01 janeiro 2009

Game Over: Do Descolamento ao Desenvolvimento, de Novo

O cenário biopolítico da crise financeira

O ser humano evoluiu ao ponto de criar a bomba atômica e conseguir superar, por meio da diplomacia, o impasse armamentista. Não se desencadeou nenhuma hecatombe nuclear desde o fim da Segunda Guerra. A mesma sorte não tiveram as armas de destruição em massa colocadas à solta nos territórios virtuais da especulação financeira – foram desenvolvidas por rocket scientists tornados especialistas em modelagem econométrica de derivativos, difundiram-se viralmente nas redes digitais e nas nuvens de desregulamentação financeira conhecidas como “globalização”, estão novamente destruindo milhões de vidas, não pela morte física (embora ela também se torne mais freqüente com a recessão e o desemprego), mas sobretudo pela paralisação da imaginação econômica com o colapso da arquitetura financeira global.

Para discutível sorte de alguns países em desenvolvimento, foi possível durante alguns anos surfar a gigantesca onda de controle militar, desregulamentação e globalização financeira que organizou o ciclo pós-reconstrução européia (1950–1960). A crise de hegemonia do dólar é siamesa do esgotamento do ciclo de gasto estatal e expansão de empresas multinacionais do pós-guerra. A Guerra dos Seis Dias ocorreu em 1967. Em 1968 o primeiro confronto ocorreu em barricadas e no início dos anos 1970 o keynesianismo entrava em desgraça e Pinochet assumia o poder no Chile, assessorado por uma equipe celebrizada pelo epíteto “Chicago boys”. Enquanto a inflação e os choques de petróleo atingiam os fundamentos do modelo de crescimento amparado em consumo de massa do pós-guerra, o american way of life, a Guerra Fria chegava ao seu desfecho com a queda do Muro de Berlim.

Entre 1969 e 1989, a direita conquistou o poder global. Entre 1989 e 2009, essa elite exerceu esse poder financeiro, militar, tecnológico e cultural com uma intensidade poucas vezes observada nos ciclos de expansão e crise de grandes impérios, uma espécie de “Baile da Ilha Fiscal” animada ao som do iPod, cada um dançando consigo mesmo. Foram praticamente 40 anos de hegemonia em escala global de um pensamento e de uma agenda ultraliberal, belicista, esteticamente reacionária e freqüentemente demagógica ou populista.

Uma das peculiaridades desse momento de esgotamento do modelo wasp de globalização é a ausência de um pensamento sistemático, organizado, de uma leitura da crise que pudesse apresentar-se como suficientemente “alternativa” para amparar novas esperanças, como ocorreu com o pensamento de John Maynard Keynes a partir dos anos 20 do século passado. Somos todos ortodoxos agora.

Tanto a direita quanto a esquerda foram apanhados no mesmo contrapé, num momento em que presidentes mais progressistas ou desenvolvimentistas pareciam finalmente ganhar o controle do jogo, na América Latina, no Sudeste Asiático, na China e na África. Diante da crise sistêmica, foi por terra a hipótese de um “descolamento” dos emergentes, brics ou qualquer outro ícone de diferenciação competitiva supostamente associada a maiores graus de autonomia regional, energética, demográfica ou territorial.

As autoridades monetárias, fiscais e políticas das principais economias do mundo desempenham atualmente um macabro minueto enquanto por trás das máscaras testemunham, afônicos, a insuficiência cumulativa de todas as medidas de socorro oferecidas pelo Estado, e mesmo pelas organizações multilaterais, para impedir a piora ou, quem sabe, reverter o colapso dos valores. Estão sem uma teoria econômica habilitada a ver além da heterodoxia já plenamente domesticada e, assim, privados da imaginação propositiva que marcou personalidades e campos na crise sistêmica do século xx. Não dispõem de “fatores” socioeconômicos ou até naturais capazes de inspirar uma leitura e uma ação autônomas frente ao colapso global do sistema monetário-financeiro amparado no dólar. São todos órfãos monetaristas do desenvolvimentismo keynesiano.

Triste fim para sempiternas tertúlias de diretórios eleitorais e partidários! Reeleito, o presidente Lula e setores do pt imediatamente colocaram em circulação o mote desenvolvimentista. No psdb, eleito, o governador José Serra já na posse retomou o mote, avisou em sua primeira coletiva que chegava ao fim “um difícil período da vida nacional, durante o qual desenvolvimento se tornou um palavrão, e desenvolvimentista um insulto”.

De lado a lado, predominou nos últimos anos uma constrangedora timidez sempre que se tratou de apresentar detalhes do que seria esse desenvolvimentismo “no bom sentido”. Quando parece que a discussão vai esquentar, tudo volta aos velhos trilhos e temas: estabilidade de preços, política de juros, responsabilidade fiscal, reformas estruturais, globalização financeira. Nessa ou em outra ordem, é a velha macroeconomia do equilíbrio, da estabilidade de preços, e não a nova economia política do desenvolvimento e da inovação que ocupa o alto das prioridades. Enquanto isso, na prática, persevera-se na aposta de sempre: viadutos, avenidas e estradas a perder de vista.

Nesse cenário, preocupa a ausência de pensamento crítico e de uma organização na sociedade civil capaz de amparar-lhe os vôos da imaginação com ações práticas. Preocupa mais do que a acomodação oportunista de todos os atores numa combinação pragmática, mas sem caráter, de ortodoxias e heterodoxias, na esperança de que alguma coisa afinal volte a funcionar.

A esquerda que sobrou, no poder, desaprendeu a sonhar. Os heterodoxos e desenvolvimentistas propõem Keynes, os ortodoxos autênticos fingem concordar. Há um consenso aparente, animado pelo pânico em escala global.

Quando o Financial Times publica um editorial louvando a obra de Keynes, convoca seus principais biógrafos para escrever laudatórias resenhas e até recebe cartas furiosas acusando a respeitável publicação de ter virado a casaca, alguma coisa de fato está fora de ordem na nova desordem mundial. É preciso, no mínimo para manter a sanidade intelectual, compreender no mesmo movimento a falência dos pensamentos ultraliberal-conservador e heterodoxo-desenvolvimentista. A verdade é que ambos se igualaram na prática de poder que vieram a exercer (e ainda exercem, no Brasil e no mundo), assim como na incapacidade de organizar uma saída honrosa da crise, pois repousam ambos sobre o esqueleto daquilo por que tanto se digladiaram ao longo do século xx: o aparelho de Estado.

Não foi o mercado que falhou, o sistema financeiro que se descontrolou ou a racionalidade econômica que passou por alguma transformação (talvez insuflada pela emergência das redes digitais planetárias). As estruturas de troca e produção não derretem ou evaporam com a crise monetário-financeira. O que, sim, perde validade são os ativos intangíveis ou imateriais que governam as estruturas de troca e produção, ou seja, os ícones, as regras, os códigos, as representações de poder e valor cuja deflação foi, em última análise, deflagrada pela corrida cultural global, pela imersão audiovisual total de todas as atenções em sistemas de significação e determinação de valor autônomos, autotélicos, hiperbólicos e virtuais, ou seja, puramente especulativos.

Acreditamos demais em formas fictícias de riqueza, ilusões improdutivas, ícones que, se de fato fazem as máquinas rodar, articulam as engrenagens sem que se possa identificar seu eixo, de modo não-linear. Apostamos alto, mas desaprendemos a sonhar, ou seja, a programar, no sentido clássico de estabelecer programas para a ação e a evolução.

Aliás, vários dos processos de inflação e deflação extremas, criação e logo destruição de ativos financeiros e modelos de investimento decorrem do encadeamento automático de “programas” de compra e venda, ultrapassando firewalls de regulamentação, prudência e supervisão. Mas perdeu-se a noção de programa como projeto, plataforma, ideário.

Afinal, a globalização foi tão mais efetiva quanto mais extensa e intensa foi a pulverização dos aparelhos de Estado em todo o mundo, sobrando “programas” de determinação supostamente automática e auto-regulada dos valores em tempo real, mas nenhum programa, plano ou projeto de desenvolvimento capaz de forçar o diálogo do curtíssimo prazo com horizontes igualmente imaginários de médio e longo prazo.

A crise do desenvolvimentismo keynesiano

A condição de vitória e governança para inúmeros atores do centro e da esquerda, já no final dos anos 1990, após uma década da queda do Muro de Berlim, foi justamente a manutenção e, em alguns casos, como no Brasil, o aprofundamento da biopolítica de desintegração dos aparelhos de Estado. Isso, em todas as áreas da inteligência cívica e nos campos da regulamentação que o pensamento desenvolvimentista clássico considera “estratégicos”. Restaram, em vários casos, apenas a retórica desenvolvimentista e até antiimperialista, permeando práticas de alinhamento realistas e pragmáticas à geopolítica de desregulamentação financeira, tecnológica e militar-territorial.

Sobrou apenas a retórica do desenvolvimentismo clássico, estatista, nacionalista, populista, militarista e intervencionista. Aliás, o viés ideológico foi o que sempre apareceu com maior intensidade nas políticas econômicas desenvolvimentistas, que apenas tardiamente retomaram reflexões mais detidas sobre o papel da tecnologia, do conhecimento e da própria ideologia no desenvolvimento socioeconômico (o que seria uma espécie de meta-desenvolvimentismo). O maior equívoco nesse momento é acreditar que o desenvolvimentismo é uma opção ao pensamento ultraliberal que pregou o “descolamento” dos países emergentes supostamente decorrente da “globaliberalização” dos mercados.

As sociedades submetidas a diretrizes desenvolvimentistas conseguiram, no passado, realizar saltos históricos. De Stálin a Getúlio, passando por Roosevelt e Mahatma Gandhi, o século xx foi palco do espetáculo do desenvolvimentismo.Taxas de crescimento elevadas e investimentos monumentais muito bem focalizados, às vezes alterando a própria inserção de uma economia no sistema global, foram proezas indiscutíveis de políticas desenvolvimentistas, em geral com sacrifício de direitos humanos, da liberdade ou da própria identidade cultural.

Os saltos realizados por Japão, samurai capitalista no século xix, que repetiu a dose no pós-guerra do século passado, Coréia do Sul, Índia, China e por países menores como a Espanha ou Irlanda, são exemplos de uma ação estatal eficaz local e globalmente.

Mas esses campeões do desenvolvimentismo tinham instrumentos que, hoje, não duram muito ou se tornaram inviáveis, como a emissão desenfreada de papel-moeda local, o corte indiscriminado de gastos sociais em favor de investimentos militares ou a criação de capacidade produtiva à custa da destruição irreversível dos recursos naturais. O Brasil já integrou esse time, com Getúlio Vargas e Juscelino Kubitschek. Mas o desenvolvimentismo teve seu canto de cisne durante o regime militar. Deixou como herança uma dívida externa que consumiu décadas da riqueza e da saúde nacionais.

O desenvolvimento é um fato e uma necessidade. Atribuir ao Estado a primazia, o caráter determinante ou a fonte do desenvolvimento é ideológico. A conseqüência prática da ideologização do desenvolvimento é que seus defensores foram levados freqüentemente a propor modelos, teorias, receitas supostamente fundamentadas em estruturas, leis da economia e fórmulas matemáticas. Cada fonte milagrosa de desenvolvimento é apresentada como uma fórmula que parece existir por conta própria como idéia fixa, regra a ser imposta, padrão que mercado e sociedade devem seguir.

A presente crise financeira sistêmica, no entanto, torna inócuos simultaneamente os mitos do mercado e do aparelho de Estado como sujeitos no processo de desenvolvimento. A cada semana, surgem novas evidências de que os esforços de coordenação entre as principais autoridades econômicas do mundo não bastam nem para estancar, que dirá para reverter a sangria em que se transformou o pânico mundial e a contaminação de todos os mercados pela crise. E pensar que, por algum tempo, autoridades, especialistas e financistas insistiam tratar-se de uma crise restrita a um subsetor do sistema de crédito dos eua.

A crise é sistêmica e, portanto, a contaminação universal dos ativos intangíveis que constituem a fachada dessa arquitetura mundial culmina com a crise cambial, processo descontrolado que implica rearranjo de assentos e posições de força nas redes de financiamento globais, pois é o ícone de cada poder nacional que se torna o alvo, a incógnita essencial de toda a crise.

Promover a coordenação de políticas cambiais, fiscais ou de injeções de moeda em instituições e mercados pode muito rapidamente converter-se de ação de bombeiro em inadvertida contribuição aos incendiários. Basta pensar no tênue limiar que existe entre dois momentos opostos: um em que a venda de dólares por um Banco Central serve de garantia de última instância à liquidez nas operações internacionais de uma economia; outro, salto quântico em relação ao primeiro, em que a mesma ação é interpretada pelos agentes econômicos como indício ou ícone de uma crise cambial com rápido esgotamento das reservas, ao ponto do calote externo.

Quem estudou física sabe que, se todos os corpos do universo se contraem ou expandem à mesma taxa, temos a sensação de que está tudo do mesmo tamanho. Dois trens que andam lado a lado numa extensão qualquer passam a impressão, para os passageiros, de que nenhum dos dois está em movimento. De fato, a crise nos eua tornou-se global. Isso significa que as contrações econômicas e desvalorizações de ativos ocorrem mais ou menos à mesma velocidade em toda parte. O resultado, portanto, é a sensação de que nada muda, continuam todos na mesma posição. Quando as autoridades falam em coordenação, procuram acima de tudo orquestrar uma continuidade dessa hipótese já sem validade. Nela, é como se as posições relativas não se alterassem e os donos dos assentos se encontrassem todos aptos a injetar liquidez, consolidar ou absorver empresas e alterar a regulamentação para restaurar, em algum ponto impreciso dessa trajetória incerta, quase como mágica, a confiança do mercado nos ícones de valor globais.

Depois das dívidas no setor imobiliário e das ações (as principais bolsas de todo o mundo já perderam no conjunto cerca de 50% do valor, ou seja, o capitalismo encolheu à metade do que era no ano passado!), a ciranda se completa com a crise das moedas. Pois se a crise surgiu nos eua, ganhou força a percepção de que os impactos sobre os países emergentes pode ser pior ainda. Essa reversão do bordão do “descolamento dos brics”, repetido à náusea por economistas de bancos e seus repetidores de plantão nas colunas de economia dos grandes jornais, tem como resultado a desmontagem de posições em moedas de maior risco em sistemas de alto retorno, como o brasileiro. A reação natural, no Brasil, sempre foi elevar os juros para conter a crise externa (superpremiando os bancos que fazem essa intermediação). Não será diferente agora. Na prática, os trens não andam à mesma velocidade, o universo das coisas econômicas e financeiras não se contrai à mesma taxa para todos (como também não se expandiu de forma homogênea para todos os jogadores). No pânico, muita gente pula do trem porque tem certeza de que a composição toda corre para um precipício sem fundo.

A crise da globalização ultraliberal

Os desenvolvimentistas criticaram o pensamento único, mas não ofereceram em troca um único pensamento novo. Em sua maioria ocupam hoje altos escalões públicos e privados, no Brasil e no exterior, até mesmo no Fundo Monetário Internacional sem que se tenha até agora sequer esboçado um novo pensamento crítico, propositivo e ao mesmo tempo imaginativo.

O templo da globalização ultraliberal é o fmi e suas leituras das crises tornaram-se folcloricamente equivocadas ao longo das últimas três décadas, a ponto do economista Joseph Stiglitz apontar sérias deficiências de ordem intelectual nos quadros empregados pelas instituições financeiras multilaterais. No caso desta crise, as estimativas do fmi mostraram-se novamente equivocadas: elas subestimaram as perdas do sistema financeiro em nada menos de 50%. Cegueira admitida pelo diretor-executivo Dominique Strauss-Kahn, num pronunciamento do dia 10 de outubro, possivelmente o pior mês da crise, na iminência das eleições presidenciais norte-americanas[1]1.

É interessante acompanhar o argumento do dirigente do fmi, por sua transparência: assim como nos modelos ultraliberais a imperfeição do mercado decorre de informação insuficiente, a crise global resulta de confiança insuficiente. Todas as intervenções voltam-se, portanto, à recuperação da confiança.

No entanto, adverte Strauss-Kahn, não se trata de restaurar a confiança no mercado em si, nem na política macroeconômica em si, nem no conjunto de medidas tópicas adotadas nos vários segmentos do sistema financeiro em si mesmas. Nem mercado, nem governo nem finanças, os problemas que em última análise afetam o grau de confiança dos agentes econômicos na sustentabilidade do sistema dizem respeito à confiabilidade nos gestores do sistema. Ou seja, o sistema é ok, não se trata de crise de confiança no sistema e sim nos gestores do sistema e nos critérios de sua gestão. Daí a ênfase retórica na coordenação de políticas, transparência de custos e participação nos benefícios da suposta recuperação econômica que virá das novas intervenções desses gestores estatais e multilaterais. Quanto aos gestores privados, há uma reafirmação de preceitos antigos, e recorrentemente falseados, segundo os quais sua cobiça, exageros e privilégios seriam finalmente contidos e supervisionados, como se uma nova versão do espírito calvinista viesse por decreto substituir a cultura yuppie que animou o ímpeto especulativo global desde os anos 1980.

Inúmeras lideranças repetem, com variações, essa leitura da crise, como se ela fosse uma crise da administração, não do sistema, uma falha nos critérios de formulação e implementação de políticas, não da própria natureza das políticas que estão em questão. Daí a preferência pela metáfora da “arquitetura” do sistema, ou seja, de sua fachada, de como aparece para o cidadão e para o contribuinte. Nada se diz sobre a engenharia do sistema, ou seja, sobre os próprios fundamentos de sua operação, sempre coordenada entre aparelhos de Estado, mercados e sociedade civil.

Foi do economista Steven Horwitz uma das poucas vozes que alertaram para essa inversão de valores, na qual o esquerdista heterodoxo pede mais regulação e assim se equivale ao economista ultraliberal, que pede a mesma coisa[2].

Nem polarização ideológica entre Estado e mercado, nem suposições metafísicas sobre alguma lei natural ou histórica determinando o rumo das economias, na prática o que deveria ser colocado em primeiro plano, na leitura da crise, é simplesmente a discussão política e filosófica em torno das decisões de governos para viabilizar a sobrevivência de alguns privilegiados. Ao contrário do que pretende a retórica do fmi, os agentes não estão aguardando uma ação coordenada de governos que substitua a ilusão de racionalidade, antes cantada em prosa e verso pelos arautos do ultraliberalismo, por um novo Estado Supranacional arquitetado em Washington ou Londres. Estão esperando, isto sim, um “mapa do caminho” claro que mostre quem sobreviverá e sob quais condições. A coordenação supostamente ordenada por critérios mais claros de gestão da crise está, admite o próprio “xerife”, no centro da crise de confiança – resta saber se o enunciado de regras basta para que todos passem a segui-las. O mérito do alerta de Steven Horwitz na sua “Carta aos Meus Amigos da Esquerda” está precisamente na exposição irônica da relação entre o mito de um “neoliberalismo” supostamente sem Estado e a agenda comumente associada à esquerda de intervencionismo estatal. Afinal, abateu-se uma censura cega, surda e muda sobre os meios de comunicação.

Mesmo num momento em que os líderes do sistema capitalista partem para uma estatização sem pudores em todos os quadrantes, os comentaristas, economistas, jornalistas e outros “gênios” da finança ouvidos, publicados e entrevistados continuam os mesmos, ou seja, aqueles que por anos a fio vieram a público fazer a apologia da desregulamentação, da privatização, da liberalização unilateral de mercados. Desconfio que a esquerda, se existir ainda e esteja onde estiver, seria contra a operação de resgate dos ladrões em nome do bem geral da sociedade. O problema é que, historicamente, a esquerda foi a favor das teorias financeiras que defendem a intervenção do Estado. Assim, colocar a máquina do Estado a serviço do capital especulativo durante o ciclo de alta é motivo de críticas, mas o típico esquerdista apoiará uma megaintervenção do Estado para restaurar uma suposta normalidade financeira, apoiando-se na muleta retórica segundo a qual “agora será tudo diferente, tudo será regulamentado, os yuppies serão efetivamente sacrificados e um capitalismo responsável será ordenado pela mão visível do Estado”.

A única diferença entre o heterodoxo de esquerda e o ultraliberal de direita, nesse momento, é o caráter da estatização, definitiva de uma “nova ordem” para o heterodoxo, apenas temporária para o ortodoxo que aceita um interregno intervencionista para salvar o mercado.

Ambos, no entanto, militam no contra-senso e parecem tirar de sua aliança tática uma esperança de sobrevida política e ideológica.

Seria possível defender uma intervenção estatal que não premiasse os ladrões? Talvez, mas o primeiro passo nessa direção é abrir mão do modelo segundo o qual o que falha são os gestores, não o sistema. Mas esse passo não é desejado nem pelos conservadores que dominam o status quo econômico e financeiro, nem pelos políticos de esquerda que desejam a todo custo enxergar na crise uma oportunidade ímpar para “trocar a administração”, mantendo intactas todas as engrenagens de poder estatal e acumulação financeira (supondo que o Estado saberá orientá-la para um padrão mais saudável).

Quando a direita, os neoliberais e os governos entram em massa nos mercados para salvar a pele de uma elite gananciosa e manipuladora dos ícones que dão credibilidade ao sistema, parece que nada restaria à esquerda senão entrar no troca-troca ideológico e sugerir que os ricos se explodam, quebrem com seus bancos, empresas e governos corruptos. Algo na linha do “quanto pior, melhor”, Unabomber em sua versão financeira. Mas a situação piora independentemente de uma vontade supostamente revolucionária. A intervenção mantém intacta a hipótese de um aparelho de Estado que voltaria a funcionar, o “quanto pior melhor” também aposta na apropriação da máquina depois do furacão. Falta uma teoria e uma ação política que de fato consigam vislumbrar um outro sistema, uma outra engenharia e não apenas uma reforma arquitetônica cujo sucesso depende da eficácia, sempre apenas uma hipótese, da nova administração reformista que herdará a mesma estrutura econômica.

Para os economistas e políticos mais conservadores, a superação da crise da globalização ultraliberal pode ser condensada na prescrição contraditória, que nenhuma petição de princípios sobre a qualidade dos gestores será capaz de fundamentar, de estatizar para depois reprivatizar. É uma falácia que se pretende camuflar afirmando de modo coordenado que, no final das contas, o governo sairá lucrando, o contribuinte será salvo do desemprego e as contas públicas voltarão a se equilibrar.

O fato é que ainda não surgiu uma solução, a crise que se manifesta como mergulho das Bolsas num dia não deixa de ser menos patológica quando os mercados acionários sobem na casa dos dois dígitos. Sem contar com uma nova teoria econômica e também com práticas voltadas para novos modelos de organização social, econômica e financeira, as leituras da crise continuam apontando para um futuro que nada mais é, a cada rodada de pacotes ou artigos e discursos, senão a tentativa de fazer tudo voltar a funcionar “como antes”, um exercício de amnésia coletiva pois essa normalidade supostamente anterior nunca existiu a não ser como ideologia conservadora ou retórica revolucionária. Mas o mundo, a economia e a sociedade mudaram, nem o mercado, nem o Estado são capazes de sustentar seja a operação invisível de uma racionalidade mercantil, seja a dinâmica de representação política que culmina em alguma revolução.

Há, no entanto, alguns vislumbres de uma nova economia, um paradigma que vai além do Estado e do mercado, das hierarquias e da racionalidade, um horizonte de ações e investimentos de tempo e energia a partir do qual é possível reconstituir a confiança – não nas instituições, regras e ícones do passado, mas numa globalização inteligente.

Não é possível nesse momento avançar na exposição desse novo olhar que talvez se consolide em meio e a despeito do fracasso de todas as medidas convencionais, ortodoxas e heterodoxas, de socorro e reconstrução da ordem econômica. Trata-se de uma economia e de sociedades que se reorganizam em redes, com lógicas de produção, consumo, distribuição e financiamento que não se reduzem aos princípios clássicos de funcionamento do Estado e do mercado. O conhecimento dessa economia em rede, seus primeiros sinais de expansão e sucesso, os novos negócios, formas de governar e culturas organizacionais estão em sua primeira infância. O que está em jogo não é a luta entre direita e esquerda para instalar uma nova administração capaz de organizar Estado e mercado, mas um potencial global de configuração social e geopolítica por meio de redes de informação e comunicação cujas regras de evolução apenas começamos a vislumbrar e compreender.

Game Over?

Há três opções diante da crise econômica: mudar de modelo (reengenharia geopolítica de hierarquias, mercados e sistemas, avançando na configuração de uma nova organização social global em rede); deixar que o caos e a recessão eliminem os mais fracos (darwinismo econômico-financeiro em que os mais aptos voltarão a dominar os aparelhos e máquinas de gestão e coordenação); ou mediar os impactos sociais da queima de capitais (por meio da coordenação arquitetônica de políticas públicas atuando sobre o mesmo sistema de forças). A primeira opção é possível e há novos instrumentos, culturas e símbolos emergentes que a cada dia ampliam a relevância das redes na organização da cidadania mundial. É no entanto pouco provável, ao menos no curto prazo. Talvez sejam necessárias várias crises no sistema hegemônico, como vem ocorrendo desde os anos 1960, para que essa nova cultura planetária em rede amadureça e se traduza em novas práticas, regras e ícones.

A segunda opção é ainda a mais provável, pois a violência implícita nas crises monetárias muito freqüentemente se traduz em violência explícita e é a supremacia do mais forte que define os resultados na definição dos integrantes da “nova administração”.

A terceira opção é a menos provável, pois imagina uma superação da crise do sistema por algum lance de sorte que faria os instrumentos e mecanismos que travaram voltarem a funcionar, de modo suave e gradual, na medida em que todos se dispõem a negociar pacificamente os limites das perdas, dos resgates setoriais e dos novos benefícios e subsídios. É como tentar fazer um motor quebrado funcionar apenas trocando o óleo.

As mudanças de modelo como resultado das grandes crises são fenômenos de longo prazo e ainda é cedo para descortinar o resultado da atual transição, embora talvez seja tarde para imaginar um cenário futuro menos concentrador e instável. É inevitável que mudem os centros de poder geopolítico, os hábitos de consumo e as engrenagens da regulamentação.

No curto prazo, no entanto, o efeito é uma concentração ainda maior do poder econômico e político global, com vantagens para quem efetivamente se descolou dos aparelhos de Estado nacionais e regionais.

Muitos economistas (em especial no Brasil) passaram a usar a expressão “descolamento” (do inglês decoupling) para dizer que, desta vez, o resfriado em Wall Street não iria provocar pneumonia no mundo em desenvolvimento. Na crise de 1929, os banqueiros eram os principais defensores da noção de que no longo prazo tudo estaria resolvido.

As crises econômicas resultam da impossibilidade real das economias de mercado se “auto-regularem”, ou seja, por conta de seu próprio funcionamento encontrarem um ponto de equilíbrio entre oferta e demanda, crédito e débito, produção e consumo, competição individualista e organização coletiva.

O capitalismo do século xix era dominado pela Inglaterra. Foram necessárias duas guerras e uma crise financeira entre elas, no início do século xx, para que o eixo do poder passasse de Londres (a “City” dos capitais acumulados nas ondas de dominação colonial e imperialista até o século xix) para Washington e Nova York.

A guerra continuou, seja através de conflitos locais e regionais (a chamada “Guerra Fria” entre os anos 50 e 80 do século passado), seja por meio da determinação de europeus (sobretudo articulados em torno do eixo Paris–Berlim) e asiáticos (em primeiro lugar o Japão e, a partir dos anos 80 do século passado, os “tigres asiáticos” e finalmente a China) a superar a derrota militar pelo aumento do seu poder regional.

Esse confronto pelo poder mundial ainda não está superado, como demonstram os fracassos de todas as tentativas de criar uma nova ordem internacional (abalando instituições como o fmi, a Organização Mundial do Comércio e mesmo a onu). No longo prazo, talvez surja um verdadeiro poder mundial, um banco central universal, uma moeda única global. Alguns economistas e líderes políticos têm sugerido que esse é o caminho.

No longo prazo, talvez. No curto prazo, os oportunistas procuram as melhores ofertas, o poder torna-se ainda mais concentrado e a verdadeira guerra é por mais poder, não por mais equilíbrio. O ícone em torno do qual se disputam posições é a política monetária.

O dólar é um ícone imposto pela vitória aliada na Segunda Guerra. A crise atual marca mais uma etapa de derretimento desse arranjo geopolítico. A mídia, os economistas, os políticos focam na quantidade de dinheiro necessária para evitar que o sistema continue quebrando. Sim, em algum momento a concentração de poder financeiro, político e regional vai bater num limite. Com dinheiro público e megaconglomerados privados dominando a cena, simplesmente não haverá mais ativos para queimar, empresas para quebrar, trabalhadores para demitir.

O problema por enquanto sem solução, que nem europeus nem asiáticos querem resolver, é a ausência de um projeto geopolítico capaz de aliar interesses fortes o suficiente numa coalizão que leve a cabo a destruição do dólar como ícone da globalização.

Buscar esse objetivo em meio a um incêndio que ameaça consumir as outras moedas (como o euro) é um risco enorme. A ambição humana, no entanto, não tem limites. Enquanto não houver uma nova liderança global no horizonte, os ricos e poderosos continuarão a se banquetear na crise, entredevorando-se, apostando que no day after a hegemonia terá mudado de lugar. Aos desempregados, às famílias com fundos de pensão desintegrados e aos empresários que atuam nas redes de produção e comércio só resta esperar.

É professor de economia da USP, criador e líder do grupo de pesquisa Cidade do Conhecimento (www.cidade.usp.br). Foi economista-chefe do BankBoston, assessor da presidência do bndes (2005) e é curador do Centro Cultural Bradesco no Second Life (www.fl2.com.br/bradesco). E-mail: schwartz@usp.br

Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

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