O Brasil e os novos mercados de carbono
Em 2021, em meio à pandemia, representantes dos cerca de 200 países signatários do Acordo de Paris reuniram-se na Escócia para finalizar as negociações do chamado ‘Livro de Regras’. Entre os temas da agenda da COP – Conferências das Partes de Glasgow, o que despertou maior interesse foi a regulação do Artigo 6, que trata dos mecanismos de mercados cooperativos com vistas à redução das emissões de gases de efeito estufa (GEE).
O Brasil poderá ter um papel de destaque nessa nova configuração dos mercados globais de carbono. Neste artigo, apresentamos o panorama atual dos mercados internacionais, destacamos questões importantes para a inserção do Brasil nos novos mercados globais e discutimos a importância do mercado doméstico para o melhor aproveitamento do potencial brasileiro de geração de créditos de carbono.
Acordo de Paris
Selado em dezembro de 2015, o Acordo de Paris representa um marco fundamental no regime internacional de combate às mudanças climáticas. Transitou-se de um regime em que apenas os países desenvolvidos (listados no anexo I do Protocolo de Quioto) tinham compromissos de mitigação vinculantes, para um regime em que todas as partes, desenvolvidos e em desenvolvimento, contribuem com ações de mitigação nacionalmente determinadas para o objetivo comum.
O acordo também reconheceu a necessidade de aumento na escala dos recursos financeiros disponíveis para atividades de mitigação e adaptação, bem como a mobilização de grandes fluxos de capital em direção aos países em desenvolvimento para financiar a transição para economia de baixo carbono e a adaptação às consequências das mudanças climáticas.
Seu artigo 6 prevê que as partes poderão optar por cooperação voluntária com vistas a implementar suas metas de redução de emissões. Dois trechos desse artigo vêm demandando maior atenção:
6.2 – Estabelece que as partes, ao buscarem cooperação internacional, deverão garantir integridade ambiental e transparência, inclusive na governança, e deverão aplicar uma contabilidade robusta que evite a dupla contagem, consistente com orientação da COP.
6.4 – Estabelece um mecanismo para contribuir com a mitigação de GEE, que servirá para uso voluntário das partes. Tal mecanismo deverá ser supervisionado por um órgão designado pela COP e deverá objetivar, dentre outras coisas: (1) incentivar a participação de entidades públicas e privadas; (2) permitir que um país se beneficie de ações de redução de emissões que sirvam para o cumprimento de metas de outro país; (3) contribuir para a redução global de emissões.
O artigo 6.2, ao falar em cooperação internacional, é entendido como o mecanismo pelo qual países poderão de forma voluntária e bilateral transferir uns para os outros resultados de mitigação. Isso é chamado de ITMO’s – resultados de mitigação internacionalmente transferidos – e dá as bases necessárias para o estabelecimento de um mercado entre países.
Já o artigo 6.4 define os fundamentos para um mercado global, que envolverá, num mecanismo multilateral, partes públicas e privadas, cujos projetos serão aprovados pela autoridade pública do país-sede.
O tema que dominou a COP26 foi a regulamentação deste artigo 6. Como resultado das negociações, vale destacar o guia sobre abordagens cooperativas do artigo 6.2 e as regras, modalidades e procedimentos para o mecanismo do artigo 6.4. De modo geral, os textos aprovados deixam mais claro como os mercados internacionais devem funcionar, definindo regras de integridade ambiental que permitam a acurácia, a possibilidade de verificação e a comparabilidade, e que não haja dupla contagem.
A partir de Glasgow, novos desafios se põem internacionalmente. Certamente, um dos mais importantes será a criação de uma plataforma internacional para a contabilidade de emissões e para o registro dos projetos e créditos autorizados e das transações internacionais desses créditos, seguindo as normas técnicas a serem editadas por órgãos de supervisão. Esse será um passo fundamental para o funcionamento dos mecanismos do artigo 6.
Por que é importante ter um mercado de carbono?
De modo a cumprir as metas globais ou nacionais de redução de emissões, pode-se pensar em algumas estratégias mais ou menos eficientes. Uma primeira poderia ser a de obrigar que as atividades emissoras de GEE reduzam, todas elas, suas emissões num mesmo percentual. Uma regra assim certamente seria criticada porque alguns bens e serviços podem ser mais essenciais ao consumidor ou podem ter processos tecnológicos muito rígidos no que diz respeito a emissões, apresentando um custo de redução mais alto e, consequentemente, um custo social maior. Já outros bens e serviços podem ser de fácil substituição pelo consumidor ou podem ter processos tecnológicos para os quais a adequação seja mais fácil. Nesse caso, a sociedade como um todo se beneficiaria de uma redução diferenciada, chegando ao mesmo objetivo de reduções totais, porém de forma menos custosa.
Se houvesse um planejador central conhecedor dos desejos dos consumidores e dos custos das tecnologias produtivas, poderíamos resolver esse problema por meio da tributação. O planejador central pode tentar se aproximar do modelo ideal de tributação, induzindo as escolhas dos agentes produtores e consumidores por aqueles bens e serviços e respectivas tecnologias produtivas mais eficientes no que diz respeito às emissões. Porém, afora as discussões de complexidade do sistema tributário, há aí um problema sério de assimetria de informação. Ninguém melhor que o consumidor para julgar o quanto um bem ou serviço é mais importante que outro. E ninguém melhor que o produtor para estimar o quão caro será substituir um processo produtivo por outro que gere menos emissões.
Uma solução mais eficiente é a criação de um mercado de carbono, o que demanda duas condições importantes. A primeira é que haja direitos bem estabelecidos. Se os consumidores e produtores puderem tomar suas decisões sem se preocupar com o nível de emissões de GEE, eles não vão valorar adequadamente a emissão que causam. Assim, é preciso estabelecer metas de emissões, criando direitos bem estabelecidos, o que implica, obviamente, a necessidade de sistemas de registros confiáveis. Implica também a necessidade de um adequado tratamento das diversas atividades, inclusive, atividades voluntárias que podem contribuir com a redução de emissões, como ocorre na agricultura sustentável, no reflorestamento e na preservação de florestas.
A segunda condição importante é que os agentes econômicos possam comprar e vender entre si esses direitos com baixos custos de transação. Se houver uma burocracia complexa ou uma carga tributária pesada, as transações não vão funcionar adequadamente. Plataformas digitais, como as das bolsas de valores, que tratem os direitos de emissão como ativos financeiros, reduzem bastante esse custo de transação.
Desde que haja direitos de emissão bem estabelecidos e um mercado com baixos custos de transação, os agentes econômicos vão transacionar esses direitos entre si até atingir a eficiência econômica. Agentes cujo custo de adequação tecnológica é alto estarão dispostos a comprar direitos de emissão de agentes cujo custo de adequação é baixo. Agentes que produzem bens essenciais estarão dispostos a comprar direitos de emissão de agentes que produzem bens de luxo, mais facilmente substituíveis por outros com menores níveis de emissão.
As transações vão ocorrer até que o valor do direito de emissão seja igual ao custo de reduzir emissões para todos os agentes. Nesse estágio, temos que os agentes com menor custo de redução serão responsáveis pela redução de emissões de toda a sociedade. Isto é, conseguimos alocar de forma socialmente eficiente o ônus de reduzir emissões.
Panorama atual dos mercados de carbono
O Banco Mundial, no carbon pricing dashboard, informa a existência de 65 iniciativas reguladas de precificação de carbono, espalhadas por quase todos os continentes, envolvendo 45 jurisdições nacionais e 34 jurisdições subnacionais, de municípios (como a prefeitura de Saitama, no Japão), até mercados supranacionais, como o sistema de comércio de emissões da União Europeia (EU ETS). Essas iniciativas regulam fontes responsáveis por 21,5% das emissões globais de GEE.
Os mecanismos regulados de precificação de carbono abrangem desde taxas e impostos de carbono, até esquemas de comércio de emissão e mecanismos de crédito voluntário por atividades de mitigação. Atualmente, existem cerca de 30 sistemas de comércio de emissões (SCEs) implementados e outras 14 iniciativas em consideração nas Américas do Norte e do Sul, Europa e Ásia. Em geral, os SCE’s são do tipo cap-and-trade, por meio do qual se estabelece um teto e se permite a negociação de direitos de emissão.
América do Sul, Chile e Colômbia estão avançados na consideração da adoção efetiva de SCE na região. O Brasil, após ter participado ativamente da Partnership for Market Readiness (PMR), iniciativa do Banco Mundial para estimular a adoção de mecanismos de precificação nas políticas domésticas dos países emergentes, discute agora como será o seu SCE.
Os SCEs muitas vezes permitem a utilização de crédito de carbono oriundos de projetos voluntários de redução ou remoção GEE como compensação de emissões (offsets) pelos seus entes regulados. Apesar de a atual fase do EU ETS não permitir tal recurso, em outras jurisdições proliferaram mecanismos de crédito por projeto, para reduzir os custos de cumprimento dos novos SCE’s. Atualmente, existem cerca de 18 diferentes mecanismos voluntários de créditos, incluindo o MDL (CDM) e a implementação conjunta (JI), com suas próprias regras e modalidades de projetos.
A declaração de ‘Emergência Climática’ pelos governos de diversos países europeus e a crescente onda de ativismo ambiental provocaram a entrada definitiva do tema na agenda dos principais atores econômicos globais, em setores que vão da indústria pesada aos serviços financeiros. Administradoras de volumosos recursos financeiros, como a Black Rock, passaram a condicionar alguns de seus investimentos na performance socioambiental das empresas. Cresce o número de compromissos voluntários de mitigação por parte de empresas e outros agentes econômicos. A expansão dos mercados regulados e os compromissos voluntários de neutralidade de emissões de carbono têm criado oportunidades e benefícios adicionais para os integrantes desses novos mercados globais de carbono.
A construção do mercado regulado de carbono no Brasil
O projeto PMR-Brasil iniciou-se em 2016, coordenado pelo Ministério da Economia e financiado pelo Banco Mundial, com o objetivo de auxiliar o processo decisório acerca da utilização de mecanismo de precificação de emissões de GEE no Brasil como um componente da PNMC – Política Nacional de Mudanças Climáticas, adotando como perguntas norteadoras:
Seria viável e conveniente ter um instrumento de precificação de carbono como parte da política climática nacional do Brasil no período pós-2020?
Em caso afirmativo, quais são as principais características que o instrumento deve ter para otimizar a relação entre o cumprimento dos objetivos climáticos e o desenvolvimento socioeconômico?
Os resultados do projeto demonstraram que os instrumentos de precificação de carbono tiveram performance superior à dos cenários regulatórios alternativos, indicando o SCE para a implementação custo-efetiva da política climática nacional. Em relação à segunda questão, sobre as características de desenho do mecanismo de mercado, as análises geraram diversos subsídios para a construção de propostas.
Internacionalmente, o Brasil assumiu o compromisso de redução de emissões em sua NDC – contribuição nacionalmente determinada. Perante a comunidade internacional, temos o compromisso, em nossa NDC mais atual, de reduzir o nível de emissões até 2030 em 50% daquilo que foram nossas emissões em 2005. E de atingir a neutralidade de emissões até 2050.
Internamente, o país é soberano para definir qual a melhor forma de atingir as metas da NDC brasileira. Para tanto, estão tramitando na Câmara dos Deputados alguns projetos de lei tratando desse desafio. Eles propõem desde soluções tributárias, até a definição de planos de neutralização e soluções setoriais, vale destacar o PL 528/2021, que cria um mercado de carbono para o Brasil, isto é, o SCE brasileiro.
Neste momento, este PL está em uma comissão especial para tratar do tema, com requerimento de urgência aprovado. Também está na Agenda Legislativa Prioritária divulgada pelo governo.
É importante que o projeto aprovado promova alguns atributos aqui discutidos. Em primeiro lugar, é necessário que os direitos de emissão sejam bem definidos. Em especial, que propiciem um registro de emissões de carbono confiável. Seguindo a linha dos SCEs internacionais, é importante que haja a regulamentação da utilização nos mercados regulados de créditos advindos de iniciativas voluntárias, garantindo a integridade do crédito e a oportunidade para geração de créditos mais baratos. Isso será fundamental para o funcionamento do mercado brasileiro, bem como para a exportação de créditos para outros países
É importante, ainda, que se criem condições para compra e venda desses direitos com baixos custos de transação, evitando a criação de estruturas burocráticas e onerosas. É fundamental fomentar a liquidez destes créditos por meio de plataformas que permitam transações como ativos financeiros. Aqui, o papel do setor privado será importante, participando ativamente da definição das metas de emissões setoriais.
Diante da importância do setor de uso do solo para as emissões, é fundamental que a legislação aprovada reforce os incentivos econômicos à preservação florestal e à agricultura sustentável.
O Brasil, no quesito ambiental, tem grandes vantagens sobre a maioria dos outros países. Tem uma cobertura florestal gigantesca, uma matriz de energia elétrica mais de 80% renovável e grande aptidão para a produção de combustíveis renováveis. A partir do estabelecimento de um adequado SCE, além dos benefícios ambientais e geopolíticos, teremos condições de exercer papel preponderante no comércio mundial de emissões, gerando divisas para o país e desenvolvimento sustentável em todo o mundo.
É secretário de Desenvolvimento da Infraestrutura no Ministério da Economia, formado em Engenharia Mecânica-Aeronáutica pelo ITA e doutor em Estatística pela Northwestern University
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