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Interesse Nacional
05 outubro 2015

Esgotamento Fiscal: Por Que Somente Agora?

O artigo explora a dinâmica fiscal da União de 1999 até 2014 com o objetivo de descrever como os motivos dos desequilíbrios inerentes ao nosso contrato social, expresso em nossa Constituição, somente aparecerem – e de maneira dramática – em 2015.
O argumento básico é que de 1999 até 2010 o crescimento da receita recorrente, muito além do crescimento do PIB, mascarou os desequilíbrios inerentes ao nosso contrato social. Quando a dinâmica da receita virou, a partir de 2010, a estratégia do governo foi varrer o problema para baixo do tapete. Com o emprego desmedido de receitas não recorrentes, conseguiu-se empurrar com a barriga o momento da verdade de nosso contrato social. Evidentemente, ao postergar por tantos anos o momento da verdade, quando o futuro finalmente chega, a real situação fiscal do Estado encontra-se muito mais deteriorada. Essa narrativa descreve a passagem súbita da situação de folga fiscal, até pouco tempo atrás, para a atual situação de virtual insolvência do Tesouro Nacional.
Além desta curta introdução, o artigo tem quatro seções. A segunda seção apresenta a evolução do gasto público da União desde 1991. Na seção seguinte, apresentamos a trajetória do superávit primário da União de 1998 até 2014. Finalmente, na quarta seção apresentamos os dados relativos à evolução da receita recorrente bem como a estratégia adotada ao longo do período de vigência da nova matriz econômica, de 2010 até 2014, para enfrentar a queda da taxa de crescimento da receita recorrente. Segue-se a isso uma rápida conclusão.
Contrato social da redemocratização
A marca de 2015 será o reconhecimento, por parte da sociedade brasileira, de que vivenciamos forte crise fiscal. Após alguns anos em que o problema de solvência do Tesouro Nacional parecia que havia sido resolvido – ganhamos o grau de investimento em 2008 –, temos que retornar ao tema da solvência. A Constituição brasileira representou o desejo da sociedade de construir no Brasil um estado de bem-estar social com padrão europeu continental. O estado de bem-estar social estabelece um contrato dos diversos cidadãos com o Estado – que pode ser pensado em um contrato entre os cidadãos mediado pelo Estado – estabelecendo regras de contribuição e pagamentos de impostos, quase sempre compulsórios, e critérios de elegibilidade a programas sociais e a serviços públicos.
É função do Estado, segundo a Constituição, prover diversos serviços e seguros sociais ligados às necessidades básicas dos cidadãos em educação e aos riscos enfrentados ao longo do ciclo de vida e no mercado de trabalho: risco de pobreza com o programa Bolsa Família; risco de perda da capacidade laboral, fruto do envelhecimento ou de doença, com os diversos programas previdenciários e assistenciais, além da aposentadoria por invalidez; risco de doença, com o acesso integral e gratuito aos serviços públicos providos pelos SUS, além do programa de auxílio doença; risco de perda do emprego, como o FGTS e o seguro-desemprego; risco de perda de renda para os dependentes, com o programa de pensão por morte; entre tantos outros.
Do ponto de vista orçamentário, o estado de bem-estar social significa a existência de diversos programas, nos quais o acesso dos cidadãos ocorre em função de critérios de elegibilidade e valor de benefícios definidos em lei. A legislação determina a dinâmica do gasto. Alteração dessa dinâmica requer, portanto, alteração legislativa.
A tabela 1 apresenta a evolução do gasto não financeiro da União, excluindo-se transferências para estados e municípios. De 1991 até 2014, este conceito de gasto público cresceu de 11% do PIB para 20% do PIB, crescimento de 9 pontos percentuais do PIB ou crescimento médio anual de 0,39 ponto percentual do PIB, por 23 anos.
Somente as principais rubricas do gasto social – INSS, benefícios da Lei Orgânica da Assistência Social (Loas) e Benefícios de Prestação Continuada (BPC), seguro-desemprego, abono salarial, Bolsa Família e seus antecessores, Bolsa Escola e Vale Gás, e custeio da saúde e educação – aumentaram anualmente, em média, 0,3 ponto percentual do PIB ou quase 7 pontos percentuais do PIB de 1991 até 2014.
É importante frisar que ao longo deste período o crescimento do PIB real foi de 203%. Ou seja, dado que o gasto social saiu de 5,5% do PIB para 12,3% do PIB, o crescimento real do gasto social acumulado no período foi de pouco mais de 450% ou 7,7% real ao ano!
O leitor atento notou que a rubrica subsídios sofreu forte aumento no quadriênio da presidente Dilma. Esse item do gasto primário da União rodou, em média, de 1997 até 2010, na casa de 0,3% do PIB, com forte estabilidade e correspondia essencialmente aos subsídios ao crédito agrícola. A partir de 2011, dois outros itens do gasto passaram a pressionar esta conta: os subsídios associados aos empréstimos do programa Minha Casa Minha Vida (MCMV) e o pagamento que o Tesouro Nacional tem que fazer à Previdência Social por conta da desoneração da folha de salários. Mais recentemente, esta conta tem sido pressionada pelos pagamentos, pelo Tesouro, de equalização de juros ao BNDES no âmbito do Programa de Sustentação do Investimento (PSI).
Sempre oportuno lembrar que o crescimento real de 7,7% ao ano do gasto social deve-se a critérios de elegibilidade e aos valores de benefícios, ambos definidos na forma da lei.
Evolução do superávit primário
A Figura 1 apresenta a evolução do superávit primário do Setor Público Consolidado (SPC). O superávit primário é a diferença entre receita e despesa primária, que é a despesa não financeira do setor público. Em contabilidade de empresas, o conceito equivalente é o lucro antes de juros, impostos, depreciação e amortização (Lajida). O Lajida mede a capacidade de geração de caixa da empresa, no caso do superávit primário do setor público.
Na figura, os pontos representam o superávit primário do SPC, cujos valores estão indicados na figura sobre os pontos. O superávit primário do SPC é a soma de quatro componentes. A mais importante, em cinza claro na figura, é o superávit primário da União obtido somente com receitas recorrentes, ou seja, as receitas regulares de impostos e contribuições. O segundo componente do primário do SPC é o primário dos entes subnacionais da Federação, estados e municípios, e o terceiro componente é o primário das empresas estatais. Finalmente, em vermelho escuro, a contribuição das receitas não recorrentes líquidas de gastos não recorrentes (capitalização do fundo soberano, em 2008, e da Petrobras, em 2010) para o primário do SPC. Da soma das quatro barras coloridas sobrepostas resulta o superávit primário total do SPC, representado pelo ponto.
Rápida inspeção à figura evidencia fatos estilizados a seguir. De 1998 para 1999, o superávit primário elevou-se de zero para 2,8% do PIB. De 1999 até 2008, o primário esteve em torno de 3,2% do PIB, com os resultados muito positivos em 2004 e 2005, quando atingiu 3,7% do PIB. De 2009 até 2013, o primário, em média, foi de 2,3% do PIB, com subida de 2009 até 2011 e queda em seguida, atingindo 1,8% do PIB em 2013. Em 2014, houve o desastre do déficit primário de 0,6% do PIB.
Outro fato estilizado importante é a trajetória do superávit primário não recorrente da União. De 1998 até 2002, a participação das receitas não recorrentes para a construção do superávit da União é decrescente. As receitas não recorrentes foram, como proporção do PIB, entre 1998 até 2002, respectivamente de 0,93%, 0,84%, 0,44%, 0,37% e 0,12%. De 2002 até 2008, ocorre o período de ouro da política fiscal brasileira, quando obtivemos primários folgadamente acima de 3% do PIB com receitas recorrentes iguais ou menores que 0,1% do PIB.
O texto dos próximos três parágrafos acompanha os dados da Tabela 2. Em seguida à crise de 2008 há, como vimos, piora do primário, que é reduzido de mais de 3% do PIB no período entre 2002 e 2008 para 2,3% do PIB, em média, entre 2009 e 2013, e, pior, com crescente participação de receitas não recorrentes. Após 2008, quando houve déficit primário não recorrente de 0,21% do PIB – pois a capitalização do fundo soberano em 0,44% do PIB compensou receitas não recorrentes de 0,23%, gerando um déficit primário não recorrente de 0,21% do PIB – o superávit primário não recorrente entre 2009 e 2014 foi, respectivamente, de 0,25%, 1,16%, 0,67%, 0,97%, 1,23% e 0,88%, sempre como proporção do PIB.
Os elevados valores para o superávit primário não recorrente dificultaram a leitura da política fiscal. A queda do superávit primário obtido somente com receitas recorrentes da União foi muito maior. Entre 2009 e 2013, o superávit primário da União obtido somente com receitas recorrentes foi, respectivamente, de 1,02%, 0,86%, 1,46%, 0,86% e 0,23%. Na média do período, foi de 0,89% ante 2,27% no período de ouro da política fiscal. Foi uma piora de 1,38 ponto percentual para a média 2009-2013 ante a média 2002-2008. Se considerarmos somente o superávit primário recorrente do SPC, a queda foi de 1,44% do PIB para a média 2009-2013 ante 3,31% do PIB para o período de ouro da política fiscal, uma queda entre períodos de 1,87 ponto percentual. Também contribuiu para a queda a deterioração do primário dos entes subnacionais que fora de 0,90% do PIB para o período de ouro e caiu para 0,54% no quinquênio 2009-2013, uma queda entre períodos de 0,36 ponto percentual.
Ao longo de todo o período, há contínua queda da contribuição das empresas estatais para a composição do superávit primário. Entre períodos, houve queda de 0,13 ponto percentual, indo de 0,15% do PIB no período de ouro da política fiscal para 0,02% do PIB na média 2009-2013.
O ano de 2014 foi provavelmente o mais desastroso da política fiscal no período republicano. A célula formada pela última coluna e última linha da tabela 2 indica queda de primário recorrente de 2013 para 2014 de 2 pontos percentuais do PIB. Em 2014, houve déficit recorrente de 1,47% do PIB.
Narrativa: como chegamos até aqui
A política fiscal, de 1998 até 2014, passou por quatro períodos distintos. O primeiro, de 1998 até 2001, de construção de primários elevados obtidos prioritariamente por meio de receitas recorrentes. O segundo período, de 2002 até 2008, a época de ouro da política fiscal, quando se observou estabilidade dos superávits primários em torno de 3,2% do PIB. O terceiro, de 2009 até 2013, de contínua queda do superávit primário obtido por meio de receita recorrente (com rápida reversão em 2011). E o quarto período: o desastroso ano de 2014. Esses fatos foram descritos na seção anterior do artigo.
Na primeira seção do artigo, em seguida à introdução, mostramos que a trajetória do gasto público, como proporção do PIB, tem crescido permanentemente desde 1991. Com isso, foi possível compatibilizar o forte crescimento dos gastos com os elevados superávits primários ente 2002 e 2008, obtidos com receitas recorrentes e baixa contribuição de receitas não recorrentes e de superávit primário das empresas estatais.
A Tabela 3 (na página seguinte) explica a era de ouro da política fiscal. Entre 1999 e 2010, a taxa de crescimento real da receita recorrente da União foi de 6,9% ao ano (veja na terceira coluna da tabela) ante crescimento do produto real de 3,4% ao ano (segunda coluna da tabela). Ou seja, ao longo de uma janela de 12 anos, a receita recorrente deflacionada pelo IPCA cresceu o dobro do crescimento do produto real, este, evidentemente, deflacionado pela inflação do PIB, que tem o nome técnico de deflator implícito do PIB.
A quarta coluna da tabela apresenta o excesso do crescimento da receita recorrente real deflacionada pelo IPCA sobre o crescimento do PIB real. Parte do comportamento extraordinário da receita recorrente foi fruto de um comportamento diferente do deflator do bem estar das famílias, o IPCA, e o deflator do PIB. A quinta coluna indica que nos 12 anos, de 1999 até 2010, em média, o deflator do PIB correu 1,8 ponto percentual além do IPCA. O excesso anual de crescimento entre a receita real recorrente e o PIB de 3,4 pontos percentuais pode ser decomposto em 1,8 ponto percentual devido aos índices empregados para deflacionar cada uma das séries e, por resíduo, 1,6 ponto percentual em função do aumento do volume de arrecadação, fruto, possivelmente, de processo de formalização e de melhora administrativa da Receita Federal.
A segunda linha da tabela apresenta as mesmas estatísticas da linha anterior para o período entre 2011 e 2014. A receita recorrente passou a crescer à mesma velocidade do PIB. Não surpreende que o deflator do PIB tenha passado a crescer à mesma velocidade do IPCA.
A situação normal é aquela em que a receita cresce à mesma taxa de crescimento do PIB e no qual o deflator do PIB acompanha o IPCA. São períodos em que não há crescimento da carga tributária nem apreciável alteração de preços relativos. Ou seja, o período entre 2011 e 2014 é um período de normalidade, do ponto de vista da arrecadação. O período excepcional foi o anterior. Assim, os seguidos e elevados superávits primários do SPC, obtidos quase que exclusivamente com receitas recorrentes na era de ouro da política fiscal, apesar de não fazermos reformas maiores no contrato social da redemocratização, somente foi possível em função do comportamento extraordinário da receita recorrente da União.
A Figura 2 apresenta as aberturas do superávit primário da União, obtido com receitas não recorrentes. Fica clara a estratégia de empurrar com a barriga os problemas (ou varrer os problemas para baixo do tapete) adotada pelo presidente Lula nos dois últimos anos de seu segundo mandato e pela presidente Dilma em seu primeiro mandato.
A evolução do primário não recorrente passou por três períodos distintos. O primeiro, de 1998 até 2001, em que os primários não recorrentes foram reduzidos seguidamente de pouco menos de 1% do PIB em 1998 até 0,37% do PIB. O segundo, o período de ouro da política fiscal, de 2002 até 2008, o primário não recorrente esteve sempre abaixo de 0,12% do PIB, atingindo o valor de -0,21 em 2008 em função da capitalização do fundo soberano. No terceiro período, de 2009 até 2014, inicia-se um processo de elevação do superávit primário não recorrente até atingir 1,23% em 2013 e 0,88% do PIB em 2014. O elevadíssimo valor para 2010, de 1,18% do PIB, foi em grande medida produzido pela controversa operação de capitalização da Petrobras.
A figura evidencia com clareza a deterioração da qualidade da política fiscal. No período de redução do peso do superávit primário não recorrente, de 1999 até 2002, o primário não recorrente foi essencialmente formado por receitas de bônus de assinatura de leilão de blocos petrolíferos, outorga de serviços de utilidade pública e concessões de rodovias e receita de privatização de empresas estatais. No período de aumento do peso do primário não recorrente, de 2009 até 2014, as maiores parcelas foram a receita de programa de refinanciamento de dívidas da União (Refis) e as operações ligadas à contabilidade criativa, a controversa capitalização da Petrobras e as operações de antecipação de dividendos de empresas estatais.
Chegamos ao final de nossa narrativa. Convido o leitor a observar novamente a última barra da Figura 1, o desastroso ano de 2014. A forte desaceleração do produto foi acompanhada de fortíssima redução do primário recorrente da União. Assunto para outra oportunidade, essa piora dramática do primário recorrente da União foi fruto da queda de receita sobre estrutura do gasto público, cuja taxa de crescimento além da taxa de crescimento do produto é cada vez mais rígida. A desaceleração da receita recorrente deve-se às desonerações e à desaceleração do crescimento, e que, portanto, podem ser revertidas. Provavelmente, isto também se deve à alteração do comportamento dos indexadores e do crescimento do volume arrecadado, em função, entre outros motivos, de esgotamento do processo de formalização. Ou seja, frente aos fatos documentados neste trabalho, aqueles analistas que consideram a enorme queda da receita recorrente da União um fenômeno transitório subestimam a quebra estrutural que houve em 2010. A construção de primários recorrentes ficou difícil.
Esta dificuldade ficou ainda mais complexa em função dos impactos dos seguidos programas de refinanciamento de dívida (Refis). Veja a Figura 2, sobre a disposição ao pagamento do contribuinte pessoa jurídica do setor privado. Todos deixam de pagar, esperando o próximo programa.
Conclusão
O artigo construiu a narrativa do desastre fiscal em que nos metemos. Ainda incompleta – faltou melhor entendimento da queda da receita em 2014 –, a reversão da dinâmica dos deflatores em 2010 e do crescimento do volume da receita sinalizam que será muito difícil à frente a construção de elevados superávits primários como os obtidos na época de ouro da política fiscal, de 2002 até 2008.
O artigo argumenta que a dinâmica daquele período foi excepcional e que a dinâmica recente representa retorno à normalidade. Se o argumento estiver correto, será impossível recuperarmos a solvência do Tesouro Nacional sem reformas muito profundas que ataquem o crescimento automático do gasto além do crescimento do produto da economia. Provavelmente, teremos que enfrentar nova rodada de elevação da carga tributária, além de nova e fortíssima rodada de desvinculação de receita da União.
Temos  enormes desafios à frente.


1
Agradeço a Vilma Pinto, economista do Ibre da FGV, pela organização dos dados. Erros e omissões são, evidentemente, de minha responsabilidade.

Samuel Pessoa é pesquisador associado do Instituto Brasileiro de Economia da FGV e sócio da Tendências Consultoria Integrada.

Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

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