22 dezembro 2021

Guerra civil fria nos estados divididos da América do Norte

Professor do Insper, Carlos Eduardo Lins da Silva, observa a ocorrência do aumento de impeachments nos EUA, que seria fenômeno raro em sistema presidencialista por ser punição extrema dada ao chefe de estado, e é a demonstração do grau de polarização na política interna. “Levou 130 anos entre o primeiro e o segundo. Os dois seguintes aconteceram num intervalo de 13 meses”, ressalta e, depois, acrescenta: “O sociólogo Jack Goldstone e o antropólogo Peter Turchin usaram modelo matemático que mescla diversos indicadores sociais para medir graus de instabilidade política e chegaram à conclusão de que os EUA caminham para uma guerra civil, que pode ser deflagrada em mais ou menos dez anos”.

Basta olhar para os mapas dos resultados do Colégio Eleitoral dos EUA nos seis mais recentes pleitos presidenciais americanos para perceber como o País está politicamente dividido.

Eles são praticamente idênticos entre si e mostram vitórias consistentes do Partido Democrata (do presidente Biden) nos estados das costas oeste e nordeste e do meio-oeste e sólidos triunfos do Partido Republicano (do ex-presidente Trump) nos do sul e sudeste.

Este padrão tem se mantido ao longo século XXI. Os chamados swing states são cada vez em menor número. David Schultz, professor da Hamline University de Minnesota, define swing states como aqueles em que a diferença no voto popular da eleição presidencial entre os dois candidatos é de menos de 5% do total e que têm histórico de alternância de vitórias entre os dois grandes partidos.

Na primeira metade do século XX, eles eram a maioria. Depois, foram rareando e chegaram a não mais do que dez. Agora, eles se reduzem a no máximo cinco. Três têm sido essenciais para determinar o resultado final do Colégio Eleitoral: Pensilvânia, Wisconsin e Michigan, no meio-oeste, onde Trump venceu em 2016, e que Biden recuperou em 2020 (além destes, o atual presidente também ganhou em Arizona e Georgia, no sul, que costumam eleger republicanos).

Em cada um dos 50 estados americanos, os mapas eleitorais também têm mostrado um panorama muito coerente em todo o País: democratas costumam vencer nas áreas urbanas e suburbanas, nos grupos demográficos com maior escolaridade, entre negros e demais minorias raciais; os republicanos, nas zonas rurais, entre os que têm menos educação formal e os brancos.

A polarização eleitoral que se verifica atualmente decorre, entre outros motivos, do fato de que os dois partidos ficaram ideologicamente menos diversos. Até os anos 1960, havia importantes líderes republicanos liberais (como os governadores Thomas Dewey e Nelson Rockfeller e os prefeitos Fiorello La Guardia e John Lindsay, todos de Nova York) e democratas conservadores (como o governador George Wallace, da Georgia, e os senadores Strom Thurmond, da Carolina do Sul, Harry Bird, de Virgínia e Rush Holt, de Virgínia Ocidental).

Esse processo de polarização se iniciou logo após a Segunda Guerra Mundial e se agudizou com o movimento dos direitos civis nas décadas de 50 e 60. Foi quando o Partido Democrata perdeu a hegemonia política que tinha no sul do País e os eleitores negros deixaram o Partido Republicano (de Abraham Lincoln).

Os democratas incorporaram aos poucos em sua plataforma programas mais progressistas, apesar de terem estado no período inicial desse processo sob a liderança do presidente Lyndon Johnson, um conservador do Texas que mudou algumas posições políticas após chegar à Casa Branca em 1963 com a morte de John Kennedy, de quem era vice-presidente.

A eleição de 1964 foi muito representativa dessas alterações. Johnson enfrentou Barry Goldwater, senador do Arizona, uma espécie de avô do conservadorismo radical depois encarnado por Ronald Reagan, George W. Bush e Donald Trump. Em 1968, a debandada do Partido Democrata pelos líderes do Sul foi tamanha que um deles, Wallace, concorreu à Presidência como candidato independente.

As Presidências Reagan, nos anos 1980, e Clinton, na última década do século passado, foram marcantes no processo de polarização que se intensificava.

A de Reagan, republicano da Califórnia, estado predominantemente democrata, por ter aberto espaço e incentivado a mobilização política de grupos religiosos que colocaram na agenda nacional temas ligados a questões de comportamento, estilo de vida e cultura, como o combate ao direito a aborto e ao casamento gay.

A de Clinton, democrata do Arkansas, estado predominantemente republicano, pela oposição feroz que sofreu em seu projeto de ampliação dos programas de seguro-saúde estatal para os americanos, que foi concebido e liderado por sua mulher, Hillary, alvo de campanha de ódio sem precedentes até então no País.

A hostilidade contra o casal Clinton foi tão grande que ele se tornou o segundo presidente da história dos EUA a ter seu impeachment aprovado pela Câmara. O outro, em 1868, havia sido Andrew Johnson. Ambos foram absolvidos pelo Senado. Já neste século, Trump tornou-se o único presidente a sofrer dois impeachments pela Câmara, os dois pelo Senado.

Impeachments decorrentes da polarização

A ocorrência desses impeachments, que são fenômenos raros em sistemas presidencialistas exatamente por serem a punição extrema que se dá ao chefe de estado e de governo, é uma demonstração do aumento do grau de polarização política no País. Levou 130 anos entre o primeiro e o segundo. Os dois seguintes aconteceram num intervalo de 13 meses.

Donald Trump tem sido fator relevante nesses acontecimentos. Sua retórica beligerante é capaz de levar seguidores a ações impensáveis há muito pouco tempo. Como a invasão do Capitólio, sede do Congresso dos EUA, por uma turba, no dia 6 de janeiro de 2021, quando se realizava ali a apuração dos votos do Colégio Eleitoral que daria a vitória a Joe Biden.

Os fatos que envolveram o incidente ainda estão sendo investigados, mas não se discute que Trump, ainda na presidência, insuflou seus apoiadores e se omitiu por muitas horas do seu dever de mandar proteger a sede do Poder Legislativo, o que pode ter caracterizado uma tentativa de golpe de estado, algo que nunca havia ocorrido antes nos EUA.

Trump alega, sem apresentar nenhuma prova, que as eleições de 2020 foram fraudadas em alguns estados, em especial naqueles em que ele perdeu por pequena diferença. Todas as ações legais que moveu para tentar anular esses pleitos foram rejeitadas pela Justiça, mesmo em cortes cujos juízes haviam sido nomeados por ele.

Mesmo assim, ele segue em campanha contra o “roubo” que diz ter sofrido em 2020 e aguça os aliados para obterem nos estados em que têm maioria nos legislativos locais restrições ao direito a voto, na tentativa de aumentar as chances de ele mesmo, ou quem vier a ser o candidato republicano, vencer o pleito de 2024.

Este é um dos assuntos que mais mobiliza a polarização atual no País. Pesquisa do Instituto Ipsos divulgada em 20 de novembro de 2021 revela que 72% dos eleitores que se dizem republicanos afirmam não confiar no sistema eleitoral americano; entre os democratas, só 39% declaram desconfiança. Entre todos os americanos, 51% confiam no sistema e 49% não, conforme a pesquisa.

Esta divisão entre republicanos e democratas aparece em praticamente todos os temas relevantes da agenda nacional: vacinação contra a Covid 19, obrigatoriedade do uso de máscaras em locais públicos fechados (especialmente escolas), combate ao racismo estrutural, direito a aborto, conceito de legítima defesa com uso de armas, sistema estatal de seguro-saúde universal, escolha de livros para alunos de escolas públicas, punição a policiais por uso abusivo de força contra suspeitos de delitos e muitos outros.

Esse fenômeno vem ocorrendo há mais de 60 anos. O que o torna mais preocupante é que agora ele vem carregado com um apelo ao emprego de ameaças de violência física ou mesmo de morte por parte de republicanos, em particular os mais alinhados com os princípios defendidos por Trump.

O deputado federal Paul Gosar, do Arizona, postou em seu perfil no Twitter um desenho animado que o representava assassinando sua colega democrata de Nova York Alaxandria Ocasio-Cortes e atirando espadas contra o presidente Biden.

Os 13 deputados republicanos que votaram a favor do projeto de lei de Biden que destina US$ 1 trilhão para obras de infraestrutura têm recebido ameaças de morte e sido vítimas de assédio por meio de plataformas de mídias sociais.

Diversos condados em estados de maioria republicana mandaram retirar das bibliotecas de suas escolas livros que contenham, na avaliação dos dirigentes, material “sexualmente explícito”, inclusive alguns de autoria de Toni Morrison, escritora negra que ganhou o Nobel de Literatura de 1993, e em especial os que fazem referência a homossexualidade.

Enfermeiras de escolas em vários locais do País têm receio de ameaças após determinarem períodos de quarentena para colegas de classe de alunos que testam positivo para o coronavírus.

Cenas de agressão física têm sido testemunhadas em reuniões de associações de pais e mestres por parte dos que são contra a obrigatoriedade do uso de máscara nas escolas. Há registro de diversos casos de dirigentes de APMs que resolveram renunciar a seus cargos por sentirem sua segurança ameaçada.

Terrorismo doméstico

Uma das razões por que o clima de ódio se dissemina é a utilização intensiva de plataformas de mídias sociais pelos agressores. Trump demonstrou ser um expert do seu uso e tem conseguido, com seus seguidores, manter-se na ativa mesmo após seu banimento pelas mais importantes, como Twitter e Facebook.

Essas plataformas, sem dúvida, são capazes de espalhar conteúdo com velocidade, quantidade e abrangência muito superiores às de qualquer outro meio de comunicação do passado. Elas se tornaram universais e hegemônicas a partir dos últimos anos do século 20, no mesmo período em que a polarização no País se intensificou.

Mas é arriscado atribuir a elas responsabilidade única ou mesmo prioritária pelo fenômeno. Afinal, elas estão presentes em todos os países do mundo e nem todos chegaram ao clima de antagonismo violento que se verifica nos EUA.

Além disso, durante o movimento pelos direitos civis em meados do século 20, o ambiente político também era muito tenso e dividido. Em diversas situações naquela época, autoridades federais tiveram de fazer valer à força determinações como a integração racial de escolas no sul do País. Atos de violência, inclusive com mortes por linchamento, ocorriam contra negros e seus defensores. E na época não havia internet para servir de bode expiatório.

O clima de ódio disseminado pelo País tem feito alguns analistas (como Carl Bernstein, um dos jornalistas responsáveis pela apuração do caso Watergate) afirmarem que o País se encontra em estado de “guerra civil fria”, em alusão à Guerra Fria entre EUA e URSS entre 1945 e 1989, uma tensão latente que não chegou a se consumar em belicosidade armada aberta.

O sociólogo Jack Goldstone, da George Mason University, e o antropólogo Peter Turchin, da Universidade de Connecticut, usaram um modelo matemático que mescla diversos indicadores sociais para medir graus de instabilidade política e chegaram à conclusão de que os EUA caminham para uma guerra civil, que pode ser deflagrada em mais ou menos dez anos.

Referências a essa possibilidade são relativamente comuns nas plataformas de mídias sociais, em meios de comunicação de massa tradicionais e até por parte de políticos mais extremados.

Uma pesquisa realizada pela agência Edelman de comunicação logo após a eleição de 2020 mostrou que pouco mais da metade dos eleitores entrevistados concordavam com a expressão “guerra civil fria” para definir a atual situação social americana.

Mas é claro que isso é mais produto de retórica hiperbólica do que resultado de análise de probabilidades reais. A Guerra da Secessão, travada entre 1861 e 1865, levou à morte cerca de 750 mil pessoas, número que correspondia a 2,5% do total da população americana na época. Se algo dessa dimensão ocorresse agora, levaria a 7 milhões de mortes.

É bastante improvável que algo próximo desse porte venha a acontecer, por mais inconciliáveis que as posições das extremas direita e esquerda sejam em relação a problemas vitais para todos, como foi o fim da escravidão no século XIX, motivo para a guerra civil então.

O problema racial permanece como talvez o que mais insufla ânimos nos EUA. A eleição de Barack Obama para dois mandatos presidenciais não foi suficiente para aplacar ressentimentos e talvez até os tenha atiçado em alguns segmentos sociais, particularmente entre brancos pobres, que temem ver sua hegemonia perder-se definitivamente.

Os brancos ainda são 60% da população americana, mas prevê-se que em 2045 eles deixarão de ser a maioria absoluta. Os negros, no entanto, mantêm-se com 12% do total, porcentagem apenas um pouco maior que o grupo vem tendo nos últimos 70 anos. Os grupos étnicos que mais têm crescido são os hispânicos, que já fazem 18% do total, e os de descendência asiática, com quase 6%.

Embora as outras minorias raciais também se sintam vítimas de discriminação e de injustiças, a polarização ainda se dá principalmente entre brancos e negros, possivelmente devido ao estigma da escravidão.

O assassinato de George Floyd por um policial branco em 25 de maio de 2020 deflagrou o movimento Black Lives Matter, que mobilizou centenas de milhares de pessoas em protestos que sacudiram os EUA e estimularam muitos desses prognósticos de nova guerra civil.

Aqui, também, um pouco de perspectiva histórica pode ajudar o raciocínio a uma perspectiva mais realista. Atualmente, não há nenhum movimento negro armado para reivindicar justiça ou reparos pelas perseguições sofridas pela população afro-americana. Black Lives Matter é um movimento social pacífico.

Mas, o Partido dos Panteras Negras, fundado em 1966 e dissolvido em 1982, era constituído por pessoas (calculadas em torno de 5 mil) que andavam com armas para monitorar a violência policial contra negros em diversas cidades. Chegaram a ocorrer batalhas campais entre policias e Panteras Negras.

Pelo menos por enquanto, nada parecido ocorreu neste século. O que tem acontecido são episódios em que ou policiais ou civis armados agridem e chegam a matar negros ou brancos que os apoiam, como o caso de Kyle Rittenhouse, adolescente que confrontou manifestantes com um fuzil semiautomático e matou dois deles, em agosto de 2020, e que foi absolvido da acusação de homicídio, graças ao uso do argumento de legítima defesa.

Nova guerra de secessão?

Embora possivelmente sejam exageradas as previsões de que os EUA vivam em estado de guerra civil fria ou de que possam estar caminhando para uma nova guerra de secessão, é inegável que as fissuras políticas notadas desde a segunda metade do século passado estão se ampliando.

A tensão política e a pandemia fizeram com que aumentasse o número de civis armados no País. Pesquisa do Pew Research Center de setembro de 2021 mostra que 44% das pessoas que votam no Partido Republicano dizem ter ao menos uma arma (entre os eleitores do Partido Democrata a porcentagem é de 20%). Entre brancos, esse número é de 36% e de 24% entre negros, o que equivale a 30% da população total.

É fato que aumentem crimes como o que vitimou Ahmaud Arbery, jovem negro que em fevereiro de 2020 foi perseguido e assassinado quando praticava jogging, desarmado, durante a tarde de um domingo por dois brancos que acharam que ele pudesse ser um ladrão. Os criminosos foram condenados, embora tivessem alegado legítima defesa, como Rittenhouse fez.

O futuro é incerto e depende em grande parte do sucesso da administração Biden. Se ela não correr bem (como não vem correndo), a chance de Trump ou algum de seus seguidores reconquistar a Casa Branca aumentará. E ele já deu provas de não ter nenhum compromisso com os valores da democracia ou com os direitos humanos.

Um eventual novo governo Trump ou algo similar a ele pode intensificar bastante o já conturbado clima político e social dos EUA e fazer com que ele se aproxime do estado de guerra civil fria que alguns já enxergam agora.


É professor do Insper. Foi correspondente da Folha de S.Paulo nos EUA e editor da Revista Política Externa. É livre-docente e doutor pela USP e mestre pela Michigan State University. Membro do Conselho Curador da Fundação Padre Anchieta

Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

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