09 janeiro 2019

O Brasil da Transição Civilizada (2003) à Eleição Polarizada (2018). O Papel das Instituições nos Avanços e Retrocesso

É mais fácil ensinar um engenheiro a ser socialista do que um socialista a ser engenheiro”

Seymour Lipset

(Agrarian Socialism)[1]

 Introdução
 O Brasil foi a economia com a segunda maior taxa de crescimento do PIB, no período 1900-1987. Mas, a partir do início da década de 1980 até 2016, a expansão econômica se situou entre as mais baixas do mundo. Também na política o padrão de avanço virtuoso e recuo vicioso é visível. Uma transição presidencial reconhecidamente civilizada no início do milênio criou as condições necessárias à passagem de uma era de estabilização e reformismo econômico (FHC) para um período de aprofundamento e ampliação de políticas sociais (Lula). Entretanto, uma vez mais, o fantasma do retrocesso econômico e do impasse político se materializou e aquela transição civilizada de 2002 involuiu, em 2015 e 2016, para a maior recessão dos últimos 100 anos, no impeachment e na eleição polarizada de 2018.
Abundantes e recorrentes são os exemplos históricos dessa oscilação ciclotímica de um país que, ao aproximar-se de uma trajetória mais sólida de desenvolvimento, regride a um padrão de políticas econômicas insustentáveis e a um modelo político de extrema polarização. Se tomamos apenas o início e o fim de períodos longos, uma visão impressionista vai-se formando: o país avança, mas insiste em voltar atrás. É a síndrome do retrovisor.
Comparar – sob a ótica das instituições – essa trajetória de uma década e meia, bem como os dois anos que marcam o início e o fim desse período – 2003 e 2018 – pode lançar alguma luz sobre os sombrios enigmas de hoje.
O corporativismo e a deformação de instituições inclusivas em extrativas[2] 
Corporativismo tem sua origem nas corporações de ofício da Idade Média, que se destinavam a regulamentar as atividades dos artesãos por meio de restrições à entrada de novos profissionais e de assistência e proteção a seus membros.
No Brasil, como assinala Roberto da Matta, o termo tem uma conotação negativa, pois sendo “sinalizador de proteção”, reserva de mercado e privilégio, é um enredo incompatível com o esforço de viver, tendo a igualdade, o mérito e a eficiência como valores”. Nesse sentido, corporativismo nos remete ao conhecido “Você sabe com quem está falando?”
Historicamente, a Justiça do Trabalho – criada pela Constituição de 1934 – e a Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT), de 1943, que incorpora dispositivos anteriores, constituem a base do corporativismo sindical brasileiro. Esse resistiu, como assinala Mailson da Nóbrega, às inúmeras transformações sociais e econômicas ao longo de mais de 80 anos e hoje sobrevive como “o resquício mais conspícuo da era Vargas”.
O corporativismo da era Vargas resulta do surto industrial que surge com a crise de 1929 e traz no seu bojo a ascensão do operariado urbano como força social. Intimamente associado ao trabalhismo varguista, o corporativismo era também um reflexo nos trópicos do fascismo italiano, cuja Carta del Lavoro inspirou a nossa CLT.
Como versão local do corporativismo italiano, o trabalhismo de Vargas rejeitava o conflito social e insistia na cooperação entre trabalhadores e patrões, supervisionado pelo Estado. Assim, próximo ao fascismo, o autoritarismo do Estado Novo tinha como um de seus ideólogos Oliveira Viana que, em seu livro Problemas de política objetiva, investia contra a democracia representativa. “Hoje, o centro de gravidade da vida política não é mais o Parlamento, e sim o Gabinete.”   
Apesar dessas afinidades ideológicas, como bem lembra José Murilo de Carvalho, “não se tratava de fascismo ou nazismo, que recorriam a grandes mobilizações de massa. O Estado Novo não queria saber de povo nas ruas… Era um regime mais próximo do salazarismo português, que misturava repressão com paternalismo.” Uma dimensão relevante da Revolução de 30, associada à industrialização e à urbanização foi certa inflexão naquilo que ele próprio chamou de “o pecado original da República” – a ausência do povo. O propósito político da Justiça do Trabalho e da CLT era tanto promover a proteção aos trabalhadores como  cercear a organização coletiva autônoma dos trabalhadores.
Essa última característica moldou o papel dos sindicatos brasileiros. Considerados órgãos do Estado pela própria Constituição de 1934, essas entidades, ao serem oficializadas, assumiam o monopólio da representação da classe (a chamada unidade sindical) e, assim, deixavam de ser veículos de luta do operariado para se transformar em instrumentos políticos do Estado. Os sindicatos – apoiados pelo imposto sindical (1941), pago por todos os trabalhadores do país, sindicalizados ou não – tinham como dirigentes os “pelegos”, ligados ao Ministério do Trabalho e, portanto, destituídos de qualquer autonomia.
Esse marco regulatório refletia, por um lado, a vocação autoritária do trabalhismo que moldou o corporativismo dos anos 30 e 40, mas, ao mesmo tempo, representava visível avanço nas conquistas sociais de uma classe operária urbana até então à margem do processo político. Mestre em equilibrar antagonismos, Vargas ampliou direitos e garantias da classe trabalhadora, tais como: carteira de trabalho, previdência social, férias anuais, jornada de oito horas de trabalho e Juntas de Conciliação e Julgamento para arbitrar conflitos trabalhistas.
Além desses avanços concretos na política trabalhista, o serviço público foi objeto de racionalização, com o recrutamento de pessoal com base em concursos, criação de planos de carreiras, iniciativas essas a cargo do Departamento Administrativo do Serviço Público (Dasp), criado em 1938 como órgão dotado de importantes funções e ligado diretamente à Presidência da República.
Em contraste com a política clientelista da Primeira República, Vargas representou um caso raro de um regime ditatorial que adotou critérios weberianos para institucionalizar a gestão da máquina estatal. Com muita propriedade, Boris Fausto lembra que “o Estado Novo procurou reformular a administração pública, transformando-a em um agente de modernização. Buscou-se criar uma elite burocrática, desvinculada da política partidária e que se identificasse com os princípios do regime. Devotada apenas aos interesses nacionais, essa elite deveria introduzir critérios de eficiência, economia e racionalidade.”
Se o saldo desse trabalhismo da era Vargas foi evidentemente positivo para a sociedade, sua sobrevivência, por mais de oito décadas, alienada das grandes transformações no país e no mundo, constituiu o grande equívoco do corporativismo no Brasil.
Esse equívoco gerou inúmeras distorções, apontadas por Mailson da Nóbrega, sendo duas delas particularmente representativas de nossa grave deformação corporativa: (i) o exagerado número de sindicatos autorizados a funcionar no país  (cerca de 16 mil), em contraste com 775 no Canadá, 168 no Reino Unido, 164 na Dinamarca, 138 na Nova Zelândia e 59 na Suécia; e (ii) nossa condição de campeão mundial de causas trabalhistas (4 milhões, em comparação com 3 mil no Japão), em grande medida resultantes de uma Justiça do Trabalho que, criada para mediar conflito entre o capital e o trabalho, transformou-se na sua maior fonte.    
Essa deformação corporativista responde em grande medida pelo desvirtuamento de muitas de nossas instituições que, gestadas nos anos 1930 e 1940 com vocação “inclusiva”,  foram adquirindo o perfil de instituições “extrativas”, na conceituação de Acemoglu e Robinson.
O presente texto interpreta essa deformação de nossas instituições como a fonte geradora de muitos dos graves problemas do Brasil de hoje. Assim, cabe indagar onde se situariam as origens do desvirtuamento de nossas instituições e quais seriam suas causas mais profundas.
O Brasil de hoje e o papel das instituições
Na perspectiva de Raymundo Faoro, o comportamento do estamento burocrático é responsável, em grande medida, pelo patrimonialismo e, nesse sentido, explica muito de nossa história. Diferentemente do determinismo marxista entre estrutura econômica e superestrutura politica, Faoro atribui ampla autonomia ao Estado e daí, ao estamento burocrático, embora esse também seja, em alguma medida, expressão dos “donos do poder”. Algumas das ideias de Faoro são retomadas por Guerreiro Ramos, que, entretanto, direciona a análise para o papel da burocracia e das instituições em geral na promoção do desenvolvimento. Analisa mais a fundo a relação entre o estilo do sistema político e o tipo de burocracia.
Nesse contexto, para Guerreiro, a poliarquia prevalecente em países da Europa Ocidental e nos EUA, tende a estimular burocracias modernizantes, conforme o modelo weberiano de administração racional-legal. Dentro dessa mesma linha, na poliarquia limitada (Brasil), embora a burocracia não exiba aquele padrão, demonstra perfil modernizador, mas apenas em períodos restritos. Isso ocorre porque o grupo no poder o exerce em moldes monopolísticos e, assim, se apoia ora em um, ora em outro grupo de pressão. Essa ciclotimia explica tanto o recurso às “derrubadas”, por meio de golpes de Estado e intervenções militares (Brasil pós-Revolução de 1930 até 1985), como a recorrente  eliminação da alternância no poder pelo voto  (populismo recente na América Latina e no Brasil).
Assim, o jurista (Faoro) e o sociólogo (Guerreiro) valorizam o papel das instituições. O primeiro com um olhar cético voltado para o estamento burocrático como veículo do patrimonialismo. O segundo com um foco no desenvolvimento e voltado para o papel construtivo de burocracias modernizantes.
Essas duas visões convergem, em grande medida, para o modelo institucionalista – inspirado em Douglas North – presente, com uma perspectiva mais ampla, no livro Why Nations Fail, de Daron Acemoglu e James Robinson. Esse modelo institucionalista pode lançar luzes para compreender o Brasil de hoje. A diferença entre países resulta da diferença entre suas instituições – essa é a mensagem central do livro.
Os autores traçam um paralelo entre a trajetória dos países hispano-americanos e dos Estados Unidos que não têm como diferenciação os fatores convencionais: geografia (clima ou solo); economia (recursos naturais); política (monarquia versus república); religião (protestantes versus católicos); cultura (ética do trabalho versus ética do fidalgo).
O fator diferenciador fundamental reside no perfil das instituições. A consequência natural foi a emergência de instituições inclusivas nos Estados Unidos, em contraste com instituições extrativas na América Latina. Nas primeiras vigoravam contratos que definiam os papéis da Virginia Company e dos colonos. A segunda se ancorava na instituição da encomienda – o indígena era obrigado a pagar impostos e trabalho ao encomendero, que em troca tinha o dever de converter os nativos ao cristianismo.
A distinção fundamental entre os dois modelos não residia na economia, pois a Coroa espanhola se tornou a mais rica e afluente da Europa, mas no perfil das instituições. Os exemplos cobrem nações de todos os continentes – Argentina, México, Barbados, Zimbábue, Coreia do Norte, em contraste com Estados Unidos, Grã-Bretanha, Botswana e Coreia do Sul.
Episódios ilustrativos incluem também personalidades emblemáticas de seus países – o contraste entre a riqueza de Bill Gates e de Carlos Slim. O primeiro, criador de sistemas informáticos e de uma das empresas mais avançadas tecnologicamente do mundo. O segundo fez sua fortuna graças a conexões políticas, à especulação na Bolsa de Valores mexicana e com a aquisição da Telmex. A régua que diferencia instituições inclusivas e extrativas é ilustrada com um exemplo bem didático: o hiato entre as instituições na Coreia do Norte e na Coreia do Sul – países que até no final da Guerra da Coreia, em 1953, exibiam homogeneidade em termos de geografia, etnia, economia e cultura.
Ao contrário do que pode parecer, Why Nations Fail não prega um sermão ultraliberal. Instituições públicas inclusivas e um aparelho estatal coerente com esse perfil institucional são fundamentais para construir um desenvolvimento sustentável e afastar o fracasso de uma nação. Não há receita de Estado mínimo.
O argumento central do presente artigo é que na década de 1930, o Brasil construiu um conjunto de instituições que moldaram muito da trajetória do país. Enquanto naquela década eram instituições inclusivas, nas décadas subsequentes –, mas sobretudo a partir dos anos 1980 e, com ênfase nos últimos 15 anos – foram mudando de perfil e se deformaram  em instituições extrativas.
Muitas das razões para essa deformação estão solidamente presentes em nosso país – gigantismo do Estado, privilégios corporativos, capitalismo de compadrio, privatização do público, superproteção tarifária e fiscal a empresas, deformação da justiça trabalhista, excessiva constitucionalização temática, inflação de direitos sem amparo econômico para assegurá-los, irresponsabilidade fiscal.
As instituições que emergiram da Revolução de 30, do Estado Novo e do segundo período Vargas (1951-1954), constituíram os alicerces do moderno Estado brasileiro. Tendo como referência o modelo binário de Acemoglu e Robinson – instituições inclusivas versus instituições extrativas – o presente texto parte da premissa de que os alicerces então assentados por Vargas eram do tipo inclusivo.
Na esfera política, a Revolução de 30 foi produto da convergência de duas dissidências. No âmbito das oligarquias – o esgotamento da política de governadores, com a aliança entre Minas e Rio Grande do Sul. No seio do Exército – a emergência do tenentismo como força político-militar, em contraposição à hegemonia dos generais. Com essa base de sustentação – evidentemente frágil como ficou visível com a Revolução Constitucionalista de 32 –, Vargas construiu uma complexa engenharia política que combinou cooptação do tenentismo moderado com o apoio de setores da oligarquia.
A criação de instituições foi crucial nessa engenharia política, como se tornou evidente com a “estabilidade autoritária” da era Vargas, que culminou na brutal ditadura do Estado Novo.
Vargas rompeu com a engrenagem política oligárquica
Apesar desse quadro de autoritarismo político e violações de direitos humanos, o período Vargas inaugurou instituições que abriram caminho para a ruptura com a engrenagem política oligárquica e uma maior distribuição de poder para as classes médias, representadas pela industrialização na economia e pelo tenentismo na política. Na classificação de Acemoglu e Robinson, Vargas terá criado instituições inclusivas.
Mas, um salto de cerca de seis décadas e meia, do final do segundo período de Getúlio até os dias de hoje, revela que, embora fortalecidas e dotadas de muito mais ampla participação popular, as instituições-síntese da democracia – Legislativo, Executivo e Judiciário – estão sob teste de estresse em consequência de profunda e generalizada perda de legitimidade junto à população. A classe política desacreditada gera um clima de indignação popular, de divisionismo social e de polarização política. Coincidente com o atual período pré-eleitoral, a consequência concreta parece ser a emergência de escolhas políticas pautadas por extremos situados à esquerda e à direita do espectro ideológico. O embate entre os dois lados ganha agressividade.
Se estivéssemos vivendo cinco décadas ou mais atrás, teríamos mais um episódio de regresso dos militares ao poder. Regresso ostensivo, como no  regime militar de 64,  ou latente, como nos diversos episódios que pontuam nossa história política: Estado Novo de 1937; destituição forçada de Vargas em 1945; segundo período de Vargas, nos anos anteriores ao suicídio do presidente em 1954; golpe legalista de Lott para assegurar a posse de JK; embate entre militares contra e a favor de João Goulart assumir a presidência em 1963; e veto à posse do vice-presidente Pedro Aleixo, por ocasião do afastamento de Costa e Silva, em 1979.
No passado, ameaças mais graves de revolta, rebelião, separatismo ou iminência de revolução tinham como resposta a intervenção de diferentes instituições. No Império, o poder moderador de D. Pedro II desempenhou esse papel autoritário de sufocar levantes populares. Na Primeira República, os conchavos oligárquicos asseguraram uma duradoura estabilidade política conservadora e civil, com exceção de alguns períodos de Estado de Sítio (Arthur Bernardes). No Brasil pós-Revolução de 30, os militares desempenharam esse papel de garantes da ordem.
Os estudiosos do envolvimento dos militares na política brasileira – Alfred Stepan, José Murilo de Carvalho, entre muitos outros – tendem a ressaltar que, historicamente, a atuação política da corporação se deu em resposta a pressões da sociedade – sobretudo classes médias. A resultante dessas pressões pode ser simbolizada na síndrome golpismo versus legalismo. Assim, em alguns momentos de nossa história, as Forças Armadas atuaram como agentes de ruptura institucional (Revolução de 30 e Regime Militar de 64), em outros, como forças legalistas (ultimato para queda de  Getúlio em 45, “golpe preventivo” do Marechal Lott em 10 de novembro de 1955, em favor da legalidade e da posse de JK, garantia da posse de Goulart em 1961, embora em um regime parlamentarista).
O Brasil de hoje reflete o legado de grandes inflexões na trajetória recente do país. Fim do regime militar; Constituição de 1988; êxito do reformismo econômico induzido pelo Plano Real e início de políticas sociais não assistenciais protagonizadas por FHC; conquistas relevantes associadas à ampliação de políticas sociais e ao boom das commodities responsável pelo elevado crescimento do PIB induzido por Lula no primeiro mandato; descontrole fiscal, nova matriz macroeconômica com resultados frustrantes, gestão caótica de empresas estatais (sobretudo Petrobras e Eletrobras), retrocesso comprometedor em matéria regulatória (politização das agências reguladoras), uso nefasto e irregular do BNDES como instrumento de política industrial em favor de campeões nacionais, política externa distanciada do interesse nacional tanto no front comercial (ausência de acordos de livre comércio), no plano regional (excessiva aproximação com Chávez, Morales e Rafael Correa), corrupção sistêmica e caos econômico potencial promovido pelo segundo mandato de Lula e pelo governo Dilma; estelionato eleitoral, descrédito político, oposição do PT à política de ajustamento promovida por Joaquim Levy no segundo mandato de Dilma; impeachment e  posse de Temer, expectativas de reversão da estagnação econômica no bojo da aprovação de reformas – Teto de Gastos e Reforma Trabalhista –, da inflexão positiva na gestão das estatais – recuperação da Petrobras, avanços na privatização da Eletrobrás, anúncios de avanços na fusão Embraer-Boeing (em resposta à associação Bombardier-Airbus) no início do mandato Temer; frustração política e econômica após a divulgação de acusações sérias de envolvimento com corrupção (JBS) por parte do presidente Temer, estagnação das reformas (Previdência Social); clima pré-eleitoral marcado por desempenho modesto de candidatos de centro (Alckmim, Marina, Amoedo e Álvaro Dias) e hegemonia de candidatos nos extremos do espectro político ( Bolsonaro – PSL e Haddad – PT); eleição de Bolsonaro.
Considerações finais
Ao longo de pouco mais de sete décadas (1945-2018), muitas instituições brasileiras deixaram de ser inclusivas e se transformaram em extrativas, na concepção de Daron Acemoglu e James Robinson.
A crítica presente neste artigo tomou também como referência teórica a categoria de estamento burocrático desenvolvida em Os Donos do Poder, por Raymundo Faoro, bem como a análise do papel da burocracia e das instituições, presente no livro de Guerreiro Ramos, Administração e Estratégia do Desenvolvimento.
Embora nossas instituições tenham tido um perfil inclusivo quando de sua criação – Ministério do Trabalho, Justiça Trabalhista, sindicatos, institutos de previdência social e empresas estatais – ou de sua consolidação como força política – Forças Armadas – muitas delas se transformaram em extrativas. Por que e como isso aconteceu? Boa parte da resposta reside no desvirtuamento das nossas instituições, sobretudo nos últimos 15 anos. Foram mudando de perfil e se transformaram em instituições extrativas.
Muitas das razões para essa deformação são vícios inerentes ao patrimonialismo estudado por Raymundo Faoro, ao papel apenas raramente modernizante apontado por Guerreiro Ramos, à incapacidade de instituições extrativas aproveitarem momentos históricos especiais para marcarem um ponto de inflexão e se transformarem em instituições inclusivas.
Uma listagem – mesmo que apenas ilustrativa – desses nossos vícios é longa: profunda desigualdade social; sistema educacional com enormes deficiências e vícios estruturais;  gigantismo do Estado; privilégios corporativos; capitalismo de compadrio; privatização do público; superproteção empresarial sob a forma de política tarifária, fiscal ou monetária; deformação da justiça trabalhista; excessiva constitucionalização temática; inflação de direitos sem amparo econômico para assegurá-los; presidencialismo de coalizão transformado em cooptação; aparelhamento do Estado; corrupção em estatais e órgãos públicos; e aguda  irresponsabilidade fiscal.
Esse desvirtuamento de nossas instituições está associado também ao chamado efeito voracidade, estudado por Philip Lane e Aaron Tornell, que resulta de duas características encontradas com frequência e interagindo em alguns países em desenvolvimento: (i) poucas instituições sólidas; e (ii) múltiplos e poderosos grupos de interesse na sociedade civil.
Dado o efeito voracidade, o Estado redistribui, mais que proporcionalmente para determinados grupos, a maior parte da riqueza nacional e os benefícios resultantes de choques econômicos, como o boom de commodities.
O citado artigo substitui o ator econômico central da visão neoclássica – a empresa – por múltiplos e poderosos grupos de pressão que funcionam com base em um novo conceito – o efeito voracidade.  Este é responsável por aumentos mais que proporcionais na redistribuição de benefícios fiscais que reduzem a taxa de crescimento. A saída desse ciclo vicioso se abre com a diluição da concentração de poder dos grupos de interesse mais influentes, o que conduz ao aumento na taxa de crescimento do PIB e a respostas menos pró-cíclicas a choques externos.
Quais as principais conclusões sobre o papel das instituições brasileiras no processo político e econômico durante os últimos 15 anos, com base nos referenciais utilizados ao longo deste texto – Raymundo Faoro, Guerreiro Ramos, Acemoglu, Robinson e Lane e Tornell?
As instituições contribuíram para profundas transformações no país – de perfil inclusivo e extrativo – a partir da década de 1930. Durante a segunda metade da década de 1990 e os primeiros anos 2000, com o saneamento da economia e a modernização do Estado, ganharam força as instituições inclusivas. Entretanto, a partir de 2008 e, mais claramente na década de 2010, com o governo Dilma, o extrativismo prevalece em nossas instituições. O corolário dessa involução é que, hoje, o país volta a viver uma conjuntura política, econômica e social que, embora guardando semelhanças com seu início (2002), se apresenta visivelmente mais sombria.
Naquele ano eleitoral de 2002, o “risco Lula” ameaçava os fundamentos de uma economia saneada pelo Plano Real, mas abalada por forte desvalorização cambial e pelo overshooting da taxa de juros. Em 2018, de novo temos o efeito eleitoral desestabilizador sobre uma economia que superou a  recessão  de mais de 7% do PIB, mas  retoma com muita lentidão o crescimento e não avança na reforma mais relevante (Previdência) para estancar o  descontrole fiscal exponencial.
Além desse paralelo econômico entre 2002 e 2018, o quadro político produz instabilidade e indefinição comparáveis ao contexto do início do milênio. Mas, agregam uma taxa de indignação com a classe política talvez inédita em nossa história. A falta de legitimidade do atual governo, a participação direta do atual presidente em escândalos investigados na Lava Jato e o envolvimento das principais figuras dos grandes partidos políticos em processos de corrupção explicam o desencanto e a indignação de uma população que não se sente representada pelo Congresso.
Ao longo dessa década e meia o país avançou muito, recuou demasiado e surge hoje mais dividido, mais desigual, mais polarizado. Os exemplos em ambas as direções são claros. Os avanços virtuosos são inegáveis: transição política FHC-Lula altamente civilizada; preservação do modelo econômico de FHC ao longo do primeiro mandato de Lula; elevado crescimento médio anual do PIB de 4,5% no período 2004-2008; retirada de  30 a 40 milhões de pessoas da linha de pobreza; surgimento de uma nova classe média constituída por  mais de metade da população total (51%); e ampla projeção internacional do país dotado de  uma das maiores economias emergentes (8º PIB do mundo) e um promissor membro do agrupamento Brics.
Isso foi verdadeiro em parte dos últimos 15 anos. Mas, as virtudes se foram dissipando a partir da metade final do segundo mandato de Lula e sofreram robusta inflexão para baixo no período Dilma. O tripé macroeconômico foi abandonado, o equilíbrio fiscal cedeu lugar ao descontrole das contas públicas, uma  nova matriz macroeconômica introduziu uma política industrial em defesa de supostos campeões nacionais, o BNDES foi instrumentalizado para encobrir deficits e beneficiar um capitalismo de compadrio, a gestão das estatais foi vítima do congelamentos de preços da gasolina (Petrobras), das enormes distorções produzidas por  redução arbitrária das tarifas de energia elétrica (sistema Eletrobras) e a política monetária sofreu com o voluntarismo da queda artificial da taxa básica de juros, que  logo voltou ao nível inicial.
No plano da política externa, foi gritante o contraste entre Dilma e seus antecessores FHC e Lula. Fernando Henrique conquistou a credibilidade externa do país. Lula – apesar dos muitos equívocos do segundo mandato, sobretudo na América do Sul – soube surfar no boom das commodities e projetou o país internacionalmente. Dilma não fez nem uma coisa nem outra. Sua política externa teve as marcas da apatia, da paralisia, das opções irrefletidas e dos caminhos equivocados.
Assim, apesar dos avanços econômicos promovidos por Lula no primeiro mandato e no início do segundo – em grande medida derivados da estabilização inaugurada com o Plano Real e das demais reformas implantadas por FHC  –,  o Brasil  dos anos Dilma foi um marcante retrocesso de política econômica, embora não espelhados nos índices por trêfegos malabarismos fiscais e monetários, conhecidos como pedaladas.
O resultado dessa trajetória com começo virtuoso, mas final vicioso, é, hoje, um país politicamente  fragmentado, uma economia ameaçada de reincidir na recessão de mais de 7% dos anos 2015 e 2016,  e um cenário  potencialmente descontrolado para as contas públicas, com a explosão dos deficits da previdência e os exagerados reajustes do funcionalismo público, lamentavelmente exemplificados pela recente aprovação de reajuste salarial de mais de 16% para o Judiciário.
Os personagens de ontem e os de hoje se assemelham. Um olhar sobre o Brasil de 2002 e de 2018 permite visualizar muitas semelhanças, não só de personagens (Lula/Haddad, Serra/Alckmim), mas também de situações – o enigma Lula no início dos anos 1990, a esfinge Bolsonaro nos dias de hoje. A instabilidade política gerada em 2002 pelo “efeito Lula” provocou a fuga de capitais, a ameaça de volta da inflação, o overshooting do dólar à marca recorde de 4 reais.
Cerca de 15 anos mais tarde, o país vive um quadro de fragmentação dos partidos políticos, de rejeição popular à classe política, de louvável – não obstante também desestabilizadora – cruzada ética contra a corrupção (Mensalão, Petrolão, Lava Jato).
Esses movimentos se dão num contexto de visível guinada conservadora que abre caminho para a recuperação e o crescimento na economia, mas levanta suspeitas de potencial retrocesso na política.
A geografia distanciou o Brasil do teatro bélico da II Guerra Mundial, dos confrontos armados da Guerra Fria, dos atentados derivados dos fundamentalismos religiosos. Entretanto, não é mais capaz, nos dias de hoje, de blindar o país dos ventos que generalizam a crise de representatividade política, a emergência de democracias iliberais e os rumos de uma desconhecida desglobalização.
É diante desse mundo lá fora que se insere, aqui dentro, um preocupante cenário. Com o resultado eleitoral ficou para trás a inquietante regressão a um quadro de instabilidade, muito mais ameaçadora do que no passado. Instabilidade provocada não mais pela novidade Lula de 2002, mas pelo perigo da reedição, em 2019, de um  PT sem a bandeira ética do passado, sem o boom das commodities, mas com o ressentimento do impeachment e da polarização eleitoral. Se essas ameaças foram desfeitas, uma nova inquietação surge, com o perfil de um modelo político que, ao se distanciar do presidencialismo de coalizão, não se aproximou ainda de um claro substituto.
Apesar dessas inquietações, dois fenômenos mantêm acesa a chama da esperança.
O país sobreviveu ao impeachment de Dilma, à maior recessão econômica em 100 anos, à louvável mas desestabilizadora cruzada ética da Lava Jato, ao julgamento pelo Congresso de dois graves processos de condenação de Temer e à prisão de Lula – o líder político com inquestionável supremacia eleitoral. Essa tempestade perfeita ocorreu em um quadro de normalidade institucional, liberdade de imprensa e vigência do Estado de Direito. A solidez institucional foi o pilar dessa sobrevivência democrática.  Isso não é pouco.
A ameaçadora subida do primeiro partido de esquerda ao poder uma década e meia atrás teve como desfecho a transição civilizada de FHC a Lula. Hoje, a indignação popular e a divisão sem paralelo da sociedade conduziram ao grave surto de polarização política. Entretanto, essa não fechou as portas para o respeito à vontade popular e, quem sabe, a emergência de um clima de recuperação e prosperidade econômica essencial à paz social e à democracia.
Brasília, 3 de dezembro de 2018.
[1]
Exemplo de resistência ao aparelhamento político, em 1944, na  experiência de socialismo agrário na província de  Saskatchevan, no Canadá. Defensor de um serviço social isento criticava diretriz partidária destinada a substituir competência profissional (engenheiro) por fidelidade partidária (socialista). S.M.Lipset,  Agrarian Socialism. Citado por Guerreiro Ramos em Administração e Estratégia do Desenvolvimento. Fundação Getulio Vargas. Rio de Janeiro. 1966. P.260.
[2]
Instituições inclusivas
asseguram direitos de propriedade e oportunidades econômicas não só para a elite, mas para um amplo espectro multissetorial da sociedade. Instituições extrativas defendem apenas grupos de interesse localizados, com exclusão de benefícios para o conjunto da sociedade e, assim, não criam incentivos necessários para poupar, investir e inovar. (Why Nations Fail. Daron Acemoglu & James A. Robinson).

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