirmam que o microblog pode se tornar um ambiente mais agressivo e propenso à disseminação de desinformação. De outro, perfis de direita comemoraram a compra, considerando que o negócio seria uma vitória da liberdade de expressão.

Para compreender que tipo de impacto a aquisição pode ter no cenário político brasileiro é preciso, antes, fazer uma ressalva: o processo deve demorar a se concretizar –e pode até nem chegar a ser oficializado, já que o processo foi suspenso temporariamente. A compra pode levar meses, visto que ainda é necessária a aprovação por órgãos regulatórios e acionistas da empresa. Ou seja, no caso do Brasil, a transação pode ser concluída apenas depois das próximas eleições presidenciais, que ocorrerão em outubro de 2022. Além disso, não é possível dizer ao certo quais das ações já defendidas por Musk serão, realmente, implementadas – ou seja, o que não passa de mera retórica e o que realmente será colocado em prática.

Mesmo assim, é fato que as declarações do bilionário fomentam discussões acerca de questões caras à democracia. No caso da liberdade de expressão, suas afirmações esbarram em extensos debates a respeito de quais são os limites desse direito. Até que ponto assegurar uma liberdade de expressão irrestrita não é, na verdade, prejudicial ao regime democrático? Quais são os limites do que pode ou não ser dito nas redes? Ser tolerante com discursos de intolerância é, de fato, democrático? Quando é necessário que haja intervenção das plataformas e, de um ponto de vista mais amplo, de instituições governamentais para frear a propagação de discursos discriminatórios ou de ódio?

Nesse sentido, Magarian (2021)[1] afirma que a internet propicia oportunidades sem precedentes para a liberdade de expressão, mas, ao mesmo tempo, amplifica os danos que podem ser causados por essa mesma liberdade. Campanhas de difamação, por exemplo, são orquestradas, via redes sociais, com o objetivo de destruir reputações. No caso brasileiro, relatório da Polícia Federal apontou a existência de um “gabinete do ódio” para promover ataques a adversários políticos do presidente Jair Bolsonaro. O modus operandi da estrutura inclui a disseminação orquestrada de mensagens ofensivas e ameaças contra pessoas e instituições, incluindo o uso de robôs. As contas automatizadas seriam utilizadas como forma de “inflamar” usuários reais a participar dos ataques. O uso de tais plataformas para a divulgação de conteúdos inverídicos também causa preocupação, seja em momentos como a pandemia de Covid-19 – em que informações erradas sobre a doença e teorias da conspiração prejudicaram a resposta ao vírus – ou durante processos eleitorais.

‘A despeito do que afirma Elon Musk, o Twitter não é a nova “praça pública” das democracias, e sim mais um espaço em que ocorre a troca de ideias sobre política’

Redes sociais digitais também apresentam limitações no que diz respeito à promoção do debate público. Se, de início, considerava-se que a internet poderia se consolidar como um espaço para a troca de argumentos e processos de deliberação pública[2], pesquisas têm demonstrado como essas plataformas são ambientes profícuos para a incivilidade[3]. Além disso, há restrições de acesso – nem todos os cidadãos estão online, ou mesmo em redes sociais como o Twitter. Ademais, mesmo os cidadãos que estão presentes nas redes não necessariamente têm acesso a opiniões divergentes: pesquisas já demonstraram que há uma tendência à homofilia, isto é, os usuários tendem a se comunicar apenas com outros que compartilham de seus pontos de vista. Em outras palavras, a despeito do que afirma Elon Musk, o Twitter não é a nova “praça pública” das democracias, e sim mais um espaço em que ocorre a troca de ideias sobre política – ainda assim, por um público restrito, de forma frequentemente desrespeitosa e improdutiva.  

Causam preocupação, portanto, as especulações sobre possíveis flexibilizações de regras de compartilhamento de conteúdo no Twitter. É necessário levar em conta que, mesmo na configuração atual, a plataforma já não é rígida em sua moderação de conteúdo. Reportagem publicada pelo jornal O Estado de S. Pauloaponta que, no ano passado, a rede social retirou do ar apenas 4% dos posts denunciados pela ONG SaferNet como crimes no ambiente digital (por exemplo, pornografia infantil, racismo, LGBTfobia, neonazismo etc.). Outro exemplo: em janeiro, a Agência Lupa, de checagem de fatos, afirmou ter denunciado 198 tweets desinformativos. Apenas 76 receberam marcações ou foram retirados do ar após insistência da agência.

‘Sem regras, a tendência é de que a incivilidade cresça, com a proliferação ainda mais preocupante de conteúdos desinformativos que apenas envenenam o debate público’

Isto é, as evidências apontam que a concretização das mudanças defendidas por Musk serão prejudiciais não apenas ao cenário brasileiro, como ao de outros países. Um ambiente digital em que há pouco ou nenhum controle sobre o que é publicado não fortalece a democracia. Ao contrário: sem regras, a tendência é de que a incivilidade cresça, com a proliferação ainda mais preocupante de conteúdos desinformativos que apenas envenenam o debate público.

Defender a liberdade de expressão não implica, portanto, apostar no vale-tudo. Se a democracia pressupõe que todos podem se expressar livremente, o regime também prevê que direitos básicos de outros cidadãos não sejam violados. Por isso, discursos de ódio e intolerância não estão ancorados na liberdade de expressão. O movimento das plataformas digitais, portanto, deveria ser o contrário, de fortalecimento de mecanismos de repressão à desinformação e a posts ofensivos, com responsabilização de agressores e banimento de contas que propagam mensagens que causam prejuízos à sociedade.

É claro, esse processo de fortalecimento exige cuidado para que não haja, essencialmente, cerceamento de posicionamentos. Mas, ao fim, coibir comportamentos prejudiciais à democracia é, na verdade, uma forma de fortalecê-la. Democracia não é terra de ninguém – e a internet tampouco deve ser.


* Giulia Sbaraini Fontes é Jornalista e doutora em Ciência Política pela Universidade Federal do Paraná. Atua como pesquisadora da Global Research Network on Parliaments and People.


Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional.


Referências:

[1] MAGARIAN, G. P. The internet and social media. In: STONE, A.; SCHAUER, F. The Oxford Handbook of Freedom of Speech. Oxford: Oxford University Press, 2021. p. 350-368.

[2] Ver DAHLGREN, P. The Internet, public spheres, and political communication: dispersion and deliberation. Political Communication, v. 22, n. 2. 2005.

[3] Ver CHEN, G. M.; MUDDIMAN, A.; WILNER, T.; PARISER, E.; STROUD, N. J. We should not get rid of incivility online. Social Media + Society, v. 5, n. 3. 2019.

Editor-executivo do portal Interesse Nacional. Jornalista e doutor em Relações Internacionais pelo programa de PhD conjunto do King’s College London (KCL) e do IRI/USP. Mestre pelo KCL e autor dos livros Brazil’s international status and recognition as an emerging power: inconsistencies and complexities (Palgrave Macmillan), Brazil, um país do presente (Alameda Editorial), O Brazil é um país sério? (Pioneira) e O Brasil voltou? (Pioneira)

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