Guerra na Ucrânia. Motivações conflitantes e o difícil caminho para a paz
A Guerra na Ucrânia deve ser vista como a confluência de dois movimentos: conflitos étnico-ideológicos domésticos e rivalidade entre superpotências. Reduzir a Guerra a essa última dimensão, ou atribuí-la exclusivamente ao conhecido binômio expansionismo da OTAN versus ameaça existencial à Rússia é grave equívoco. O propósito deste texto é avaliar a guerra na Ucrânia à luz de três motivações – ucraniana, russa e a busca da paz.
Motivações ucranianas
Com o desmembramento da União Soviética, a Ucrânia independente (1991) decidiu abdicar das instalações nucleares, sob condição de não intervenção russa. O propósito de preservar a soberania e a integridade territorial do país se revelou uma ilusão. A Ucrânia perdeu poder de negociação e não ganhou segurança de não interferência russa no país.
Com a renúncia de Boris Yeltsin e a ascensão de Vladimir Putin, a Rússia ganhou estabilidade política, crescimento econômico e projeção externa. Enquanto isso, a Ucrânia vivia a Revolução Laranja de 2005, com o primeiro presidente nacionalista pós independência – Viktor Yuschenko. A Revolução defendia um modelo político mais próximo de uma democracia liberal.
Os anos pós-revolução Laranja foram de grande instabilidade. A plataforma ‘economia liberal com orientação social’ resultou num socialismo populista. Em 2010 venceu as eleições Viktor Yanukovich, com um projeto pragmático – boas relações com a Rússia, mas sem submissão. Procurava conciliar aspirações liberais domésticas com uma vizinhança autoritária.
A economia sofreu os efeitos da crise internacional de 2008/2009 (queda de 15% do PIB), e o país assinou um importante e desejado Acordo de Associação com a União Europeia. Entretanto, de forma surpreendente, ao regressar de visita a Moscou, o presidente revogou o Acordo.
A sociedade reagiu de forma contundente a esse grave retrocesso político – a Revolta Euromaidan, conhecida como Primavera Ucraniana. Ficou demonstrado que, embora sem grande peso, foi instrumentalizado, pelos governos ucraniano e russo, para justificar uma repressão brutal. Cerca de 100 mil manifestantes ocuparam o centro de Kiev de novembro de 2013 a fevereiro de 2014. Morreram 102 pessoas, e o presidente foi obrigado a renunciar, fugindo para Moscou e instalando no país uma coalizão com um governo de centro. Inicialmente pacíficas, as manifestações evoluíram para violenta repressão, e algumas cicatrizes não desapareceram.
No mesmo ano, a Rússia invadiu e anexou a estratégica península da Crimeia, entregue à ex-república Soviética da Ucrânia por decisão de Khrushchev em 1954. A invasão foi um êxito militar, tendo produzido amplo apoio popular na Rússia. A represália norte-americana, sob a forma de suaves sanções impostas por Obama, teve efeito praticamente nulo.
Além da anexação, Putin começou a armar, no mesmo ano de 2014, os separatistas da região de Donbas, no Leste da Ucrânia. Em resposta à ingerência externa, Kiev organizou forte resistência armada, inclusive com apoio de paramilitares neonazistas (Batalhão Azov, entre outros). Anos mais tarde, a participação desse núcleo minoritário serviria de justificativa para a política russa de ‘desnazificação’ da Ucrânia. Entre 2014 e 2022, estima-se em 15 mil o número de mortos em Donbas.
Cinco anos após a invasão e anexação da Crimeia (2019), é eleito novo Presidente da Ucrânia – Volodymyr Zelensky, comediante judeu e outsider da política, que assumiu o poder com uma plataforma de ostensiva aproximação com a União Europeia e o Ocidente. Tinha modesta sustentação política, sendo visto como um líder fraco. Esse perfil de inexperiente e vulnerável alimentou as ambições russas de maior intervencionismo na Ucrânia, já latente em função da rápida e exitosa anexação da Crimeia, com reação leniente do Ocidente.
Os projetos de ampliar o escopo da intervenção na Ucrânia foram também estimulados pelo êxito de Putin na Guerra dos Cinco Dias, em 2008, contra a Geórgia. A Rússia, que pouco antes reconhecera a independência da província da Ossétia do Sul, estacionou 40 mil soldados na fronteira e ocupou o país, sob a alegação de proteger os ossetianos de genocídio.
Há grande assimetria entre Geórgia e Ucrânia (3,7 milhões versus 44 milhões de habitantes). Entretanto, é marcante a semelhança da estratégia russa nos dois países – 40 mil soldados na fronteira da Geórgia e 80 mil na Ucrânia; reconhecimento russo da independência de províncias separatistas em ambos os vizinhos; e alegação de genocídio.
Em razão dessas fortes analogias, vários analistas sustentam que a invasão da Geórgia foi um test case para a invasão da Ucrânia.
Breve interpretação das motivações ucranianas
A Ucrânia independente foi palco de uma sucessão de rebeliões abortadas por violenta repressão. O propósito maior era sempre o de assegurar soberania, integridade territorial e vontade política própria, muitas vezes sob a forma de aproximação com a União Europeia.
Os exemplos concretos mencionados anteriormente demonstram que essa luta não foi retórica: provocou forte repressão doméstica; exacerbou as preocupações russas com uma Ucrânia liberal e próxima da União Europeia; produziu milhares de mortos; e deixou cicatrizes permanentes no tecido social do país.
Isso nos leva a uma primeira conclusão. O atual conflito armado não pode ser visto apenas como um jogo geopolítico entre duas superpotências, nem como uma reação previsível da Rússia diante do avanço da OTAN para o Leste no pós Guerra Fria.
O expansionismo da Organização foi sem dúvida exagerado, mereceu críticas contundentes de figuras respeitáveis, como George Kennan e Henry Kissinger que denunciaram, em 1997 e 2014, o risco potencial para Moscou. Tudo isso é verdade. Mas outra história é ignorar sangrentos movimentos de contestação à ingerência russa no país – Revolução Laranja de 2005, Euromaidan de 2013 – e interpretar a invasão russa como resultante inevitável da expansão da OTAN. Mas vejamos agora as motivações russas.
Motivações russas
Vladimir Putin, primeiro-ministro, assumiu a Presidência em 2001, com a renúncia de Boris Yeltsin, reconhecidamente um governante fraco, bêbado e incapaz de evitar o caos político e a depressão econômica do país. Yeltsin não estava à altura de conduzir a gigantesca transição inédita de uma superpotência socialista, com partido único, rumo a um modelo político aberto com economia de mercado.
O sucessor exibia credenciais opostas. Disciplinado oficial da KGB, transmitia um perfil de austeridade e determinação. Ficou fortalecido na política ao derrotar de forma devastadora a república da Chechênia, declarada independente em 1991. O país viveu prolongado conflito armado em duas fases (1994-1996 e 1999-2000), com 4 mil baixas russas, 16 mil chechenas e um histórico de atrocidades denunciadas por organismo internacionais.
Além da vitoriosa repressão armada na Chechênia em 2000, Putin colecionou êxitos em iniciativas militares anteriores à invasão da Ucrânia de 2022 – Geórgia (2008), Crimeia (2014) e Síria (2015). A conjuntura internacional, pouco antes da invasão da Ucrânia, era também muito favorável a Putin.
Donald Trump, próximo de Putin, produziu virtual divisão da sociedade e da política norte-americana, investiu contra as instituições, afastou o país de aliados históricos, antagonizou a União Europeia e líderes do calibre de Angela Merkel e Emmanuel Macron. Foi ainda hostil ao multilateralismo, qualificou a OTAN como irrelevante, e aplicou pesado protecionismo comercial contra uma China vista como a origem dos problemas da economia norte-americana.
O sucessor americano, Biden, era visto por Putin como um presidente fraco. Assumiu com maioria de apenas um voto no Senado (o da vice-presidente); perdeu parte do apoio doméstico e internacional com a desastrada retirada do Afeganistão; e mereceu fortes críticas de Macron em função da iniciativa AUKUS (Austrália, Reino Unido e EUA) para fabricação de submarinos nucleares na Austrália. O grande projeto de política externa de Biden era recriar uma aliança EUA – União Europeia (UE), desarticulada por Trump. Mas não parecia reunir atributos para tal.
Fim da ‘hegemonia liberal’
Do outro lado do Atlântico, a Europa se encontrava enfraquecida. A Alemanha estava órfã da liderança de Merkel; Boris Johnson enfrentava ameaças de impeachment por conduta indevida durante a pandemia; na França, a extrema direita crescia e reduzia a vantagem de Macron nas eleições dos próximos meses; democracias iliberais na Polônia, Hungria, Áustria estavam distantes do padrão político da União Europeia; e a OTAN havia sido diagnosticada com ‘morte cerebral’ por Macron.
A tudo isso se somava a percepção política no seio da academia nos EUA de que o país devia abdicar da estratégia de promoção da ‘hegemonia liberal’ ao redor do mundo. Os realistas em Washington (Henry Kissinger) e em Chicago (John Mersheimer) demonstravam essa tese com exemplos convincentes – os contundentes fracassos militares na Líbia, Iraque, Síria, Afeganistão, e as metas irrealistas de regime change nesses países.
Esse conjunto de fatores convergia para uma crescente convicção de Putin. Abria-se uma janela de oportunidade para lançar rápida e vitoriosa ofensiva militar contra a Ucrânia – semelhante às da Geórgia (2008), Crimeia(2014) e Síria(2015). O propósito original de Putin, na Ucrânia, era trazer a região de Donbas para seu lado, depor o Presidente Zelenski, instalar um regime títere em Kiev e afastar o país da sedução exercida pela União Europeia e pela OTAN. A condição da Ucrânia – ainda não membro da OTAN, mas forte aspirante à União Europeia e, por tabela, à OTAN – era decisiva para os planos de Putin. De fato, nas circunstâncias atuais, a UE ainda era uma utopia distante, e a OTAN estava impedida de intervir militarmente num país não membro, sob risco de iniciar uma conflagração global.
Putin deve ter calculado que seria melhor cortar o nó pela raiz. Ou seja, invadir o país e abortar a aspiração europeia da população e a consequente adesão à OTAN. A Ucrânia nunca foi um país homogêneo do ponto de vista étnico nem político. Populações de origem russa são majoritárias em algumas regiões, mas claramente minoritárias na totalidade da população do país. Com 100 mil militares russos estacionados na fronteira, a primeira opção de Putin obviamente não era atacar a integralidade do território ucraniano. O objetivo inicial era protagonizar uma guerra parcial (região separatista de Donbas), intimidar as lideranças do país, promover um regime change em Kiev e instalar um governo submisso a Moscou. Diante desse cenário, os adversários – EUA, UE e OTAN – se sentiriam impotentes, inclinados a reeditar Obama e, assim, impor sanções suaves à Rússia.
O Cisne Negro dessa estratégia de Putin, ou seja, o evento inesperado e impactante, foi o vigor da resposta do Ocidente à ameaça de 100 mil militares russos na fronteira da Ucrânia. O passado recente descartava tal reação. No seu retrovisor, Biden era aquele presidente fraco, refém de limites inibidores – um Congresso com forte oposição republicana; uma UE enfraquecida por democracias iliberais; e a desastrosa retirada do Afeganistão. Mas, a história traiu Putin.
Tampouco contava Putin com a emergência de improváveis desdobramentos em solo ucraniano: carismática liderança de um presidente inexperiente; imprevisível resiliência das forças armadas do país; e apoio humanitário maciço dos vizinhos.
No plano multilateral, as derrotas da Rússia foram sequenciais: no Conselho de Segurança das Nações Unidas (12 votos contra, sendo um da Rússia, e mais três abstenções – China, Índia e Emirados Árabes); na Assembleia Geral das Nações Unidas (144 votos contra a Rússia, num universo de 194 países); e em diversas votações do Conselho de Direitos Humanos.
A Rússia tem sofrido contundentes derrotas no âmbito multilateral (ONU) e amplo isolamento internacional (com a enigmática exceção da China e, em menor expressão, da Índia). Tais derrotas contrastavam, pelo menos no primeiro mês do conflito, com estimativas de provável vitória militar da Rússia. Mas o custo previsto era muito alto: geopolítico; econômico doméstico e internacional; humanitário; para a imagem internacional. Seria uma vitória de Pirro?
É nesse contexto que reside a grande indagação – como estimular negociações de um cessar fogo e, assim, abrir caminho para um futuro acordo de paz?
O Difícil Caminho para a Paz
Após três meses de conflito, os avanços rumo a um cessar fogo ainda são modestos e a distância entre as demandas de cada lado, expressivas.
Pela condição de superpotência, as demandas russas tendem a ser maximalistas. Mas o prolongamento temporal do conflito e as adversidades no terreno já reduziram muito seu ímpeto inicial: graves dificuldades logísticas e de suprimento; elevadas baixas em dezenas de milhares de soldados e até em dezenas de generais; e ataques ucranianos eficazes de drones contra blindados russos.
A Rússia está muito distante de uma vitória militar e claramente perde a guerra de narrativas. O talento de comunicador do ex-comediante ucraniano contrasta com a frieza do antigo oficial da KGB. A derrota russa na comunicação se consolida com Zelenski falando aos parlamentos da Europa e dos EUA, ao mesmo tempo em que fica estampado nas imagens aterradoras a destruição de casas, escolas e hospitais.
O Exército ucraniano recebeu, ao longo das primeiras décadas deste século, importante fluxo de treinamento, armas e equipamento militar norte-americano. Além disso, nos últimos meses, armamento e equipamento bélico dos EUA e de outros países da OTAN entram em volume crescente na Ucrânia. Essa assistência, aliada à liderança carismática do presidente, ao moral da tropa e da população civil, explica a resiliência e vitórias do Exército e das milícias contra os invasores.
A favor de uma cessação das hostilidades militam, do lado ucraniano, a crise humanitária sem precedentes, o êxodo de 6,4 milhões de poloneses e a destruição de grande parte da infraestrutura física. Do outro lado, operam o isolamento internacional da Rússia, os efeitos das mais rigorosas sanções da história moderna, a iminência de uma insegurança alimentar com alcance global e uma campanha militar incompetente.
Mas o fim das hostilidades depende também da coesão do Ocidente diante do conflito. EUA, Canadá e Reino Unido exibem retórica virulenta. Para a Europa Ocidental, encurralar a Rússia pode ameaçar a segurança e a economia europeias, sendo que a França é a favor de um acordo de paz sem humilhar a Rússia. Polônia e países bálticos defendem robusta contenção de Putin.
A neutralidade não é mais uma estratégia de segurança viável para vizinhos da Rússia, como explicitado por Finlândia e Suécia, ao romperem com a História e pleitearem ingresso na OTAN. Fareed Zakaria, no Washington Post de 28 de maio, afirma: “Em meio a toda essa treva, há um sinal claro de esperança. A Europa está agindo com o maior senso de unidade e propósito que já vi.” Mas fica a pergunta – até onde vai a coesão do Ocidente.
Há dois eixos do debate sobre o território, na visão de The Economist de 29 de maio: deixar a Rússia manter o que conquistou ou obrigá-la a recuar às fronteiras anteriores à invasão. Diante dessa disjuntiva, vale lembrar a advertência de Kissinger: a Rússia é importante para o equilíbrio de poder na Europa, por isso, não devemos empurrá-la rumo a uma aliança permanente com a China.
Autoridades chinesas e alguns analistas sustentam que a China tem vocação natural para ser uma ponte entre os dois lados. Se conseguir manter esse difícil equilíbrio, deverá colher prestígio e poder. A China só tende a ganhar com essa ‘equidistância pragmática’ no conflito – à la Vargas na Segunda Guerra Mundial. Isso porque não a favorece escolher o lado de uma Rússia isolada no mundo e tampouco a beneficia se aproximar de uma Ucrânia aliada dos EUA.
O caminho que mais parece se aproximar das demandas dos dois lados consistiria no que A. Wess Mitchell chamou de fortified neutrality, na Foreign Affairs de março deste ano: “EUA e UE se comprometeriam, em um tratado, a defender a Ucrânia em caso de ataque, e a assegurar assistência econômica para sua reconstrução”.
Em linha semelhante argumenta Samuel Charap, em Ukraine’s Best Chance for Peace, no Foreign Affairs de 1º de junho: Kiev renunciaria ao ingresso na OTAN e assumiria neutralidade permanente, em troca de segurança do Ocidente e da Rússia.
Apesar das gigantescas dificuldades para se chegar a um cessar fogo e a um acordo de paz, o cenário de uma fortified neutrality não deixa de ser tênue luz no fim de um longo túnel. n
É embaixador junto às Nações Unidas em Genebra e mestre em Economia pela Universidade de Ottawa, Canadá.
Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional