05 abril 2024

Negócios ilícitos e a nova geopolítica do crime organizado na América Latina

Os professores Leandro Piquet Carneiro e Fábio Ramazzini Bechara consideraram ser preciso discutir o papel central da corrupção dos agentes públicos no processo de expansão dos mercados ilícitos e das atividades criminais organizadas. Os melhores hubs para as atividades ilícitas, são encontrados em regiões que oferecem a combinação entre boa infraestrutura administrativa de serviços e mercado, porém dispõem de instituições com fraca governança e sistema de justiça deficiente.


leandro piquet carneiro é professor do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo, onde coordena a Escola de Segurança Multidimensional (ESEM-USP)



Fabio Ramazzini Bechara é professor da Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie de São Paulo, é promotor do Ministério Público de São Paulo e conselheiro da Escola de Segurança Multidimensional da USP


Os mercados ilícitos representam uma força emergente na economia global, impulsionados progressivamente pela combinação peculiar de avanço tecnológico amalgamado ao efeito indesejado de legislações domésticas ineficientes que se mostram incapazes de alterar a demanda que pretendem eliminar ou controlar. Este fenômeno impactou diretamente as dinâmicas da violência na Região da América Latina e Caribe (a ALAC). Drogas ilícitas, produtos falsificados, armas e o tráfico de pessoas estão no topo da lista dos negócios ilícitos que impulsionam as engrenagens da violência. As redes criminosas que operam nas longas cadeias logísticas de bens e serviços ilícitos em escala global deixam pelo caminho homicídios, corrupção e os eventos recentes de insurgência criminal que se disseminam pela região.

Discordamos da visão quase hegemônica no debate público e acadêmico que entende o crime organizado como um fenômeno eminentemente político, ou até mesmo como uma manifestação social dos excluídos pela globalização. Em nossa leitura, o crime organizado está no centro de uma complexa teia de fenômenos que se expande sobre a base dos negócios ilícitos em ascensão global.

O mapa global de homicídios conta uma mesma história desde os anos 1990. Se houvesse um G20 do crime, nenhuma região do mundo seria páreo para a América Latina e o Caribe. Em 1990, 14 dos 20 países mais violentos do mundo estavam na região, três décadas depois, em 2020, são 18. A parte mais importante da história da violência global dos últimos 30 anos foi escrita nos países da região, em particular, Colômbia[1], México, El Salvador, Brasil[2], Honduras, Guatemala e Jamaica. Até mesmo nações consideradas relativamente seguras, como Equador, Costa Rica e Chile apresentaram níveis recordes de homicídios em suas trajetórias na presente década.

Embora as estimativas globais dos valores financeiros gerados nos diferentes mercados ilícitos tenham reconhecidas deficiências metodológicas, há estimativas recentes de agências como a agência da ONU para o comércio internacional, a UNCTAD, a qual publicou, em junho de 2023, um relatório em parceria com um grupo de países em desenvolvimento para produzir dados oficiais sobre tipos específicos de fluxos financeiros ilícitos. Os dados do México, que participa desse estudo, permitem estimar que o contrabando de imigrantes irregulares estrangeiros para os Estados Unidos gerou mais de US$1,1 bilhão em fluxos financeiros ilícitos por ano no período 2016 a 2018, recursos esses apropriados por organizações criminosas (ORCRIMs) baseadas no México[3]. O fluxo financeiro ilícito gerado pelo tráfico de drogas (heroína, cocaína, metanfetamina) foi estimado em US$12 bilhões em média, por ano. Os cálculos para a Colômbia indicam que o tráfico de cocaína gerou fluxos financeiros ilícitos de entrada entre US$1,1 e US$8,6 bilhões anualmente (2015 – 2019). No Peru, os fluxos financeiros ilícitos de entrada provenientes do tráfico de cocaína foram estimados em uma média anual de US$1.482 milhões entre 2015 e 2017.

Esses fluxos financeiros corpulentos e as altas taxas de homicídio da região são fenômenos diretamente correlacionados. Em nossa leitura, entendemos que os mercados ilícitos prosperam nas franjas da sociedade e são alimentados por transações financeiras ilegais operadas por “firmas” criminosas que atuam não apenas com o objetivo de participar dos mercados de bens e serviços ilícitos, mas que fundamentalmente buscam dominar de forma monopolística esses mercados[4].

Nessa perspectiva, a violência criminal organizada é motivada pela busca de resultados financeiros, onde a violência é praticada com o fim de controlar territórios, nichos de mercado, coibir rivais e intimidar agentes públicos. O uso da violência nos negócios ilícitos movimentados pelas organizações criminosas é, portanto, fundamentalmente diferente do que é observado nos crimes ordinários. Como não há direitos de propriedade estabelecidos, ou qualquer tipo de regulação estatal nos mercados ilícitos nos quais as organizações criminosas atuam, constantes ciclos “armamentistas” e de conflitos violentos (para a garantia de controle de territórios, por exemplo) emergem e criam expirais de violência que impactam as taxas nacionais de homicídio.

Há fragmentação nos mercados de bens e serviços ilícitos

Por várias razões, derivadas da própria lógica econômica dos mercados de bens e serviços ilícitos, a violência se impõe como a forma básica de regulação do comportamento dos agentes que operam nas redes de negócios ilegais. Embora nos debates na imprensa e na política prevaleça quase sempre a imagem de que organizações criminosas são fortemente centralizadas e hierarquizadas, entendemos que os grandes mercados globais de commodities, como cocaína e o tráfico internacional de pessoas, entre outros, são operados por organizações relativamente pequenas, que, ao mesmo tempo que formam redes articuladas de comércio transnacional, apresentam diversas fragilidades no plano local em que lutam para defender suas posições de mercado.

Mercados ilícitos estão sujeitos a restrições muito diferentes das que moldam a competição das firmas nos mercados de bens e serviços legais. Restrições essas que limitam a capacidade das ORCRIMs de operar abertamente, expandir, planejar, reinvestir lucro e diminuir seus custos quando necessário. Outra forma de visualizar os limites impostos à escala das ORCRIMs envolve a análise dos custos de monitoramento a que estão sujeitas. Organizações que atuam nos negócios ilícitos precisam monitorar continuamente as atividades de seus membros e punir qualquer comportamento oportunista de seus colaboradores (desvio de mercadorias, conluio com rivais, desvios financeiros etc.). Esses custos de monitoramento aumentam mais do que proporcionalmente com o número de membros na organização, e, portanto, representam um limite bastante rigoroso para a escala de operação das ORCRIMs.

Além de monitorar internamente seus negócios, as ORCRIMs também estão sujeitas a interrupções de funcionamento pela cooperação de alguns de seus membros com a agências públicas de controle, e novamente esse risco aumenta mais do que proporcionalmente com o número de membros. Esses fatores combinados ajudam a explicar a tendência em direção à fragmentação dos mercados de bens e serviços ilícitos em vários monopólios locais, tanto no sentido geográfico quanto funcional[5].

Hora de passar a próxima pergunta: de que forma pequenas organizações fragmentadas em monopólios locais impulsionam grandes mercados globais? O conceito de convergência criminal é essencial para entender esse processo.

A convergência de ameaças criminosas[6] refere-se ao fenômeno em que ameaças tradicionais evoluíram e se fundiram, resultando em ondas de impacto que atingem os países de renda média e baixa e seus sistemas de justiça criminal. Este processo de convergência entre atividades ilícitas ocorre simultaneamente e se combina a dinâmicas nas quais a economia legal e a ilegal se entrelaçam, compartilhando serviços financeiros, sistemas de transporte de cargas, serviços de tecnologia, entre tantas outras fontes comuns de recursos. As fronteiras entre o lícito e o ilícito se diluem, criando zonas de difícil regulação. Essa dinâmica, que inclui ainda a corrupção de agentes públicos em larga escala, crimes cibernéticos e crescentes ligações com organizações terroristas, impacta significativamente a segurança regional e global.

Como o Estado pode reagir à expansão das atividades ilícitas e ao aumento da influência do crime organizado? É possível identificar duas estratégias principais adotadas pelas instituições de segurança e justiça criminal na tentativa de conter esses desafios.

A primeira abordagem concentra-se diretamente na organização criminosa: realiza investigações, coleta dados e monitora informações relativas à sua estrutura organizacional, divisão de tarefas, hierarquia e membros. Essa estratégia, adotada inicialmente nas ações contra a máfia, principalmente nos EUA, continua sendo um pilar fundamental nos procedimentos dos sistemas de justiça criminal ao redor do mundo.

A segunda estratégia representa uma inovação significativa nas ações de controle, que iniciam pelo mapeamento dos negócios ilícitos e suas externalidades negativas. Nessa perspectiva, identifica-se a atividade ilícita e, a partir dela, direciona-se às organizações responsáveis por sua execução ou que dela se beneficiam de alguma maneira.

Essa segunda estratégia lança luz sobre a necessidade de reorientar as investigações sobre os diferentes mercados de bens e serviços ilícitos, que operam à margem da lei e oferecem oportunidades às organizações criminosas. Embora as drogas ilícitas tenham grande importância entre as atividades ilícitas, a relação dos mercados de bens e serviços ilícitos se expande continuamente sempre em relação direta com a demanda, por exemplo, armas, contrabando e falsificação de produtos de tabaco, falsificação de documentos, lavagem e ocultação de ativos e em mais de uma dezena de nichos de negócios ilícitos que atendem a uma demanda distribuída globalmente.

Cada nicho de mercado ilícito possui sua própria dinâmica e oferece oportunidades que são capturadas por organizações criminosas que continuamente se conectam em redes descentralizadas, provocando um impacto sistêmico que repercute em toda a cadeia do comércio global.

As apreensões da Receita Federal do Brasil em 2023 ilustram bem esse ponto. O total das apreensões retidas no controle aduaneiro foi estimado em R$ 3,8 bilhões em mercadorias e em operações de combate ao contrabando durante apenas um ano. Na lista dos produtos apreendidos, em primeiro lugar estão os cigarros, com 22,7% do total das apreensões, eletroeletrônicos em segundo, com 16,82%, peças de vestuário (5,27%), bebidas alcoólicas (2,19%), entre outros. A Receita ainda armazena 2,5 milhões de aparelhos “TV Box”, que permitem o acesso livre às plataformas de streaming[7]

Os cigarros no centro das apreensões globais ilícitas

A World Customs Organization publicou em 2022 o relatório Enforcement and Compliance Illicit Trade Report que traz dados que também mostram a diversidade das atividades ilícitas no comércio mundial. O produto com maior número de apreensões globais são os cigarros (próximo a 160 mil apreensões), seguido por outros produtos de tabaco (70 mil apreensões) e álcool (30 mil apreensões). Na comparação da variação no número de apreensões entre 2022 e 2021, os maiores aumentos foram de casos com apreensão de metanfetamina (+20%), cocaína (+9%) e álcool (+10%).

Quando deslocamos o foco para o nível local, surgem novos eventos de atividades ilícitas como a extorsão de comerciantes e residentes, a exploração do mercado ilegal de imóveis e terras urbanas e rurais, o transporte irregular de passageiros, além de operações de ferro-velho e reciclagem ligadas à receptação de produtos furtados ou roubados. Essas atividades, embora menos conectadas às cadeias globais de produção e distribuição de bens e serviços ilícitos, representam domínios específicos de atuação das organizações criminosas locais no contexto brasileiro. No inventário de infortúnios humanos que estamos apresentando aqui é preciso considerar ainda os  mecanismos de “governança criminal”, como os “tribunais do crime”, que evidenciam um alto nível de sofisticação organizacional das ORCRIMs que oferecem serviços de mediação e coordenação nos negócios ilícitos.

Finalmente, é preciso considerar o papel central da corrupção dos agentes públicos no processo de expansão dos mercados ilícitos e das atividades criminais organizadas. Os melhores hubs para as atividades ilícitas, são encontrados em estados, regiões e localidades que oferecem a combinação entre boa infraestrutura administrativa e de serviços (rodovias, administração pública com alguma capacidade de gestão do território, serviços públicos), e mercados (concentração de população e negócios de diferentes tipos), mas que, no entanto, dispõem de instituições com fraca governança (falta de accountability, sistema de justiça deficiente, registros públicos de títulos e propriedades deficientes, corrupção policial e outros fenômenos semelhantes). Este ponto é particularmente importante para entender por que organizações criminosas prosperam em determinados contextos locais e não em outros.

Em nossa análise, buscamos avaliar as dificuldades enfrentadas pelos sistemas de justiça criminal domésticos em lidar com fenômenos, como o crime organizado e os mercados ilícitos de bens e serviços. Em nossa visão, no caso brasileiro, essa dificuldade está relacionada a um conjunto de práticas institucionais que priorizam a fragmentação das responsabilidades entre agências estatais que têm reconhecidas dificuldades de cooperação e ênfase em abordagens exclusivamente operacionais. A nota possível de otimismo e visão de futuro envolve a defesa de estratégias de abordagem integradas e coordenadas entre agências, muito fácil de falar, quase uma banalidade, mas ainda um enorme desafio institucional. Menos óbvio, essas abordagens precisam levar a sério a ameaça dos negócios ilícitos e superar a lógica setorial hoje predominante nos esforços domésticos e regionais de contenção do problema.   n


[1].
 A média da taxa de homicídios por 100.000 habitantes na década de 1990 era 71,4, em 2000 caiu para 50,95 e finalmente para 44,21 no início da presente década. Apesar dessa tendência de queda, a Colômbia não saiu do grupo dos 20 países mais violentos do mundo.  

[2].
A trajetória do Brasil é diferente. A taxa média de homicídios na década de 1990 era de 20,82; aumentando para 21,46, na década de 2000; para 22,31; atingindo 24,43 no início da atual década.

[3].
https://unctad.org/news/first-ever-official-data-illicit-financial-flows-now-available. Na ALAC México, Colômbia, Equador e Peru participam do estudo.

[4].
Cooper, R. e  Naylor, R. (2002). Wages of crime: black markets, illegal finance, and the underworld economy. Foreign Affairs, 81(5), 200. https://doi.org/10.2307/20033290. Outra

[5].
 Seguimos nesse ponto o argumento bastante influente no campo de estudos sobre o crime organizado apresentado por G. Fiorentini e S. Peltzman, Eds. (1995), “The Economics of Organized Crime”. Cambridge University Press.

[6].
 Matfess, H. e Miklaucic, M (2016). Beyond Convergence: World Without Order, Center for Complex Operations, National Defense University, Washington, DC.

[7].
O Estado de São Paulo, 17 de março de 2024. “Cigarro, bebida e aparelho de ‘gatonet’: como universidades usam apreensões da Receita na pesquisa” https://www.estadao.com.br/educacao/cigarro-bebida-e-aparelho-de-gatonet-como-universidades-usam-apreensoes-da-receita-na-pesquisa/


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