O Brasil e a OCDE: um longo caminho
O Brasil, junto com mais cinco países, recebeu resposta positiva do diretor-geral da Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) ao pedido formulado em 2017 de ingresso na organização, com a informação de que cada um deles, deverá concordar com os termos, condições e processos para a adesão. No mesmo dia, o Itamaraty preparou resposta assinada pelo presidente Bolsonaro, notando que, sem qualquer hesitação, poderia garantir que o Brasil está pronto para iniciar o processo de adesão à OCDE. Na carta, o presidente afirma que “o Brasil está alinhado às prioridades dos países-membros no tocante ao comércio e investimento, à governança política e nos esforços efetivos para a proteção ao meio ambiente e ação positiva na mudança de clima”.
É importante entender como se desenrolará todo o processo. Depois de quatro anos, superada a resistência dos EUA em permitir o aumento dos atuais 38 membros, começará longo processo de negociação. Será preparado roteiro pela OCDE refletindo os avanços nos últimos quatro anos e serão criados 20 comitês para analisar a consistência das visões, das políticas e das ações em relação à regulamentação e aos princípios e às prioridades da organização. Não se trata de uma negociação, no sentido de que cada lado cede um pouco para se conseguir um consenso. Nas tratativas, os países-membros examinarão como os países que demandam o ingresso se adaptaram ou se adaptarão às regras existentes na organização. Em outras palavras, a OCDE não se ajustará aos países, mas os países terão de se adaptar à OCDE, com prazos para ajustes e exceções definidas de comum acordo. Tudo isso, sem prazo para terminar. A palavra final será dos países membros, que decidirão pela adesão por unanimidade.
A crise internacional desencadeada pela invasão da Ucrânia pela Rússia poderá ter impacto sobre essas negociações, não só pelas incertezas e imprevisibilidade do cenário internacional, mas também pela atitude do governo brasileiro no tocante ao desenvolvimento e à evolução desses acontecimentos.
No início dos anos 90, por iniciativa do Itamaraty, conjuntamente com outros órgãos governamentais e instituições privadas, o Brasil partiu acertadamente para uma aproximação gradual com a OCDE.
O Brasil nunca havia procurado uma adesão formal à OCDE, que dependeria de reformas e da defesa de interesses nacionais à luz do conjunto de regras da organização. A estratégia inicial de aproximação visou à participação nos trabalhos da OCDE como mais um instrumento para apoiar o desenvolvimento do País: modernizar a economia, fortalecer os mecanismos de regulação, aprimorar as políticas públicas e promover reformas estruturais e institucionais. O nosso engajamento na OCDE serviria para enriquecer os processos de reflexão e de formulação de políticas. Permitiria colher lições de experiências de 34 países que, em conjunto, somam cerca da metade da corrente de comércio do Brasil, a maioria esmagadora dos investimentos diretos estrangeiros no País, e da capacitação dos nossos cientistas e engenheiros em pesquisa, doutorado e pós-doutorado no exterior.
Em contraste com outros organismos econômicos (como Bird, FMI, OIT e OMC), a OCDE tem um escopo temático mais abrangente. Reúne capacidade para integrar diferentes perspectivas. Atua em várias frentes do G20, tais como: monitorar medidas restritivas do comércio e dos investimentos internacionais; combater a corrupção e outros ilícitos transnacionais; aprimorar a governança corporativa e a responsabilidade social das empresas; revisitar as regras internacionais de tributação contra a erosão fiscal; compreender as relações entre emprego e comércio e o papel das cadeias globais de valor; identificar políticas e reformas estruturais para revigorar o crescimento de cada país de modo sustentado e equilibrado.
Comunidade internacional defende que OCDE corrija deficiências
O reconhecimento do papel da OCDE na construção da ordem econômica internacional não pode ser passivo, mas ativo e crítico. Deveria estimular a organização a reconciliar interesses e objetivos de países desenvolvidos e em desenvolvimento – uma missão implícita nos mandatos que lhe atribui o G20. Cabe ao Brasil, membro desse grupo e tradicional advogado do desenvolvimento, ser um dos líderes nesse processo. Como outras organizações econômicas internacionais, a OCDE não logrou antecipar a crise financeira internacional iniciada em 2008 nos EUA, tampouco denunciar convincentemente desequilíbrios – mesmo entre países membros. Ao Brasil e à comunidade internacional interessa que a OCDE corrija deficiências em análises e prescrições, feitas individual ou coletivamente, para países desenvolvidos e em desenvolvimento.
A OCDE nos últimos anos procurou uma aproximação política com os países do Brics, visando a sua eventual integração. As conversas com a Rússia foram suspensas em 2014 quando da anexação da Crimeia. Da integração dos países do Brics dependerão não só o alcance e a credibilidade dos seus trabalhos, mas também a superação de seu déficit de representatividade. São essenciais todas essas condições para que a OCDE continue a desempenhar papel influente e global. Por essa razão, a OCDE já vem incluindo os Brics sistematicamente em todos os seus principais estudos e relatórios. Ademais, faculta a estes participar de virtualmente todos os 200 comitês e organismos da OCDE, dedicados a distintos setores e temas.
De sua parte, o Brasil, como outros Brics, participa, em diferentes modalidades, desses comitês e organismos. Essa presença é, porém, ainda discreta, sem que o País exerça a influência correspondente ao seu peso internacional dentro da OCDE, exceto em alguns poucos foros – como, por exemplo, o encarregado do programa internacional de testes de educação (Pisa).
Tanto diante da internacionalização da economia, como para a consecução dos objetivos de desenvolvimento do País, são três as vantagens para o Brasil numa eventual adesão à OCDE:
1.
comparar políticas econômicas e públicas aplicadas por países, muitos dos quais mais desenvolvidos, e aperfeiçoarmos práticas, por exemplo, em matéria de eficiência de políticas econômicas em prol do crescimento, de desenvolvimento da capacitação em C&T e da inovação industrial, de aprimoramento das políticas nas áreas de educação, saúde e inclusão social em gera;
2.
influenciar, com base em nossa experiência e nossos interesses, inclusive como País em desenvolvimento, a concepção de estatísticas internacionais, bem como a identificação e a difusão de “boas práticas” de políticas econômicas públicas;
3.
participar ativamente – e não reativamente – da definição de parâmetros e regras internacionais que, inicialmente aplicadas pelos países-membros, acabam tornando-se elementos centrais em negociações multilaterais, (inter-)regionais e mesmo bilaterais, por exemplo nas áreas de tributação, comércio, investimentos, agricultura, finanças (inclusive créditos e garantias à exportação), propriedade intelectual, energia e mudança do clima.
O Brasil, assim, nos últimos governos, tem demonstrado seu compromisso em trabalhar em estreita colaboração com a OCDE. Além de participar de mais de 30 comitês (o primeiro – do aço – a partir de 1994, quando como subsecretário econômico do Itamaraty, tive de convencer muita gente contra), o País já é parte de 103, dos atuais 251 instrumentos da OCDE. O processo, contudo, não será fácil porque vai além das afirmações positivas mencionadas na carta de Bolsonaro.
OCDE reconhece que o Brasil vem introduzindo reformas
O Brasil tem a nona pior performance em termos de práticas regulatórias e de liberalização no setor de serviços entre 50 países, no “Índice de restrições no comércio de serviços (SRTI, em Inglês)” de 2021, publicado pela OCDE. Esse fato tem importância no contexto atual, em que o Brasil, em breve, começará a negociação para aderir à entidade que recomenda liberalização comercial como um de seus pilares. Os índices de restrições em serviços no Brasil diminuíram ligeiramente em relação a 2020. O Brasil ficou em 41ª posição entre 50 agora, comparado a 40ª entre 48 países no ano anterior. O nível de restrição no Brasil, contudo, continua acima da média da OCDE e é relativamente alto em comparação a todos os países da amostra, conforme a entidade.
Segundo informação da OCDE, o resultado de 2021 se deve, em parte, às regulamentações de toda a economia, incluindo a necessidade de aprovação específica do governo federal para estabelecer uma filial estrangeira no país, testes do mercado de trabalho que restringem a circulação de pessoas e a exigência de que, pelo menos, dois terços da força de trabalho de uma empresa brasileira seja composta de nacionais. As principais restrições são aplicadas a setores-chave de serviços estratégicos, como serviços de correio, bancos comerciais e filmes. Foi ressaltado que a admissão de participantes estrangeiros no setor bancário está sujeita à aprovação prévia das autoridades brasileiras com base em acordos internacionais, reciprocidade ou interesse nacional, e a prestação de serviços bancários transfronteiriços não é permitida. No setor de serviços de correio, enquanto serviços de entrega expressa operam de forma de livre competição, os serviços transfronteiriços sofrem com a ausência de processamento aduaneiro antes da chegada. O informe da OCDE aponta também a existência de cotas de filmes e conteúdo doméstico no setor de cinema.
A OCDE reconhece que o Brasil vem introduzindo reformas nos últimos anos, contribuindo para facilitar as condições de comércio e investimento em diversos setores, como a que ocorreu em 2021, com a reforma na organização do Banco Central do Brasil, que se tornou autônomo. A OCDE estima que se o Brasil implementasse reformas que reduzissem a distância dos países com melhor desempenho, em cada setor, os custos de importação de serviços no País poderiam ser reduzidos entre 11% e 26% – mais do que na média mundial. O ambiente regulatório global em serviços mostrou sinais de liberalização em 2021. Os países com melhor performance em termos de práticas regulatórias e de liberalização no ano inclui República Checa, Japão e Chile. Na outra ponta, a Índia e a Rússia estão em pior posição que o Brasil.
Carta de Bolsonaro não faz referência a ações anticorrupção
Para mostrar as contradições e dificuldades que terão de ser enfrentados nos entendimentos, vou comentar dois itens da carta de Bolsonaro. No primeiro deles, notei a ausência de qualquer referência a ações anticorrupção, apesar da existência de grupo para acompanhar as ações anticorrupção no Brasil. Por curiosa coincidência, no mesmo dia da resposta do diretor-geral da OCDE, a Transparência Internacional divulgou seu Index sobre a percepção da corrupção no setor público, no qual se vê o Brasil caindo algumas posições.
O segundo deles é a questão do meio ambiente, na qual o presidente ressalta “o compromisso do governo com as metas do Acordo de Paris, e o apoio, na recente COP26, à meta de zerar as emissões globais de gases do efeito estufa até 2050 por meio de reduções de emissões possibilitadas por investimentos públicos e privados. Nesse contexto, Bolsonaro afirma “estar comprometido em adotar e implementar completamente políticas públicas em linha com suas metas climáticas, tomando ações efetivas, incluindo trabalhar coletivamente para parar e reverter perda florestal e degradação do solo até 2030 enquanto entrega desenvolvimento sustentável e promove uma transformação rural inclusiva”, como previsto na Declaração de Líderes de Glasgow sobre Florestas e Uso do Solo, do qual o Brasil é signatário.
Como é de conhecimento público, não é o que está ocorrendo na prática, pois continuam, sem repressão, os ilícitos na Amazônia, com queimadas, desmatamento e uma intensa atividade de garimpo, inclusive nas terras indígenas. Por isso, o Brasil pode ser impedido de entrar na OCDE, como disse o presidente francês Emmanuel Macron. Por curiosa coincidência, no mesmo dia da resposta presidencial, Bolsonaro anunciou cortes de recursos na área ambiental nos vetos à lei orçamentária de 2022, com forte impacto no controle de incêndios florestais pelo Ibama e na conservação e uso sustentável da biodiversidade e patrimônio genético pelo Ministério de Meio Ambiente.
A secretária do Tesouro dos EUA, Janet L. Yellen, sinalizou a importância de iniciativas para a proteção da Amazônia ao conversar com o ministro da Economia, Paulo Guedes, sobre a negociação para entrada do país na OCDE. O Departamento do Tesouro divulgou em Washington uma curta nota sobre a conversa telefônica, na qual relata que Yellen expressou a Guedes o apoio dos EUA “à decisão da OCDE de convidar o Brasil a iniciar formalmente o processo de adesão”. A nota acrescenta que a secretária “discutiu a importância de iniciativas, incluindo soluções baseadas no mercado, para enfrentar os desafios do Brasil na proteção da Bacia Amazônica”. Yellen “observou que aguarda com expectativa a continuação da cooperação bilateral sobre mudanças climáticas e infraestrutura”, conforme o comunicado. A menção a soluções de mercado na proteção da Amazônia refere-se ao mercado de carbono e ao desenvolvimento de instrumentos para atrair fundos institucionais e investidores privados.
O início das conversações sobre o ingresso do Brasil na OCDE não é “o reconhecimento de um grande país”, mas o ponto de partida de um projeto de pais e da definição do lugar do Brasil no mundo. Que País queremos? Quais as perspectivas para os próximos anos? Como o Brasil, país continental, que já foi uma das dez maiores economias do mundo, potência ambiental e agrícola, vai atuar em um cenário global em constante transformação?
O tema da adesão à OCDE não poderá ser ignorado nos debates para a próxima eleição presidencial, justamente pelas contradições existentes e porque ele vai apontar para o rumo que a sociedade brasileira quer seguir. O PT sempre ficou contra o ingresso do Brasil na OCDE, por não ver vantagem e ser contra nossa soberania. Lula, que recusou em 2007 convite para o ingresso, vai manter essa posição ou vai aceitar a entrada do Brasil com todas as mudanças necessárias, muitas das quais seu partido ficou contra? Bolsonaro se reeleito, vai mudar a política ambiental em relação à Amazônia? Como ficará a luta contra corrupção?
O resultado das eleições será aceito sem contestação?
Como dizia o filósofo, o difícil não é fácil.
Presidente e fundador do Instituto de Relações Internacionais e Comércio Exterior (IRICE). É presidente do Conselho Superior de Comércio Exterior da FIESP, presidente da Associação Brasileira da Indústria de Trigo (Abitrigo), presidente do Centro de Defesa e Segurança Nacional (Cedesen) e fundador da Revista Interesse Nacional. Foi embaixador do Brasil em Londres (1994–99) e em Washington (1999–04). É autor de Dissenso de Washington (Agir), Panorama Visto de Londres (Aduaneiras), América Latina em Perspectiva (Aduaneiras) e O Brasil voltou? (Pioneira), entre outros.
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