Emendas Parlamentares: saga do esgarçamento nas relações de poder no Brasil
Peça de ficção é uma expressão com tom jocoso recorrentemente usada para designar o documento orçamentário no Brasil. Isso já mostra como as diretrizes de gastos públicos são tratadas com desrespeito no país. Mas, de uns tempos para cá, mais do que a desconsideração ao seu caráter norteador, o orçamento vem sendo usado como instrumento de barganha. A aprovação da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) do Orçamento Impositivo em 2015, em meio à efervescência política em torno do impeachment de Dilma Rousseff, tornou-se medida de empoderamento de parlamentares
Depois de sentir o gostinho do dinheiro garantido, senadores e deputados federais passaram a almejar sempre mais – na lógica de quem ganha a mão quer o braço. Assim, a negociação para aumentar as cifras só foi escalando, e a galope. Várias premissas passaram a ser ignoradas. Uma delas é a igualdade de condições para a disputa eleitoral. Se a exposição como parlamentar já favorecia os detentores de mandato, a possibilidade de destinação de dinheiro público a ser aplicado nas bases ampliou ainda mais as vantagens para quem já está em cargo representativo.
Não bastasse a obrigação de destinar recursos, a aplicação das emendas foi ficando cada vez menos rastreável. E aí atores importantes juntam-se à cena: Jornalismo e jornalistas. Sem cabotinismo, é preciso reconhecer que, no momento em que órgãos de controle falharam, foi a imprensa que pôs o bode na sala e cobrou soluções.
Em maio de 2021, por meio de uma série de reportagens no jornal Estado de S.Paulo, veio à tona o escândalo do Orçamento Secreto – termo que foi cunhado para mostrar como o dinheiro público estava sendo dragado sem qualquer obstáculo. As matérias apresentaram as chamadas “emendas de relator”, as RP-9, criadas em 2019 e entrando em vigor em 2020. Vale, inclusive, ressaltar o contexto em que isso aconteceu: quando esse sistema foi institucionalizado estava sendo discutida a Reforma da Previdência no Congresso, e liberar dinheiro foi visto como estratégia para conseguir a aprovação da proposta.
Foi naquele momento histórico que foram inventadas duas outras modalidades, que dão dor de cabeça a quem tenta apontar seus problemas: as chamadas emendas PIX (individuais e sem burocracia) e as de bancada. Ou seja, para passar uma votação no Parlamento, estabeleceu-se a tempestade perfeita para a liberação desenfreada de dinheiro. Esse marco é tão importante para a política contemporânea nacional que algumas pesquisas acadêmicas apontam que, juntamente com a elevação dos fundos partidário e eleitoral, foram forjados novos parâmetros para o presidencialismo de coalizão, que estava em atualização no país.
A partir das matérias sobre o Orçamento Secreto na imprensa, a então ministra do Supremo Tribunal Federal (STF), Rosa Weber, concedeu liminar, posteriormente revogada – e depois confirmada em 2022 com o julgamento do mérito –, considerando inconstitucional a prática das emendas de relator (RP-9). Na conjuntura de transição de governo, já depois da eleição presidencial daquele ano, o valor das emendas individuais e de bancada passou a subir, como forma de compensação. Nesse cenário, a falta de fiscalização abriu espaço para que parlamentares cobrassem mais e mais e para que os recursos fossem destinados sem controle.
O jornalismo colocou em ação a mais famosa frase da imprensa “follow the money” – que ganhou notoriedade a partir do caso Watergate na década de 70 nos Estados Unidos – e foi seguir o dinheiro. Quando o uso inadequado dos recursos públicos foi debelado, o que aconteceu foi que a corrupção acabou se sofisticando. Isso não é incomum: se um vazamento é descoberto e sanado, surge uma nova brecha. Com o fim das emendas de relator e com o aumento da pressão dos parlamentares, partindo para cima do governo para exigir benefícios para votar projetos de interesse do Executivo, foram as emendas PIX que serviram de vazão.
Conforme ficou evidenciado o descumprimento da decisão que julgou inconstitucional o Orçamento Secreto, bem como qualquer medida ou mecanismo que o reproduzisse sob outras nomenclaturas, as instituições Transparência Internacional Brasil, Transparência Brasil e Associação Contas Abertas foram admitidas como amici curiae na ADPF 854, que denunciavam tais fatos. Iniciou-se, sob a relatoria do ministro Flávio Dino, que assumiu o processo após a aposentadoria da ministra Rosa Wever, um processo de questionamento ao Congresso Nacional e ao Executivo sobre os desvios em questão.
As ações da Abraji, da PGR e do PSOL
Foi aí que entraram em jogo a Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), a Procuradoria-Geral da República (PGR) e o Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), com as Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs) 7688, 7695 e 7697, respectivamente. Os processos questionam a falta de rastreabilidade das emendas individuais impositivas. Causou certa estranheza a Abraji recorrer ao Judiciário para abordar o assunto, fosse o Jornalismo que mostrava a falta de transparência e revelava que pouco tinha sido feito para conter a destinação daquela montanha de dinheiro.
Na audiência pública realizada no STF, em 27 de junho de 2025, o ministro Dino destacou que a estimativa atual está em R$ 100 bilhões nesse tipo de gastos, pois a prática foi se espraiando por estados e municípios, sendo capilarizada Brasil afora. Com menos atenção e capacidade da imprensa para rastrear a aplicação dos recursos, não sabemos onde isso vai parar, caso o Judiciário não interrompa esse método.
Nos Estados já há 24 unidades federativas com emendas parlamentares impositivas, e 20 com possibilidade de transferências especiais. Além da capacidade mais limitada da imprensa de fiscalizar e apontar desvios, órgãos de controle cooptados, somados a um espaço cívico mais frágil, agravam ainda mais os riscos de corrupção e desvios. Até municípios avançam a passos largos na transferência do controle do orçamento público para vereadores com impactos graves sobre as lógicas eleitorais.
Cabe ao Executivo planejar e organizar as ações para prover o bem comum. Dentro da lógica da prevalência do interesse público, o manejo orçamentário deve ser sempre tarefa desse Poder, constitucional e tecnicamente estruturado para a função de diagnosticar demandas e organizá-las com vistas à realização da eficiência, legitimidade e responsividade do gasto público. Ao Legislativo, cabe elaborar leis e fiscalizar o Executivo.
No Brasil de hoje, o Legislativo controla o orçamento, que perdeu sua unicidade lógica e sua coerência. Os ideais republicanos e princípios constitucionais de razoabilidade, moralidade, impessoalidade, eficiência, accountability e equilíbrio federativo vêm sendo diuturnamente conspurcados. Desde 2015, o Congresso perde legitimidade no cumprimento da tarefa de fiscalizar o Orçamento da União, por avançar em níveis sem precedentes sobre as prerrogativas do governo federal, ao qual cabe administrar e executar o conjunto de despesas e receitas do país, a partir de dados sob a lógica sistêmica da equalização de diferenças regionais e locais.
A inversão de papéis significa a quebra da cláusula pétrea da separação de Poderes e a inviabilidade do planejamento para a concretização das diversas políticas públicas, já que as emendas individuais, de bancada e Pix não exigem critérios de destinação. Rasga-se a Constituição, com a prevalência de interesses paroquiais em detrimento do interesse público. O Congresso passa a exercer a função do Executivo, determinando gastos, perdendo legitimidade para fiscalizar, o que tumultua o processo. Daí a inconstitucionalidade da hipertrofia das emendas parlamentares.
Dados levantados pelo pesquisador Humberto Alencar, do Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa, revelam que partimos, em 2014, de um montante de R$ 200 milhões anuais em emendas para R$ 50,4 bilhões anuais, em 2025. Nos últimos 11 anos, de 2014 a 2025, o montante de emendas parlamentares aumentou 25.100%, e, no mesmo período, o salário-mínimo subiu 109%. O fato de as emendas parlamentares destinadas sem rastreabilidade e sem critérios terem ultrapassado a dotação de 30 dos 39 ministérios da República é inominável, e subverte o bom senso, a ordem jurídica e o regime democrático. As emendas são direcionadas a projetos locais que deveriam ser financiados pelos orçamentos municipais ou estaduais, jamais com dinheiro federal.
Desde a sua concepção e definição, até a sua execução, o orçamento sofre problemas estruturais. Compreender e buscar resolver ou, ao menos, atenuá-los é necessidade elementar para o país avançar no cumprimento de objetivos fundamentais de construir uma sociedade livre, justa e solidária. Embora a Constituição de 1988 e leis posteriores, como a Lei de Responsabilidade Fiscal, tenham avançado com os requisitos de transparência orçamentária, estamos longe do cenário ideal, em que o cidadão possa ter condições de fiscalizar onde foi gasto o dinheiro público.
O orçamento deveria ser o resultado de processo de deliberação coletiva e participativa em que sociedade e seus representantes alocam o dinheiro público de acordo com necessidades e prioridades escolhidas. O atual processo de corrosão orçamentária, decorrente do Orçamento Secreto, subverte essa lógica, pois o Congresso Nacional adota como princípio a destinação de emendas pelo compadrio e clientelismo.
O plano orçamentário fundamentado, participativo e baseado em dados e evidências perde espaço para a emenda parlamentar decorrente do “contato conhecido” ou da pura e simples compra de votos. Com isso, reforça-se a percepção de que congressistas não estão preocupados com interesses do país, mas sim com interesses pessoais e paroquiais. Perde-se a legitimidade e a confiança no Parlamento.
O processo de captura do orçamento público mediante emendas dos congressistas desestabilizou o equilíbrio institucional entre os poderes. O Poder Executivo, com espaço discricionário para execução de despesa cada vez menor, acaba forçado a adotar estratégias para evitar ou discutir questões consideradas sensíveis às bancadas parlamentares, pois não tem capacidade de utilizar o orçamento como instrumento de barganha. Por sua vez, o Poder Judiciário, em particular o STF, tem sido chamado a atuar neste cenário, seja pelo Poder Executivo, que busca evitar conflitos diretos, seja pela sociedade civil.
O fato de as emendas parlamentares subverterem a lógica de alocação normal do orçamento, não resultando de processo de deliberação coletiva, acarreta acirramento de conflitos judiciais relacionados ao tema. Partidos políticos que, por seu tamanho ou posição no Parlamento, não tenham participado do processo de alocação de recursos para emendas acabam tendo incentivos para questionar este tipo de execução orçamentária.
Neste contexto de conflitos envolvendo o orçamento público, o STF ganha destaque na mediação de conflitos entre Executivo, Legislativo e sociedade civil. O STF busca reorganizar e recolocar o orçamento público sob as regras exigidas pela Constituição Federal. No âmbito da ADPF 854, a corte tem firmado limites claros ao uso de emendas parlamentares, exigindo transparência, prestação de contas e accountability, a despeito da resistência de congressistas. No cenário atual de polarização política, as decisões da Corte contribuem para o fortalecimento de sua legitimidade institucional.
É crônico o frágil processo de elaboração do orçamento
A crise orçamentária no Brasil não decorre apenas da hipertrofia das emendas parlamentares, mas também da fragilidade estrutural do próprio processo de elaboração do orçamento. A proposta apresentada pelo Executivo traz ações excessivamente genéricas, capazes de abrigar praticamente qualquer tipo de emenda que os 594 congressistas desejem apresentar.
Para reverter esse quadro, é fundamental que o Executivo assuma plenamente sua responsabilidade constitucional e prepare peças orçamentárias claras, específicas e consistentes, com ações bem delimitadas, objetivos concretos e metas mensuráveis a partir do Plano Plurianual. O orçamento anual deve ser distribuído de acordo com a forma como cada despesa impacta essas metas, cabendo ao Legislativo emendar apenas mediante a retirada de recursos de uma área para destiná-los a outra.
Essa mudança é necessária para romper com o pacto de mediocridade hoje existente entre Legislativo e Executivo, como descreve Rita Santos, especialista em finanças públicas do Instituto Internacional de Inovação em Políticas Públicas e Soluções (3Ipês). O orçamento público deve ser encarado como um trade-off: cada nova despesa precisa ser justificada à luz das prioridades nacionais, impondo escolhas transparentes sobre o que será reduzido ou eliminado.
Dessa forma, atribui-se ao parlamentar que propõe uma emenda o custo de accountability, ao ter de justificar com critérios objetivos e claros, a necessidade da realocação. Somente assim será possível encerrar o “cheque em branco” que o Executivo concede anualmente ao Legislativo, ao deixar espaços vazios no orçamento para preenchimento arbitrário. Prática que, reafirmamos, viola o desenho constitucional e perpetua a captura do interesse público por interesses privados e locais.
As decisões do STF têm contribuído parcialmente para melhorar a transparência e a rastreabilidade, mas ainda não conseguiram impor mudanças profundas na lógica de construção e emendamento do orçamento. A Lei Complementar nº 210/2024, aprovada em resposta a determinações da Corte, estabeleceu normas para a proposição e execução de emendas parlamentares, mas foi elaborada de forma açodada pelo Congresso Nacional, sem participação da sociedade.
Isso revela a falta de interesse em alterar de fato a lógica de um orçamento mais bem desenhado. Embora a Lei traga avanços no planejamento e na prestação de contas das emendas Pix, ainda permite que emendas de bancada sejam utilizadas para praticamente qualquer finalidade. Ao classificar como prioritárias as áreas amplas, como Educação, Saúde e Habitação, o Congresso incorreu em generalizações que esvaziam o próprio conceito de prioridade: quando tudo é prioridade, nada é prioridade.
Os impactos dos desvios produzidos pelas emendas parlamentares podem ser sistematizados em três categorias:
(i) Pulverização dos riscos de corrupção: os recursos alocados por meio de emendas parlamentares têm se concentrado em pequenos e médios municípios pelo Brasil. São justamente esses os entes federativos que contam com políticas e estruturas de controle e transparência mais frágeis. Por isso, não é surpresa que tenham se proliferado os escândalos de corrupção envolvendo a aplicação de recursos oriundos de emendas parlamentares.
(ii)
Prejuízos para políticas públicas: a destinação dos recursos de emendas parlamentares, com frequência, não obedece a critérios técnicos, o que pode contribuir para a alocação de recursos em projetos não prioritários, o aprofundamento de desigualdades e as ineficiências alocativas. Exemplos disso alcançam as áreas da saúde, educação e saneamento básico.
(iii)
Desvios eleitorais: o controle de verbas discricionárias produz benefícios eleitorais para parlamentares que controlam as maiores porções do orçamento e para seus grupos políticos. Contribui-se, assim, para a perpetuação no poder desses parlamentares. Nas eleições de 2022 já foi possível identificar a substancial vantagem eleitoral que obtiveram os/as parlamentares com relação à eleição anterior e o impacto positivo em suas votações produzido pela destinação de recursos às suas bases eleitorais.
Recentemente, as taxas de reeleição nas prefeituras cujas cidades receberam mais recursos de emendas foram mais altas do que as demais. Já há indícios de que prefeitos que recebem mais recursos de emendas conseguem reduzir o nível de concorrência nas eleições, já que isto desencoraja concorrentes.
Ficou evidente que, no ritmo atual, o aumento das emendas parlamentares acelerado consumirá todo o orçamento discricionário da União, prejudicando gravemente a capacidade de investimento do governo federal. No nível local, tem incentivado a irresponsabilidade de gestores, ao possibilitar que a máquina pública seja inflada sem lastro permanente em receitas perenes.
Diante desse quadro, é urgente que o Judiciário — em especial o STF — siga atuando para garantir que a alocação dos recursos em respeito aos princípios constitucionais de eficiência, transparência e redução das desigualdades regionais. Como demonstrado em 2024, o Congresso responde de forma clara à linguagem do congelamento da execução orçamentária.
Para que mudanças estruturais avancem diante das poderosas forças políticas do Congresso, é imprescindível a participação ativa da sociedade civil. Somente assim será possível legitimar a construção de um orçamento público mais técnico, transparente, participativo e submetido a freios institucionais, capaz de restaurar a confiança da população no processo democrático e recolocar a política orçamentária a serviço do interesse coletivo.
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