04 janeiro 2021

Milícias, Estado paralelo e Segurança Pública

A origem das milícias é um paradoxo e um aviso. Elas são integradas por policiais da ativa e da reserva, que em face da precariedade da Segurança Pública nas comunidades onde moravam, organizaram-se para a sua autodefesa e das suas famílias.
Sua estrutura, métodos, implicações e crescimento não podem ser dissociados das realidades e dos graves problemas que acometem a Segurança Pública nacionalmente, e que nos levam à sensação de violência crescente, medo e desamparo.
Iniciando pela abordagem das milícias no Rio de Janeiro, em seguida passaremos em revista os principais pontos que contribuem para a nossa atual insegurança: sistema prisional, juventude vulnerável, política de drogas, polícias, sistema e política nacional de Segurança. Nas conclusões, retornaremos àqueles que nos assombram e ameaçam com o seu poder crescente, os milicianos.

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No início da década de 1950, Rio das Pedras era uma ocupação de terras privadas a oeste do Rio de Janeiro, com aproximadamente 400 famílias, que não se diferenciava das muitas outras comunidades de migrantes, pobres e autônomos em crescimento na periferia da então capital do País. Hoje, com mais de 55 mil habitantes, é de lá o modelo de organização que domina mais de 700 comunidades, 57% do território e 1/3 da população da cidade do Rio de Janeiro (1), estabelecendo um Estado paralelo, onde as garantias e direitos constitucionais não valem, e os milicianos ditam e são a lei. Como se chegou a isso? Três foram as razões principais: o modelo de governança das  milícias, suas vantagens comparativas vis-à-vis o crime organizado e as relações com o poder público e a política.
Os componentes da governança miliciana são: (i) a manutenção da ordem, o que implica varrer os criminosos da área e a punição de comportamentos que perturbem a comunidade e os negócios; (ii) a arrecadação de pedágios de proteção, serviço de lixo, transporte de vans, construção de imóveis e permissão para lajes, comércio de cigarros, sinal de TV fechada (gatonet) etc; (iii) e a associação com o poder público e a política.
As milícias possuem uma vantagem comparativa a mais. O fato de contar com o respaldo de agentes públicos de Segurança, dá-lhes apoio operacional e de informações que contribui para a anuência dos moradores, premidos a escolher entre elas ou o crime organizado. Não que milícias e tráfico sejam excludentes, embora tenham sido no passado. Diversas formas de cooperação, divisão de territórios e compartilhamento de fontes de abastecimento são hoje corriqueiras, sem que isso signifique o fim da competição entre milícias, crime organizado e tráfico, que segue uma dinâmica de conflitos, acordos e paz provisória, sucessivamente.
Precariedade e deficiências na prestação de serviços de Segurança, manutenção da ordem pública nas comunidades e modelo da governança contribuem para explicar o extraordinário crescimento das milícias, num espaço de apenas 30 anos. Mas é nas relações com a política e com o Estado que devemos buscar o fator-chave da sua expansão.
Controlando territórios e impondo-se como um ‘estado terceirizado’, as milícias paulatinamente foram assumindo o controle político das áreas em que atuavam. Isto quer dizer que elas se tornaram eficientes cabos eleitorais, via controle dos votos da comunidade. O que veio a possibilitar que elegessem tanto aliados seus como, num segundo momento, milicianos.
Instalada a ‘bancada do crime’ nos parlamentos local e estadual, seus representantes eleitos passaram a atores políticos do ‘presidencialismo de coalizão’, ferramenta política que permite ao Executivo, mediante cessão de cargos na administração pública, formar maiorias legislativas. Controlando territórios e votos, elegendo bancadas de representantes, as milícias, mas não apenas elas, passaram a indicar aliados para cargos de confiança nas áreas da Segurança e de controle em nível municipal e estadual.
Os incentivos de parte a parte, isto é, entre políticos, administradores públicos e milicianos, eram mutuamente positivos. Aos políticos, as milícias tinham a oferecer votos e recursos; inversamente, os políticos tinham a ofertar apoio, advocacy e cargos na comunidade em que elas atuavam, em especial nas áreas sociais – saúde, assistência, educação.
Essa coalizão de interesses foi progressivamente formando alianças e ocupando outros espaços no aparelho de Estado, capturando partes dos órgãos de controle e da Segurança, ao ponto de deter poder de veto sobre decisões contrárias aos seus interesses e/ou sanções judiciais ou ainda disciplinares que alcançassem seus membros.

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Feita a abordagem sumária das milícias, sua origem e desenvolvimento, passemos a aspectos outros, contribuintes para o sucesso dos milicianos e para a crise de insegurança e violência em que estamos imersos, iniciando pelo sistema prisional.

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O Brasil tem a terceira população carcerária do mundo, abaixo apenas dos Estados Unidos e da China. Estes países, porém, têm estabilizado suas respectivas populações de apenados, enquanto a nossa, de mais de 820 mil presos (2), cresce na ordem de 8% ao ano (3). Breve, em 2023, estima-se que serão 1,5 milhão, ou seja, uma Porto Alegre atrás das grades, o que ampliará o déficit do sistema das 350 mil vagas atuais para algo ao redor de 630 mil – a permanecer a defasagem atual entre população carcerária e a capacidade das nossas prisões (4). Os quase 1.500 estabelecimentos prisionais existentes albergam facções criminosas de base prisional, isto é, que foram gestadas dentro do sistema e têm o controle da maioria dos presídios e das penitenciárias do país. Isso se dá, sobretudo, porque o poder público não tem como garantir a vida dos apenados, que ficam à mercê da proteção das mais de 70 facções existentes. Essa garantia de vida provida por elas, tem como contrapartida a afiliação de jovens a essas facções, dentro e fora do sistema penitenciário. De modo que, de dentro do sistema, as facções controlam a violência nas ruas, via egressos que são seus afiliados. Esses jovens, 55% do total de apenados, em sua maioria são negros, pardos, com baixa escolaridade e renda, oriundos de famílias muitas vezes desestruturadas e chefiadas por mulheres que se dividem precariamente entre os filhos e a manutenção econômica do lar. Sua reinserção ou ressocialização é dificultada pelo fato que 82% deles não têm atividades educativas quando atrás das grades e 85% não estão em cursos profissionalizantes, o que contribui para que o seu índice de retorno aos cárceres seja de 40% a 70% (5). Apenas 11% são homicidas, enquanto os crimes de roubo, furto e receptação somam mais de 58%, sendo que 45% são presos em flagrante e 40% são presos provisórios ou temporários, sem condenação (6).
A síntese de tudo isso é que o sistema prisional funciona como um “home office” das facções, permitindo o recrutamento e a organização de recursos humanos antes dispersos, qualificando-os e mantendo-os sob controle. Essa questão, porém, não é assunto ou faz parte do debate nacional sobre segurança pública. O foco e as atenções se concentram na criminalidade urbana que ocorre, principalmente, mas não apenas, nas ruas. Uma população amedrontada e vulnerável, compreensivelmente exige que as autoridades retirem marginais e criminosos das ruas, pouco se importando ou tendo responsabilidades com o que se passa dentro dos muros do sistema prisional. A demanda da opinião pública foca em mais policiais, carros, armas, equipamentos etc., enquanto um dos motores principais da violência, o controle das prisões pelas facções, permanece intacto e crescendo.
Boa parte dessas tragédias tem origem nas drogas, e a política pública que temos para elas é, ela também, uma tragédia. Nossa lei de drogas de 2006 determina a não penalização dos usuários e a penalização dos traficantes. Porém, ela não introduziu critérios claros para diferenciar uns de outros. Resultado: ambos irão cumprir penas juntos, equiparando jovens que portavam drogas e não tinham antecedentes criminais com traficantes, homicidas e chefes do tráfico. Além de colocá-los em celas comuns, flagrantemente ao contrário do que determina a Lei de Execução Penal.

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Ao longo de quase três séculos como nação independente e sete constituições, o Brasil jamais teve um sistema e uma política nacional de segurança pública. Isto se deve a que nenhuma das nossas cartas constitucionais atribuiu responsabilidades e competências ao poder central, seja no Império ou na República, sobre a segurança pública. Veja-se o artigo 144 da carta de 1988, que define a estrutura da área. Lá, no caput do artigo, está dito que “segurança pública é dever do Estado, direito e responsabilidade de todos”. O documento, em seguida, lista os órgãos, nos três níveis federativos, que devem cuidar dela. Em nível federal, cuidam as polícias federal, rodoviária e ferroviária – esta última jamais tendo saído do papel. Aos estados, cabe os demais crimes contra a vida e o patrimônio. Qualquer dúvida sobre quem cuida da segurança pública em nosso país pode ser dirimida pela observação dos dispêndios com a função. Dos 95 bilhões gastos em 2018 com a função segurança, os estados respondem por aproximadamente 80%, os municípios 9% e a União os restantes 11%. Como dito, se não existem competências constitucionais do governo federal em segurança pública, consequentemente jamais tivemos um sistema e uma política nacionais. Dessa constatação decorrem disfunções, vulnerabilidades e falhas, a exemplo da inexistência de dados nacionais consolidados a embasar políticas públicas de segurança; idem ao fato que o crime organizado se nacionalizou e transnacionalizou, sem que o país disponha de capacidades e meios para enfrentá-lo. Essa falha foi superada com a aprovação pelo Congresso Nacional, do Sistema Único de Segurança Pública, o Susp, após árdua tramitação ao longo de quatro governos, iniciando-se no primeiro governo Lula. No Susp, pela primeira vez, institui-se um sistema e uma política nacional baseados em evidências, metas e resultados. Organiza-se uma coordenação que articula os três níveis federativos – União, estados e municípios – e integram-se os esforços, meios e efetivos das polícias estaduais, Polícia Federal, Polícia Rodoviária Federal, Forças Armadas, Ministério Público, Judiciário e guardas municipais. Como também, um sistema nacional de dados e informações. O Susp, entretanto, permanece no papel, ou melhor, nas gavetas do atual governo, que a ele não deu atenção e/ou prioridade a sua implementação. Em parte por isso, os homicídios, que vinham caindo consistentemente desde meados de junho de 2018, queda que se acelerou durante o ano de 2019, voltaram a subir em 2020, retomando a curva ascendente da última década.
Reverter esse quadro crítico da segurança pública implica ter respostas e soluções para cinco dos problemas considerados centrais, abordados acima, sendo o primeiro deles a juventude vulnerável moradora das periferias das nossas grandes e médias cidades. Isso requer a organização de uma política pública focada nessa juventude, com a participação conjunta e simultânea da educação, cultura, esportes, trabalho e assistência social. Apenas 2% dos nossos 5.570 municípios respondem por 50% das mortes violentas. Logo, o cruzamento de dados entre territórios críticos e juventude, mais as atuais tecnologias de geolocalização, permitiriam chegar a esses jovens vulneráveis e às suas famílias com programas integrados de assistência. O que já seria um bom começo.
No que toca o sistema prisional, será necessário diminuir o superencarceramento, sobretudo para crimes leves ou de baixo impacto, como furtos, roubo e receptação, que respondem por 41% dos apenados, ampliando o sistema semiaberto, a prestação de serviços à comunidade, fortalecendo o juizado de pequenas causas, o juiz de garantias, levando educação e formação profissional para as penitenciárias, sobretudo a distância, além de um programa de ressocialização para os egressos das prisões.
De grande impacto sobre o sistema prisional e sobre a segurança em geral, seria uma nova política para as drogas, 26% dos homens e 62% das mulheres nos cárceres. Hoje, qualquer jovem que, usuário e não traficante, for detido com pedras de crack, ou trouxas de maconha, sem antecedentes criminais e sem armas, corre o risco de ir parar numa penitenciária e lá conviver e ser recrutado pelas facções de base prisional e ser submetido a um controle de difícil escapatória. A principal medida aqui seria a definição de parâmetros para que o Judiciário pudesse separar o joio do trigo. Isto é, o estabelecimento de um ‘quantum limite’ para o usuário de drogas ser considerado como tal ou traficante. Apenas essa medida teria o condão de evitar que anualmente milhares de jovens fossem encarcerados e viessem a se tornar soldados do crime organizado e tivessem suas vidas destruídas.
Retomando a questão das milícias, ela remete à reforma e reorganização das polícias, em especial a militar, que contribui com a maioria dos quadros milicianos. Duas questões são decisivas: a despolitização das polícias e o combate sem tréguas à corrupção policial. A politização significa que a hierarquia, a disciplina e o mérito são duramente atingidos e perdem sua centralidade na cultura, organização, moral e autoestima de uma força armada, seja ela militar ou policial. Já a corrupção, abala e destrói os valores e princípios que norteiam a organização policial. Promover a despolitização requer a observação de autolimitação, regras e respeito dos governantes ‘vis-à-vis’ as polícias. Idem para o Legislativo e os órgãos de controle, em especial na fiscalização dos atos do Executivo. A corrupção, requer corregedorias fortes, equipadas e independentes, o que infelizmente não é a regra, donde há necessidade do seu fortalecimento e capacitação.
O controle externo das polícias, competência do Ministério Público, igualmente necessita ser fortalecido, de modo a evitar o seu caráter precário e assistemático. Essencial é não delegar às polícias o poder de decidir quem deve ou não morrer, como é o caso do governador afastado do Rio. Nada mais corruptor de uma polícia que ter esse poder, inconstitucional e criminoso, além de aproximá-las às milícias, espelho invertido da violência legal, sancionada pelo Estado.
Complementarmente, a formação dos policiais deve ser aprimorada; reduzidos os diferenciais entre o topo e a base da pirâmide salarial e aprimorados e fortalecidos os sistemas de saúde e habitação.
Essencial se afigura retirar o Susp das gavetas em que o atual governo federal o condenou. Sem ele, é impossível ter-se um sistema e uma política nacional; idem sobre uma coordenação que reúna todas as instâncias e atores públicos empenhados na redução da violência e da criminalidade, em conjunto com a sociedade civil. Será impossível, ainda, uma política pública de segurança baseada em evidências, com transparência e controle social.
Retornando ao tema das milícias, muito embora elas sejam encontradas em quase todos os estados da federação, é no Rio que elas alcançaram o mais alto grau de organicidade e poder. Donde há necessidade que o governo federal contribua para com o seu combate através de uma força-tarefa federal que conte com a Polícia Federal, o Ministério Público e o Judiciário.
As milícias, ao consolidarem uma ‘zona de exclusão’ das garantias e direitos constitucionais, estabelecendo um ‘estado paralelo’ despótico, que oprime as comunidades a elas sujeitas, nos colocam diante de um evidente desafio e ameaça ao estado democrático de direito e à democracia. Desafio e ameaças essas que, não conjuradas, tendem a se reproduzir, ou agravar, em outros estados e regiões, comprometendo a raison d’etre do próprio Estado nacional: o império da lei e a tutela de bens essenciais como a lei e a vida.
A sensação de insegurança é generalizada, alcançando todos, ainda que diferencialmente. Conectada à sensação de corrupção e baixa representatividade do sistema político, percebido como se autorrepresentando e não aos seus constituintes, está na base das grandes manifestações de 2013 e do choque e suas consequências negativas das eleições presidenciais de 2018.

Raul Jungmann é político, consultor e ex-deputado federal, foi ministro da Reforma Agrária no governo de Fernando Henrique Cardoso e ministro da Defesa e da Segurança Pública no governo Michel Temer

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