01 agosto 2014

Expectativas e Frustrações

No mesmo dia, 25 de maio de 2014, um domingo, e no mesmo jornal, a “Folha de S. Paulo”, mas em artigos diferentes, os economistas Henrique Meirelles, Armí- nio Fraga e Marcos Lisboa coincidiram no diagnóstico: esgotado o ciclo da estabilidade, deflagrado por Fernando Henrique Cardoso, e da expansão do consumo, marca do governo Luiz Inácio Lula da Silva, o grande desafio do Brasil é a produtividade da economia. Nenhum dos três diz com toda a clareza, mas a conclusão óbvia, linear, é que a presidente Dilma Rousseff chega ao final do seu mandato sem dar respostas ao principal desafio do país.

No mesmo dia, 25 de maio de 2014, um domingo, e no mesmo jornal, a “Folha de S. Paulo”, mas em artigos diferentes, os economistas Henrique Meirelles, Armí- nio Fraga e Marcos Lisboa coincidiram no diagnóstico: esgotado o ciclo da estabilidade, deflagrado por Fernando Henrique Cardoso, e da expansão do consumo, marca do governo Luiz Inácio Lula da Silva, o grande desafio do Brasil é a produtividade da economia. Nenhum dos três diz com toda a clareza, mas a conclusão óbvia, linear, é que a presidente Dilma Rousseff chega ao final do seu mandato sem dar respostas ao principal desafio do país. Ela, a primeira mulher eleita presidente no Brasil, assumiu o poder depois de um círculo virtuoso que jogou o país no foco internacional e elevou a autoestima nacional a níveis nunca antes vistos, mas, quatro anos depois, chega à sucessão presidencial perdendo a batalha da produtividade – entre outras. Atenção: esses três autores conquistaram, com o brilhantismo das ideias e com a experiência prá- tica, um lugar de destaque na linha de frente da formulação do futuro do país, mas não são devotos dos mesmos santos da economia e não frequentaram as mesmas igrejas de poder. Armínio Fraga foi presidente do Banco Central no segundo mandato de Fernando Henrique Cardoso e coordena o programa econômico de de mudar o foco”, na página seguinte, A-3: “A política econômica retornou ao centro do debate com seu sucesso em estimular o consumo, porém não o investimento e o crescimento. Pouco se discute o lado da oferta, onde se encontra o maior desafio: aumentar a produtividade da economia”. E para quê? Porque isso é “essencial para a convergência dos padrões de vida da população aos dos países mais ricos”. Ou seja: aumentar a produtividade é fundamental, não por um arroubo “neoliberal”, “elitista” ou “para favorecer o grande capital” (aspas minhas), como acusam certos setores que se imaginam de “esquerda”, mas para buscar o bem-estar geral hoje e, principalmente, garanti-lo no futuro. Repita-se aqui que os dois autores do mesmo artigo vêm de governos distintos: Fraga é alinhado com os tucanos e Lisboa trabalhou com Antônio Palocci e com Lula, logo, no governo do PT. Detalhe interessante é que, apesar do papel relevante que tivera na era Lula, Meirelles filiou-se ao PSD do ex-prefeito de São Paulo Gilberto Kassab e, em fins de maio, estava sendo cotado para ser candidato a vice na chapa do tucano Aécio. Operação dificílima, mas bastante simbólica, e não custa lembrar que nada em política é impossí- vel. Enquanto isso, Lisboa andava, na mesma época, participando de conversas e discussões de conjuntura com o também candidato de oposição Eduardo Campos, do PSB. Não só Lisboa, aliás. Passam-se mais algumas páginas do mesmo jornal, no mesmo domingo, e eis estampado na A-12: “Dupla ligada a Palocci dialoga com Campos”. Trata-se justamente de Marcos Lisboa, ao lado de Bernard Appy, outro expoente (durante sete anos) da equipe do então ministro Antonio Palocci no governo Lula. A comichão da dissidência que acomete Meirelles, Lisboa e Appy parece ter contaminado ex- -ministros tanto de Lula quanto da própria presidente Dilma. A lista dos que se bandearam ora para a candidatura de Aécio Neves, ora para a de Eduardo Campos, é longa. Assim, por alto: Nelson Jobim, José Viegas, Roberto Rodrigues, Miro Teixeira, Cristovam Buarque, Geddel Vieira Lima, Reinhold Stephanes (que vota, internamente, contra a adesão à reeleição)… Sem contar que o próprio candidato Eduardo Campos (ex-Ciência e Tecnologia) e sua vice, Marina Silva (ex-Meio Ambiente), são o fio da meada da dissidência governista: foram ministros de Lula e puxaram para a oposição dois correligionários do PSB: Roberto Amaral (também ex- -Ciência e Tecnologia) e Fernando Bezerra Coelho (ex-Integração Nacional). E por que ocorrem esses movimentos? Cada caso é um caso, cada um desses ex-ministros tem sua motivação para trocar a reeleição de Dilma pela mudança: ora partidária, ora de conveniência regional, ora por resistência ao PT, ora por incompatibilidade de gênios com Dilma. Mas, há um ponto em comum: uma insatisfação difusa com a economia, a desordem na política, a gestão errática que se manifesta em setores vitais, como os de gás e de energia. A isso, some-se um antigo não alinhamento ao PT ou uma neodesilusão com os rumos e as práticas do partido. Registre-se que os anseios de alternância desse, digamos, microuniverso de eleitores (os ex- -ministros de governos petistas) refletem o já detectado pelos grandes institutos de pesquisa, a começar pelo Datafolha e pelo Ibope, no ânimo do conjunto de eleitores. Como já citado aqui, mais de 70% manifestam expectativa de mudança. Em sua edição de outubro-dezembro de 2010, “Interesse Nacional” reuniu sete jornalistas brasileiros de ponta e de diferentes áreas para uma espécie de balanço do governo Lula e também para projeções sobre o que seria o futuro governo, com Dilma Rousseff então já considerada virtualmente eleita. Como convinha, foram todos cautelosos. Afinal, “o futuro a Deus pertence”. Crescimento, uma expectativa frustrada Com sua longa e reconhecida experiência, Rolf Kuntz, de “O Estado de S. Paulo” e professor de Filosofia Política da USP, já advertia que, ganhasse Dilma ou seu adversário José Serra, 9 do PSDB, “o novo governo terá de enfrentar graves problemas de curto e de longo prazos para sustentar o crescimento do PIB, a modernização produtiva, a criação de empregos e a ampliação de oportunidades de realização pessoal. (…)De imediato, o desafio mais evidente será manter o crescimento num cenário internacional desfavorável”. Mais adiante, Kuntz advertia premonitoriamente: “Um crescimento puxado pelo mercado interno, como em 2009 e neste ano [2010], não será uma boa solução para o Brasil em 2011 e nos anos seguintes”. Bingo! Curiosamente, ele citava a expectativa do então ministro da Fazenda de uma expansão do PIB entre 5,5% e 6% no primeiro ano do governo seguinte, que acabou sendo de Dilma Rousseff. Se Kuntz acertava ao prever o cenário, Guido Mantega desde então já chutava os índices de crescimento muito acima dos que efetivamente iriam se confirmando, um atrás do outro, nos quatro anos de Dilma. Na sexta-feira, 29 de maio de 2014, o mesmo Mantega, que amargara crescimentos pífios em 2011 (2,7%), 2012 (1%) e 2013 (2,3%), tentava explicar, ou justificar, os constrangedores 0,2% de expansão no primeiro trimestre de 2014, derradeiro ano para tentar aquecer a economia e aumentar a média dos “pibinhos” do mandato de Dilma. Segundo o ministro da Fazenda, ora, ora, havia três motivos para os 0,2% do primeiro trimestre: 1) baixo consumo das famílias. Por quê? Por causa da inflação. 2) queda no crédito. Por quê? Por causa dos juros. 3) o “cenário desfavorável” desenhado pela lenta recuperação dos Estados Unidos e da Europa, os vilões de sempre. A culpa do crescimento constrangedor, portanto, é da inflação e dos juros. E é o próprio ministro da Fazenda de Dilma quem reconhece. Vejamos o que escreveu, no final de 2010, Cristiano Romero, colunista e editor-executivo do “Valor Econômico”: “Apesar do sucesso recente, há inúmeros obstáculos a serem superados nos próximos anos. Alguns dizem respeito à própria sustentação do modelo de estabilização adotado; outros, à ambição da nação em dar um salto histórico”. Romero detalhava: “A verdade é que a estabilização da economia brasileira avançou muito nos últimos anos, mas ainda é uma obra inacabada. A começar pela inflação.” Segundo ele, o Brasil superou o período de hiperinflação, mas estabilizou os índices de preços em patamares excessivamente altos em comparação com a mé- dia internacional. Como especificou o jornalista do “Valor”, em média, os países ricos têm inflação de 2% ao ano, e os emergentes, de 3%, enquanto o Brasil persegue a meta de 4,5%, bem acima. Pois é, colega, perseguia, porque nem mesmo essa meta,
já tão alta, foi de fato perseguida nos quatro anos de Dilma. Como se seguisse a máxima ultrapassada e – perigosa – de que “um pouco de inflação não faz mal a ninguém”, Dilma manteve os índices sempre fora do centro da meta e muito próximos do teto, de 6,5%, o que é altíssimo diante dos padrões internacionais e criticado pelos especialistas dentro do próprio Brasil. Nos três primeiros anos, a média de Dilma foi de 6,08%, e ela entrou no quarto ano com tendência de alta. Bombas a explodir em 2015 Apesar de a comparação com os três primeiros anos de FHC (12,40%) e de Lula (7,53%) ser favorável à Dilma, há diferenças de conjuntura e um fator que merece sérios estudos à parte: o controle de preços, ops!, a “administração” ou o “represamento” dos preços de energia, de gasolina e de transporte urbano. Uma bomba, aliás, a explodir no próximo governo, a partir de 2015. Seja quem for o presidente, a Petrobras, por exemplo, estará entre as primeiras prioridades. No caso dos juros, a presidente chegou a fazer pronunciamento “gratuito” na TV para gabar-se de impor-lhes rédea e compostura, mas foi vencida pelos fatos e pelos erros da própria política econômica. O gráfico da trajetória dos juros na era Dilma diz tudo. Lula deixou o governo com juros em 10,75% em dezembro de 2010. Dilma elevou-os até 12,5% em julho de 2011 e, a partir daí, houve uma forte e sistemática queda até o patamar confortável de 7,25% em outubro de 2012. Foi quando lá se foram a intenção, o pronunciamento e a tendência de queda. Com o mesmo vigor que haviam baixado, os juros voltaram a subir e, em abril de 2014, já estavam em 11%, logo, superando a marca deixada por Lula em 2010. O resultado de inflação acima do centro da meta e juros altos foi cruel. Como estampou a primeira página de “O Globo”, de forma irônica, mas rigorosamente dentro da realidade, no sábado, 31 de maio de 2014: “Com Dilma, crescimento só supera Collor e Floriano Peixoto”. Pano rápido. De outro lado, Dilma tem um troféu na economia e ostenta boas bandeiras eleitorais na área social, que já tinha sido o forte de Lula. O troféu é o índice do emprego, que, apesar de incluído entre os problemas previstos por Rolf Kuntz, continua surpreendendo, como uma jabuticaba da economia. Apesar do crescimento tão baixo, de investimentos patinando, de inflação e juros altos, os índices de desemprego são baixos, principalmente se comparados aos dramáticos de uma Europa que ainda enfrenta dificuldades para sair da crise. Pelos dados oficiais do governo brasileiro, foram criados 4,139 milhões de postos de trabalho desde janeiro de 2011 até abril de 2013, e Dilma abriu o ano de 2014 comemorando um recorde: a taxa média de desemprego caiu a 5,4% em 2013, a menor em 11 anos, segundo o IBGE, que avalia o emprego apenas em seis regiões metropolitanas. Mas, a metodologia do instituto já vinha sendo questionada, está em fase de transição para abranger o país inteiro e pode trazer surpresas. Tanto que houve uma tentativa indireta do governo de empurrar a mudança para depois das elei- ções. Houve uma justa rebelião dos quadros técnicos do IBGE e a mudança já está ocorrendo mesmo em 2014. Quanto aos programas sociais: tanto quanto foram no governo Lula, continuaram sendo o forte do governo Dilma, que chegou à campanha da reeleição com programas consolidados e de grande apelo nos palanques e na propaganda eleitoral: o Minha Casa, Minha Vida, o Mais Médicos (mesmo sob críticas do setor) e o Pronatec, que aumentou significativamente a oferta de cursos de educa- ção profissional e tecnológica. Esses programas pontuais, porém, não devem responder à provocação que o jornalista Paulo Sotero, diretor do Brazil Institute do Woodrow Wilson Center for Scholars, em Washington, fez na mesma edição do final de 2010 desta “Interesse Nacional”. Nela, Sotero destacou os “obstáculos que, a despeito do inegável, mas tardio, progresso econômico e social alcançado nos últimos 16 anos, continuam a limitar a realização do enorme potencial do país”. Ele citou: “a qualidade ainda precária de um sistema educacional que (…) reduz a competitividade internacional do país; o crime; a corrupção policial e a impunidade (…); um sistema tributá- rio regressivo e injusto; (…) a precariedade da infraestrutura”. Para não dizer que nada disso realmente avan- çou, como esperava Sotero e esperávamos todos nós, é preciso reconhecer que a realização da Copa do Mundo no Brasil, em junho e julho de 2014, criou obrigações inadiáveis e, de fato, os aeroportos, pelo menos os mais nevrálgicos, ganharam mais espaço, mais conforto e mais modernidade. No mais, a lista de Sotero não evoluiu muito nos últimos quatro anos: o sistema educacional continua muito precário, a violência é assombrosa nos centros urbanos de Norte a Sul, boa parte das polícias continua em simbiose com o crime e a reforma tributária mofando estava, mofando está nas gavetas da política e da burocracia. O que ninguém previu: as manifestações de junho de 2013 Será que nos quatro anos do próximo governo, seja ele de Dilma, Aécio ou Eduardo Campos, esse estado lamentável de coisas vai mudar? Difícil saber, mas há uma novidade no cenário brasileiro que não foi prevista, nem sequer aventada, por nenhum dos sete brilhantes autores da edição de outubro-dezembro de 2010: as manifestações populares. 11 Assim como esses jornalistas, também toda a mídia, as organizações sociais, os órgãos de informação de diferentes instâncias de poder e os pró- prios governos – federal, estaduais e municipais – foram surpreendidos por milhões de pessoas nas ruas de capitais e grandes cidades brasileiras em junho de 2013. Havia ali de tudo um pouco, desde a gurizada que passou por cima de uma UNE alinhada com os governos do PT até profissionais liberais exaustos de escândalos, excesso de impostos, falta de eficiência dos serviços públicos. O pretexto foi um aumento de R$ 0,20 nas tarifas de ônibus e metrôs em São Paulo e no Rio, mas isso foi… apenas um pretexto mesmo. Seguiu-se a essa explosão espontânea, gerada e animada via internet, um novo estágio de protestos ainda mais surpreendentes e muito menos pacíficos: entraram em cena os temíveis “Black Blocs”, de capuzes na cabeça e pedras nas mãos, quebrando vidraças, invadindo lojas, destruindo carros. Simultaneamente, espantaram das ruas os manifestantes “comuns” e subtraíram vários índices das pesquisas sobre o apoio da sociedade às manifestações. Mais ou menos assim: enquanto pacíficas, sim, as pessoas aprovavam; violentas, não contem com elas. A novidade dos protestos foi um aviso, uma advertência, para todo tipo de governante. Nesse contexto, e num país onde o presidencialismo é tão forte, a principal vítima política acabou sendo a presidente da República, que simplesmente despencou nas pesquisas. Ela, que batia recordes impensáveis até mesmo para Lula, o mais popular de todos os presidentes, caíra 8 pontos antes mesmo das manifestações. Depois delas, incluídos esses 8 pontos, Dilma perdeu nada mais nada menos que 35 pontos em seus índices de aprovação. Há muitas lições a serem, ainda, tiradas de junho de 2013, que deixou como sequelas a facilidade de fazer greves, inclusive no serviço público e até mesmo nas polícias, e a capacidade de mobilização das mais diferentes categorias de profissionais e de cidadãos. Daí para o “fora, Copa”, insinuado já na Copa das Confederações, foi um pulo. Além de jogar os holofotes para a internet e gerar indagações sobre o novo mundo das redes sociais, as manifestações também passaram a questionar a extensão da mídia independente e a eficácia da chamada “comunicação política”, para a qual Eugênio Bucci, professor da ECA-USP chamou a atenção na “Interesse Nacional” daquele quase final de 2010. Imprensa e partidos políticos Em seu artigo, Bucci condenou tanto a censura judicial – pela qual os poderosos impedem a publicação de textos que contrariem seus privil

é- gios e contem duras realidades – quanto “o incremento incessante da publicidade governamental”. Ambas, segundo ele, “revelam o mesmo caldo de intolerância e autoritarismo que ainda constitui um déficit na nossa democracia”. E continuou: “O uso do erário, em altas somas, para convencer a sociedade de que os governantes são “gente do bem” e devem ser reeleitos, em campanhas que vão ao ar ao longo de toda a dura- ção do mandato, e não somente durante o período eleitoral (…), é, isto sim, um sintoma da mesma base de valores e condutas que enxerga a informa- ção não como um direito, mas como arma para direcionar o debate público, às expensas do dinheiro que deveria servir a todos”. Isso, ele conclui, se dá para “combater ou inibir a informação jornalística independente”. Poder-se-ia completar o raciocínio dizendo que, portanto, essa prática é para impedir que a sociedade saiba de desvios de dinheiro público e de conduta, que não tenha acesso à verdade dissimulada pelos palanques e pelos palácios. Em seu texto, Bucci citou nominalmente os então candidatos Dilma, do PT, e José Serra, do PSDB, mostrando que a prática de resistir e espezinhar a mídia independente, para tentar se refugiar na cômoda propaganda oficial, é apartidária e disseminada entre as diferentes esferas da Federa- ção – além de, cada vez mais, entre os Poderes. A imprensa, portanto, torna-se mais e mais alvo da campanha explícita de partidos políticos, principalmente do PT, e de importantes líderes, a começar por Lula, enquanto enfrenta a concorrência dessa “comunicação governamental” e o aumento crescente da presença da internet, uma terra de ninguém na qual cabe tudo, até mesmo ameaças de morte anônimas contra o presidente do Supremo Tribunal Federal. Perdidos nessa barafunda de informações e contrainformações, os cidadãos passaram a ir às ruas. Não fosse a assombração dos “Black Blocs”, talvez não tivessem saído delas. E nada mudou no sistema político Aesse atordoamento, junte-se um dos princi pais problemas brasileiros – até porque nin- – guém, nenhum governo ou força política se dispôs, até aqui, a efetivamente combatê-lo: a crise dos partidos políticos no Brasil. Nem mesmo Lula, do alto de seus 80% de popularidade, arriscou um único ponto percentual de aprovação para tentar melhorar o sistema. Em seu artigo para a mesma “Interesse Nacional”, Maria Inês Nassif, então colunista do “Valor Econômico”, fez um prognóstico incontestável: “O Brasil que sair das urnas estará com um quadro partidário precocemente senil”. Passados quatro anos e diante de nova eleição para presidente, governadores, senadores e deputados, repita-se aqui exatamente a mesma previsão, com as mesmíssimas palavras: “O Brasil que sair das urnas estará com um quadro partidário precocemente senil”. E, acrescente-se, inchado. Para que servem três dezenas de partidos e a quem representam? Aliás, para que, mesmo, 39 ministérios? Até quando, e por quantos governos, o prognóstico de Nassif, feito em 2010, irá se repetir? Nem os búzios conseguiriam responder. No início de seu governo, Dilma conviveu com uma série de denúncias do Ministério Público, da Polícia Federal e da imprensa contra ministros de partidos aliados. Surfou na onda, demitiu uns, aceitou a demissão de outros, e os marqueteiros fizeram o resto. Surgiu daí a imagem da “faxina”, que iria limpar a Esplanada dos Ministérios, quiçá as bancadas governistas, das velhas sujeiras – e dos velhos sujos – de sempre. Mas, o papel de “faxineira” durou pouco e dificilmente poderia ser usado, por exemplo, na campanha de 2014. Dilma logo cansou, deixou como estava e até readmitiu alguns dos “faxinados”. A propósito, acaba de se repetir, em fins de maio de 2014, o mesmo ritual macabro que antecede eleições em São Paulo: o beija-mão do candidato petista – antes Fernando Haddad, à Prefeitura da capital, agora Alexandre Padilha, ao governo do Estado – ao grande líder do PP, Paulo Maluf. Lula compareceu à conversão de Haddad, em 2012, nos jardins da mansão da família Maluf, e não à de Padilha, em 2014, na Assembleia Legislativa, mas, nesta, foi aclamado pelo cada vez mais consolidado aliado como “grande estadista”. Atire a primeira pedra o partido que nunca antes tentou e nunca depois tentará negociar o apoio de Maluf, cujo retrato reluz nas listas de procurados pela Interpol em todo mundo. O PSDB? Pois, se dependesse de dez entre dez lideranças tucanas, o 1min15seg do PP na propaganda eleitoral gratuita da TV iria para Aécio Neves, não para Dilma Rousseff. Quem deu mais levou… E é assim que Dilma chega à campanha da reeleição com o maior balaio de partidos aliados do planeta, como brincam os jornalistas políticos de Brasília, ou como nunca antes se viu neste país, como diriam os seguidores de Lula. Cavalo de pau na política externa Se, na política interna, os quatro anos de Dilma começaram e chegam ao fim com o mesmo sistema partidário “senil”, como definiu Nassif, o que ocorreu na política externa foi bastante diferente disso: Dilma deu um cavalo de pau em rela- ção ao governo do padrinho Lula. Lula e seu chanceler Celso Amorim (que ficou do primeiro dia do primeiro mandato ao último do segundo) brilharam nos foros internacionais, entraram no radar do mundo desenvolvido e foram bastante polêmicos internamente por sua política 13 Sul-Sul, autodefinida como “ativa e proativa”. Já Dilma e seu primeiro chanceler, Antonio Patriota, foram uma dupla que não deu certo. Dilma e seu segundo chanceler, Luiz Figueiredo, são uma dupla que simplesmente não quer aparecer – nem que o Brasil seja “ativo” e apareça. Em seu artigo, Paulo Sotero destacou o quanto Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva foram invejáveis instrumentos de política externa: “A ampliação do espaço internacional do Brasil deveu-se, também, em boa medida, à aptidão para o exercício da diplomacia presidencial dos dois homens que conduziram o país nesses anos de transformação e afirmação nacional”. Eis como o autor definiu os dois ex-presidentes e seus mandatos: “Figuras históricas, agregadoras e carismáticas, cada um à sua maneira, FHC e Lula exerceram o poder com sucesso e engrandeceram a nação não apenas pelo que realizaram, mas pela maneira como o fizeram”. Com seu consistente conhecimento de Brasil e de política externa, Sotero previu com precisão que as coisas tenderiam a mudar, fosse qual fosse o resultado da eleição de 2010, e justificou o porquê: “Dilma Rousseff e José Serra são políticos competentes. Ficam em desvantagem, porém, quando comparados com FHC e Lula. (…) São [Dilma e Serra] ambos desprovidos de inteligência emocional e notórios (…) como pessoas abrasivas e de trato difícil”. Tomaria posse, portanto, um ou uma presidente “sem talento natural ou apetite aparente para o exercício da diplomacia presidencial”. Além de acertar em cheio nessa avaliação, que se confirma dia a dia no governo Dilma (como provavelmente se confirmaria num eventual governo Serra), Paulo Sotero também estava muito bem informado ao prever que a estratégia internacional do novo governo seria “mais sóbria, cuidadosa”, com uma “calibragem melhor da ambição de liderança internacional do país à sua posição real na redistribuição do poder global em curso”. Em bom português: o Brasil deixaria de lado uma política externa megalômana para se ajustar a um patamar mais compatível com a realidade. Sotero só não poderia imaginar que, de Lula para Dilma, passar-se-ia de um extremo a outro. De ativa, passou a passiva. De estridente, a, praticamente, muda. De ambiciosa, a excessivamente modesta. E foi assim que o Brasil saiu de fininho dos grandes foros e dos principais debates na arena internacional. As construções feitas por Lula- -Amorim ficaram ao relento, abandonadas. Exemplo: a aproximação crescente do eixo de discussão sobre o Oriente Médio. Dilma desbastou excessos ideológicos Em seu artigo par

a a “Interesse Nacional” às vésperas das eleições de 2010, a correspondente de “O Estado de S. Paulo” em Washington, Denise Chrispim Marin, fez pesadas críticas à política externa conduzida por Amorim e estrelada por Lula. Encerrou com uma espécie de voto para o futuro, ou futura, presidente da República. “O sucessor do presidente Lula contribuirá imensamente se desbastar a política exterior dos seus excessos e, especialmente, do componente ideológico que a formatou desde 2003. Mas, irá além se conseguir formular estratégias embasadas em expressões do real interesse nacional, e não apenas nas convicções de alguns poucos e grandes do Palácio do Planalto e do Itamaraty”, escreveu a jornalista. Dilma não apenas “desbastou” eventuais excessos, como deixou a política externa no osso, sem vivacidade, sem presença. Os “poucos e grandes” do Planalto e do Itamaraty que mandavam e desmandavam nessa área no governo Lula, eles foram colocados nos seus devidos lugares, quietos e praticamente mudos, enquanto Dilma atraiu para si toda a política externa. Se Lula insuflou e deu corda a seu chanceler, Dilma concentrou a política externa numa única pessoa – ela própria, que não entende as sutilezas e a importância da diplomacia e confunde política externa com meras trocas comerciais, como se cartesiana fosse. Paulo Sotero pregou que, depois de sofrer “fortes abalos” nos dois últimos anos de Lula – pela falta de sintonia com Barack Obama e pelo confronto em relação ao Irã – a relação com os Estados Unidos teria de ser “recolocada no bom caminho”. Por um motivo cristalino: essa relação é a mais importante para o Brasil “em termos políticos, econômicos e sociais”. Mas, os votos do jornalista não tiveram sucesso e ressonância. Se Dilma chegou a ter a intenção de reenergizar a relação com os EUA, ela foi abortada dramaticamente quando estourou o escândalo internacional da espionagem da NSA em empresas, governos e até cidadãos e presidentes. Com tudo acertado para Dilma ser recebida por Obama na única visita de Estado ao presidente norte-americano em 2013, ela não apenas cancelou (ou “adiou”, no eufemismo diplomático) a ida a Washington como aproveitou a abertura da Assembleia Geral da ONU, em Nova York, para meter o sarrafo na Casa Branca e na espionagem internacional, sob intensos aplausos lá e, principalmente, cá, diga-se de passagem. Logo, se as relações com os EUA estavam abaladas com Lula, ficaram ainda piores com Dilma. As movimentações, programas de cooperação e grupos de trabalho continuaram atuando, mas nos bastidores e nos escalões inferiores. As de nível presidencial murcharam. Lula, sombra ou luz? Em seu artigo sobre “Lula e o Futuro”, na mes ma edição de “Interesse Nacional”, Paulo – Moreira Leite, da revista Época, indagava sobre o então ex-presidente: “Ficará em casa, em São Bernardo, para receber os amigos e contar histó- rias para os netos? Assumirá um papel internacional relevante? Como irá relacionar-se com o novo governo?”. As respostas estão aí diante de todos: não, Lula não se aquietou contando histórias para os netos nem assumiu nenhum papel internacional relevante. Manteve-se como sempre foi: um político ativo, sagaz, com uma inteligência fulgurante. Com um acréscimo: uma tendência à onipresença, produzida pelo sucesso popular do seu governo e dos seus 80% de aprovação nas pesquisas. Moreira Leite já dizia que a poderosa herança de Lula poderia ser para o sucessor, ou sucessora, “uma sombra ou uma luz”. No caso de Dilma, a história mostra que foi as duas coisas. Uma sombra, quando as coisas não vão bem, sobretudo nas duas áreas mais nevrálgicas: a economia e a política. E uma luz, quando se trata de orientar os programas sociais e manter a tropa partidária unida para a guerra das eleições. O problema, durante todo o mandato de Dilma, foi calibrar sombra e luz. O risco, pairando dia após dia, foi Lula ofuscar Dilma. Daí o esfor- ço monumental para reduzir o brilho de um, jogar os holofotes na outra e empurrar para a penumbra o “volta, Lula!”. O mesmo autor fez duas referências à importância de um crescimento vigoroso no Brasil. Na primeira, destacou que Lula tem sua base de apoio “no cidadão comum, no homem da rua, no desassistido” e ressaltou: “aquele para quem a única saída é crescer ou crescer”. No fim, dedicou o último parágrafo para decretar: “Os brasileiros querem mais crescimento – e os benefícios que ele carrega”. E concluiu: “Como não há governos de encomenda, mas candidatos e candidatas de carne e osso, com seu passado, suas convicções e seus compromissos, a partir de 1º de janeiro [de 2011] o país terá quatro anos para descobrir se fez a escolha certa para atender aos seus anseios”. Já que estamos falando em crescimento, vale repetir o maldoso, mas realista, título de primeira página de “O Globo” em 31 de maio de 2014, a quatro meses do primeiro turno da eleição presidencial: “Com Dilma, crescimento só supera Collor e Floriano Peixoto”.


Eliane Cantanhêde, jornalista, é colunista da pág. A-2 da “Folha de S. Paulo” e comentarista do telejornal “Globonews Em Pauta”

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