31 março 2021

Governança tecnológica é central para as relações internacionais

Dentre os diversos protagonismos que o Brasil vem perdendo nos últimos anos está também o protagonismo na área de governança da tecnologia. Essa perda é especialmente lamentável porque a tecnologia tornou-se central para as relações internacionais. Temas como inteligência artificial, internet das coisas, criptomoedas, cibersegurança ou 5G, que até recentemente eram discutidos principalmente por setores ligados à tecnologia, passam agora a fazer parte integral da diplomacia, dos organismos internacionais e das relações entre os países.
Vale notar que de 1992 a 2014 o Brasil teve um papel importante nas discussões internacionais sobre a governança da internet e da tecnologia de modo geral[1]. Esse protagonismo é ilustrado por alguns marcos, dentre eles o uso pioneiro da rede global, em 1992, como parte da Eco-92; a criação do Comitê Gestor da Internet, em 1995; as políticas de saúde pública relacionadas a patentes colocadas em prática em 2001, no âmbito da Organização Mundial do Comércio; a participação atuante do país em fóruns como o World Summit on the Information Society; o lançamento da Agenda para o Desenvolvimento no Âmbito da Organização Mundial da Propriedade Intelectual, em 2006; ou, ainda, a aprovação do Marco Civil da Internet e a organização do Fórum Netmundial em São Paulo, em 2014.
Nesse sentido, o apagão do protagonismo brasileiro relacionado a temas tecnológicos acontece justamente no momento em que a tecnologia tornou-se essencial para as relações internacionais. Neste artigo articulo alguns princípios que podem orientar as políticas internacionais do Brasil relacionadas à tecnologia e aos seus desdobramentos para campos-chave do debate tecnologia no plano internacional, notadamente cibersegurança e inteligência artificial.

  1. i) Nenhum vento ajuda quem não sabe a que porto veleja

Qual deve ser a orientação de uma política externa brasileira relacionada a tecnologia? Na minha visão essa orientação pode ser sintetizada em uma frase: precisamos aprender a transformar conhecimento em desenvolvimento econômico e social. Em outras palavras, o país precisa deixar de ser apenas um grande consumidor de tecnologia e inovação produzidas externamente, para se tornar também produtor nesse cenário. Não há país que possa almejar o desenvolvimento hoje sem construir seu caminho para participar da economia do conhecimento.
Hoje o país possui uma boa capacidade de transformar recursos naturais em valor econômico, como na mineração ou no agronegócio. No entanto, precisamos ampliar as pessoas, empresas e organizações capazes de transformar conhecimento em valor. É necessário dar um salto que vá além da economia dependente da natureza para uma economia movida a ideias.
É essa habilidade que está em disputa no cenário internacional com relação à tecnologia hoje. Países como os Estados Unidos disputam com a China a liderança na economia do conhecimento. Outra faceta é ilustrada pela afirmação dramática de Vladimir Putin na aula proferida no início do ano letivo da Rússia, em 2017[2], quando afirmou que: “Inteligência Artificial é o futuro, não apenas para a Rússia, mas para toda a humanidade. Ela traz oportunidades colossais, mas também ameaças que são difíceis de prever. Quem se tornar líder nessa esfera irá dominar o mundo. Se nós nos tornarmos líderes nessa área, iremos compartilhar esse know-how com o mundo todo, da mesma forma que compartilhamos nossa tecnologia nuclear”.
Substitua o objetivo de ‘dominar o mundo’ por ‘promover o desenvolvimento’, e a afirmação de Putin torna-se razoável para ilustrar o desafio que os países têm hoje na articulação de uma política tecnológica. No entanto, a afirmação de Putin adiciona outro elemento igualmente importante à política tecnológica: a capacidade defensiva. A tecnologia traz oportunidades, mas traz também ameaças, inclusive de dominação. O imperativo de se posicionar quanto a esse tema de forma inteligente no plano internacional diz respeito à manutenção da soberania, da autonomia e de diversidade do país, em contraposição ao determinismo tecnológico.

  1. ii) Multissetorialismo é um caminho

Se a orientação para uma política externa parte da promoção do desenvolvimento e da defesa contra ameaças derivadas da tecnologia, é preciso visualizar estratégias de resposta a essas demandas. Um dos caminhos estratégicos é o multissetorialismo. Esse princípio parte do reconhecimento de que a tecnologia não é um fenômeno específico de um apenas um setor, mas um elemento estruturante transversal a todos os setores sociais.
Essa visão orientou, por exemplo, o desenvolvimento tecnológico na Ásia, seja no Japão, na Coreia do Sul ou na China. Uma ilustração disso está no livro “O Desenvolvimento da Indústria de Tecnologia da Informação da China[3]”, no qual o ex-presidente chinês Jiang Zemin escreve que entender as tecnologias da informação e comunicação como parte da infraestrutura do país foi elemento essencial para a promoção dessa indústria. Em outras palavras, a tecnologia não é um campo econômico isolado. Ao contrário, é elemento capaz de afetar todos os setores, da agricultura à indústria, passando pelos serviços públicos e, ainda, as relações internacionais.
Por conta disso, qualquer política tecnológica precisa da articulação de setores que vão além do setor público, incluindo a comunidade científica e acadêmica, o setor privado, o terceiro setor e outros. Basta lembrar que a internet em si foi resultado desse modelo de cooperação multissetorial. Essa prática amplia a capacidade de implementação efetiva de políticas tecnológicas em um momento em que a ação dos governos se torna de eficácia limitada.
iii) A questão da cibersegurança
Tome-se o exemplo da cibersegurança. Trata-se de área em que o país vem colecionando vexames, como, por exemplo, a publicação de tabelas com senhas de websites do setor público na internet. O vazamento de comunicações privadas de autoridades públicas ou, ainda, o fato de que boa parte dos membros do primeiro escalão do governo federal utilizam celulares, equipamentos e plataformas convencionais, sem qualquer atenção especial à segurança.
Tudo isso leva ao fato de que o país hoje ocupa a 70a posição no Índice Global de Cibersegurança da União Internacional de Telecomunicações publicado em 2018[4]. Mesmo regionalmente, o país se encontra em posição inferior a países como México, Chile, Argentina ou Paraguai.
De 2018 para cá houve avanços. O governo federal editou decreto que definiu a estratégia nacional de segurança cibernética[5]. O documento é robusto e faz uso do multissetorialismo – trata a segurança cibernética como questão pertinente a todos os setores da sociedade e não só ao Estado. Vale repetir, há muito pouco que governos atuando sozinhos (ou o setor militar) podem fazer sem a cooperação de outros setores quanto a esse tema.
O documento valoriza também o Marco Civil da Internet e a Lei Geral de Proteção de Dados, dois pilares legais da rede no país. Valoriza também o CERT.br, entidade que monitora e responde a incidentes de segurança no país, gerido pelo Comitê Gestor da Internet.
Já com relação aos pontos negativos, há falhas graves. A primeira é um ponto cego imperdoável. Uma das maiores ameaças globais à segurança na rede é a compra de programas-espiões por governos e órgãos públicos, capazes de devassar a vida digital de qualquer pessoa, incluindo autoridades. Um desses programas escancarou há pouco a vida do fundador da Amazon, Jeff Bezos.
O Brasil deveria deixar clara sua posição com relação a programas-espiões (como os chamados “Zero Day Exploits”). Além disso, deveria delinear de forma mais clara as ações do país para defesa contra esse tipo de ataque. O plano brasileiro não traz uma palavra sequer sobre o tema.
Há outros pontos equivocados. O texto inclui nas medidas recomendadas para aumentar segurança digital no Brasil “ampliar o uso do certificado digital”. Não qualquer certificado, mas sim o certificado digital que tem raiz no próprio governo federal, por meio do Instituto de Tecnologia da Informação ligado à Casa Civil, e que custa até R$ 300 por ano para ser emitido por pessoas físicas.
Aqui, a recomendação não tem a ver com cibersegurança, mas sim com o lobby de quem vende esse tipo de certificado, que é tecnologia ultrapassada e jamais terá escala para ser solução de segurança digital no país. A inclusão desse tipo de recomendação em documento tão importante mina sua credibilidade.
Outra questão é a implementação na prática da estratégia nacional de cibersegurança. O país nos últimos anos tem tido grande sucesso em elaborar planos magníficos sobre desenvolvimento tecnológico. Por exemplo, em 2020 foi publicado decreto estabelecendo a Política Nacional de Inovação[6], outro documento robusto. No entanto, esses planos acabam se transformando em peças literárias bem-redigidas, mas com pouco ou nenhum impacto prático. Além de planejar, é preciso implementar os planos resultantes, com metas, orçamentos, atribuição de responsabilidades e cooperação multissetorial.
Nesse sentido, vale acompanhar como e quando a estratégia nacional de cibersegurança será efetivamente colocada em prática, inclusive no que tange ao multissetorialismo.

  1. iv) Inteligência Artificial

Se em cibersegurança houve pelo menos o desenho de uma estratégia nacional, em inteligência artificial nem isso ocorreu. Nessa área o país precisa rapidamente de um plano concreto. Nenhum país pode se dar ao luxo de não fazer nada do ponto de vista das políticas públicas com relação a essa tecnologia, inclusive por questões relacionadas a emprego e desigualdade.
Estudo do Laboratório de Aprendizado de Máquina da Universidade Federal de Brasília estimou que 54% dos empregos formais correm o risco de desaparecer no Brasil por conta da automação, potencialmente abrangendo 30 milhões de vagas[7]. O estudo foi feito com dados da Relação Anual de Informações Sociais (Rais) e da Classificação Brasileira de Ocupações (COB), valendo-se da metodologia de estudos internacionais.
A inteligência artificial é outro exemplo de tecnologia que deve ser vista como parte da infraestrutura do país, uma vez que é capaz de gerar externalidades positivas e negativas para todas as atividades econômicas e sociais. Há aqui, também, a questão de segurança nacional. Países que não dominam a inteligência artificial têm risco de se tornarem subalternos no terreno geopolítico.
Um alerta nesse sentido foi feito por Kai-Fu Lee em artigo no New York Times: “Então, se a maioria dos países não será capaz de tributar empresas ultralucrativas de Inteligência Artificial para subsidiar seus trabalhadores, que opções esses países terão? Eu vejo apenas uma: a não ser que queiram mergulhar suas populações na pobreza, eles serão forçados a negociar com qualquer país que seja responsável por seu software de Inteligência Artificial – a China ou os Estados Unidos – para, essencialmente, tornarem-se economicamente dependentes, recebendo subsídios de bem-estar social em troca de deixarem que as empresas de Inteligência Artificial do país “paterno” continuem a lucrar a partir dos usuários do país dependente. Esses arranjos econômicos reconfigurariam as alianças geopolíticas atuais[8]”.
Quem enxergar ecos de colonialismo nessa situação não estará equivocado. De um lado, países que controlam as tecnologias de inteligência artificial. De outro, países dependentes, que exportam matérias-primas para alimentar o funcionamento da inteligência artificial.
Por isso, é fundamental o Brasil acordar para essa necessidade. Já estamos atrasados. Hoje são mais de 50 os países do mundo que têm planos nacionais de inteligência artificial, além da China e dos Estados Unidos, tais como Canadá, França, Reino Unido e Singapura. Na América Latina, Argentina, Chile e Uruguai. Novamente, a questão aqui não é só fazer o plano, mas assegurar que ele seja implementado. Quanto mais o tempo passa, mais difícil fica responder aos desafios dessa tecnologia.
O que deve conter um plano nacional de inteligência artificial? Ao menos quatro coisas. A primeira é um programa amplo de capacitação para lidar com inteligência artificial. É preciso formar uma geração de pessoas capazes de pensar e implementar projetos nesse campo. Esse esforço vai da escola ao ensino superior.
O segundo ponto é institucionalizar essa política, em parceria com o setor privado e a comunidade científica, no modelo multissetorial. O Reino Unido, por exemplo, criou agências de inovação para promover a integração, de forma ética e segura, tal como o Centre For Data Ethics and Innovation.
O terceiro ponto é criar uma política nacional de gestão de dados, especialmente dados públicos. A matéria-prima que move a inteligência artificial são volumes avassaladores de dados. Nesse sentido, trabalhar na interoperabilidade das bases de dados, na criação de “data lakes” públicos e em uma estratégia para o tema é essencial. Essa estratégia deve ser capaz de fomentar empresas de tecnologia e processamento de dados brasileiras. Tudo isso sem deixar de lado segurança e privacidade.
Por fim, é preciso trabalhar em “reskilling”, isto é, preparar o contingente de pessoas que podem perder seu emprego para novas funções. Estamos vivendo uma primavera da inteligência artificial, que pode facilmente se converter em inverno para todos os países despreparados para lidar com o tema.

  1. v) Conclusão

Tal como no poema de João Cabral de Melo Neto, “galo sozinho não tece uma manhã”. As relações internacionais e a cooperação internacional estão diretamente relacionadas ao desenvolvimento tecnológico. A pandemia da Covid-19 acelerou o processo de digitalização da vida humana. Todas as organizações estão se convertendo em plataformas digitais, inclusive os governos e os conflitos internacionais. Isso, por um lado, traz enorme resiliência para enfrentar desafios dessa magnitude. Por outro, traz ameaças que precisam ser pensadas à luz de uma estratégia nacional clara.
No Brasil a questão da tecnologia permanece secundária no âmbito das relações internacionais. Os posicionamentos do país nessa área nos últimos anos têm sido erráticos, cômicos ou puramente irresponsáveis. O mesmo princípio do mutissetorialismo se aplica à formulação de políticas tecnológicas e deveria incidir na condução do Itamaraty.
Por conta da centralidade da tecnologia nas relações internacionais, nunca foi tão necessária a formulação das políticas internacionais do país com a força e a eficácia conferida pelo modelo multissetorial. Paradoxalmente, nunca foi tão grande o isolamento dessas políticas. Aliar desenvolvimento tecnológico e política internacional é o primeiro passo a ser dado para um novo modelo de política internacional eficaz no país.


[1]
LEMOS, Ronaldo. A República Digital in Schwarcz, Lilia Moritz, Starling Heloisa Maria Murgel, and de Barros Alberto Ribeiro Gonçalves. Dicionário Da República: 51 Textos críticos. São Paulo, Brazil: Companhia das Letras, 2019.
[2]
“ ‘Whoever Leads in AI Will Rule the World’: Putin to Russian Children on Knowledge Day.” RT International. Accessed March 4, 2021. https://www.rt.com/news/401731-ai-rule-world-putin/.
[3]
Zemin, Jiang. On the Development of China’s Information Technology Industry. Burlington, MA: Academic Press, 2010.
[4] 
https://www.itu.int/dms_pub/itu-d/opb/str/D-STR-GCI.01-2018-PDF-E.pdf
[5] 
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/decreto/D10222.htm
[6]
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/decreto/D10534.htm#:~:text=DECRETO%20N%C2%BA%2010.534%2C%20DE%2028,disp%C3%B5e%20sobre%20a%20sua%20governan%C3%A7a.
[7]
“NA ERA DAS MÁQUINAS, O EMPREGO É DE QUEM? ESTIMAÇÃO DA …” Accessed March 4, 2021. http://repositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/9116/1/td_2457.pdf.
[8]
Lee, Kai-fu. “The Real Threat of Artificial Intelligence.” The New York Times. The New York Times, June 24, 2017. https://www.nytimes.com/2017/06/24/opinion/sunday/artificial-intelligence-economic-inequality.html. “So if most countries will not be able to tax ultra-profitable A.I. companies to subsidize their workers, what options will they have? I foresee only one: Unless they wish to plunge their people into poverty, they will be forced to negotiate with whichever country supplies most of their A.I. software — China or the United States — to essentially become that country’s economic dependent, taking in welfare subsidies in exchange for letting the “parent” nation’s A.I. companies continue to profit from the dependent country’s users. Such economic arrangements would preshape today’s geopolitical aliances 

Ronaldo Lemos é advogado, graduado e doutor em Direito pela USP e mestre em Direito pela universidade de Harvard. Foi pesquisador visitante nas universidades de Oxford, Princeton e no MIT Media Lab e professor visitante da Escola de Relações da Universidade de Columbia, em Nova York, e do Schwarzman College na Universidade Tsinghua, em Pequim. Foi vice-presidente do Conselho de Comunicação Social no Senado Federal. Apontado pelo World Economic Fórum como um dos Jovens Líderes Globais.

Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

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