01 abril 2009

O Brasil, Pitiyanqui Sul-Americano?

Um traço permanente de nossa política internacional é a meta de impedir a formação de uma coalizão antibrasileira na América do Sul. Paradoxalmente, na hora em que se anuncia uma União Sul-Americana de Nações, os governos da Bolívia, Equador e Paraguai reacendem a velha acusação de que o Brasil ocupa o lugar de potência imperialista regional. A postura antibrasileira é uma faceta do antiamericanismo que solda a esquerda latino-americana e que paralisa nossa política externa. Demétrio Magnoli, sociólogo e doutor em geografia humana, é colunista de O Estado de S. Paulo e O Globo.

Hugo Chávez não tem graça. Mesmo seus raros ensaios no terreno da ironia soam rancorosos, vergados pelo fel. Mas, ao menos uma vez, involuntariamente, o caudilho de Caracas fez humor genuíno, ao apropriar-se do termo “pitiyanqui”, cunhado décadas atrás em Porto Rico pelo dramaturgo Luis Lloréns. A contração de petit (pequeno, em francês) com Yankee, um antigo insulto latino-americano, tornou-se algo como uma inevitabilidade na linguagem chavista. Pitiyanquis são todos que despertam a ira do farol da “revolução bolivariana”, desde os venezuelanos frequentadores de Miami até o México de Felipe Calderón. “Ser pitiyanqui é adorar o império norte-americano, sem se preocupar se nos tornamos mais uma estrela na sua bandeira, um Estado associado ou um simples protetorado”, definiu o poeta chapa-branca Iván Oliver Rugeles, no blog Aporrea, o preferido dos chavistas.


O Brasil não foi, até o momento, descrito como pitiyanqui por Chávez, embora uma acusação similar tenha sido dirigida ao Congresso Nacional, em represália às dificuldades na aprovação do ingresso da Venezuela no Mercosul. Mas a noção que se manifesta por meio do insulto converteu-se num fundamento ideológico da política externa de países vizinhos como a Bolívia, o Equador e o Paraguai. Nos intervalos entre as reuniões de cúpula de chefes de Estado da União de Nações Sul-Americanas (Unasul), com suas proclamações tão celebratórias quanto vazias, desenrolam-se em sucessão crises diplomáticas cujas raízes encontram-se numa acusação: o Brasil ocupa o lugar de potência imperialista regional e a redenção dos povos sul-americanos passa pela resistência ao poder brasileiro.

Primeiro foi a Bolívia, em 2006, com o episódio da nacionalização do setor de hidrocarbonetos. O gesto de ocupação militar de duas refinarias da Petrobrás evidenciou que não se tratava apenas de uma nova orientação de política econômica, amparada pela visão nacionalista do governo de Evo Morales. A mensagem enviada pela operação militar não tinha mais que uma leitura. Na narrativa escolhida por La Paz, tratava-se de um ato de refundação da soberania boliviana dirigido contra a exploração dos recursos naturais do país por uma empresa multinacional brasileira.
Em seguida, ano passado, eclodiu a crise com o Equador. No episódio, o alvo não foi uma estatal, mas a construtora Norberto Odebrecht. O incidente começou a partir de uma paralisação na produção do complexo hidrelétrico San Francisco, construído pela empresa na Amazônia equatoriana. A Odebrecht assumiu sua responsabilidade pelos erros de engenharia e engajou-se nos trabalhos de reparo. Entretanto, um decreto presidencial assinado por Rafael Correa determinou a militarização dos canteiros de obras, o sequestro dos bens da empresa e a proibição de saída do país de quatro funcionários da empresa. Antes de serem expulsos do Equador, dois dos funcionários refugiaram-se na embaixada brasileira e dois outros conseguiram regressar ao Brasil. Pouco mais tarde, Quito anunciou uma decisão de não reconhecer a parcela da dívida contraída junto ao BNDES destinada ao pagamento dos serviços da construtora.
A terceira crise, que envolve o Paraguai, ainda está em gestação, mas pode ter desdobramentos estratégicos mais profundos. Desde a vitória eleitoral de Fernando Lugo, o país vizinho passou a reivindicar a renegociação do preço pago pelo Brasil pela eletricidade fornecida pelo Paraguai e a revisão do próprio Tratado de Itaipu, de forma que o Paraguai possa vender energia da usina para terceiros países. A primeira demanda concerne à diplomacia comercial e, embora problemática, inscreve-se no curso normal das relações entre países amigos. A segunda, contudo, ameaça um pilar crucial da relação bilateral e só pode ser justificada com base na acusação de que o Brasil explora, como potência imperial, os recursos energéticos paraguaios.


O advento de governos nacionalistas, de diferentes matizes, na América Latina é a fonte imediata dessas crises diplomáticas, mas não da tese subjacente sobre o “imperialismo brasileiro”. Na verdade, a tese é bastante antiga, adquirindo novas interpretações e exprimindo-se sob linguagens diversas ao longo dos dois últimos séculos. A nossa política externa quase sempre julgou fundamental evitar que as percepções dela decorrentes provocassem o isolamento regional do Brasil. Hoje, lastimavelmente, o governo Lula parece agir como se existisse de fato um imperialismo regional brasileiro, ao menos até a sua própria inauguração.


O espectro da coalizão antibrasileira


Brasil e Argentina surgiram como Estados soberanos em meio à Guerra da Cisplatina, que prolongava um conflito colonial entre as Coroas portuguesa e espanhola pelo controle sobre o Rio da Prata. A paz e a criação do Uruguai como Estado-tampão não estabilizaram a região platino-pampeana, que se converteu em teatro de uma rivalidade de mais de meio século, pontilhada pela Guerra Grande uruguaia e pelo conflito entre federalistas e unitários argentinos. O Brasil interferiu ativamente nas crônicas guerras civis dos vizinhos platinos, além de contrariar os interesses da Argentina ao reconhecer a independência paraguaia e estabelecer uma aliança com o governo de Assunção. A prioridade estratégica brasileira era fragmentar o antigo Vice-Reinado do Prata, impedindo a emergência de uma Grande Argentina que perpetuaria as Províncias Unidas do Rio da Prata. A estabilização geopolítica regional veio apenas com a Guerra do Paraguai, que não encerrou as disputas entre Brasil e Argentina pela influência sobre os dois países menores.
O trauma argentino pela perda do Uruguai e do Paraguai expressou-se como ressentimento contra o Brasil. Se algo havia que unificava as diferentes facções políticas argentinas, era a nostalgia compartilhada das Províncias Unidas. Em 1869, quando se iniciava a competição pelo controle sobre os destroços do Paraguai, o liberal Juan Bautista Alberdi, inspirador da Constituição de 1853, escreveu El Imperio del Brasil ante la democracia de America. A obra, que ilustrava paradigmaticamente um consenso argentino, trazia a seguinte passagem, dirigida ao Brasil: “Seus vizinhos territoriais são seus antípodas […] não apenas em interesses, governo e linhagem como em situação econômica e geográfica”. Depois de delinear o sentido de um suposto expansionismo brasileiro na área platina, o autor oferecia uma conclusão implacável: “Toda República da América do Sul deve ser aliada natural de todo Estado europeu ou norte-americano que tenha conflito com o Brasil e, de antemão, deve assegurar que terá apoio moral de uma República sul-americana que entre em conflito com o Brasil”. Não por acaso, Alberdi propugnava uma união aduaneira hispano-americana, que excluiria o Brasil.
Na Argentina, em virtude da crônica disputa platina, os sentimentos antibrasileiros expressavam-se mais agudamente. Contudo, Alberdi refletia uma visão antibrasileira bastante difundida na América Hispânica do século XIX. O Brasil era um império escravista, que conservava uma dinastia europeia em meio às repúblicas bolivarianas nascidas de uma longa guerra anticolonial. Simón Bolívar deflagrou a abolição da escravidão no antigo império espanhol das Américas e nunca escondeu sua aversão à monarquia brasileira, que considerava uma aliada da Santa Aliança europeia e do projeto recolonizador espanhol. Antonio José de Sucre, seu general e libertador da Bolívia, temia o “expansionismo brasileiro”. O Brasil não foi convidado para algumas das conferências continentais bolivarianas e não se interessou em comparecer àquelas para as quais recebeu convite. Em 1862, desastradamente, o Brasil reconheceu a coroação do imperador Maximiliano, no México.


Uma fronteira de aversão separava o Brasil das “turbulentas repúblicas hispânicas”, expressão que aparece, aqui e ali, em despachos diplomáticos do Império. Temia-se pelos efeitos do republicanismo e do caudilhismo sobre o frágil equilíbrio geopolítico do Estado imperial. Além disso, crucialmente, a narrativa nacional brasileira articulava-se em torno da ideia de construção de uma civilização europeia nos trópicos, enquanto o imaginário político hispano-americano apoiava-se no princípio da ruptura entre América e Europa. Mesmo assim, e apesar da persistência do sonho de anexação da Cisplatina, o Império do Brasil nunca foi expansionista.


A unidade da América Portuguesa no Brasil imperial e a fragmentação da América Espanhola numa coleção de repúblicas caudilhescas configura um contraste marcante. Mas a integridade territorial brasileira não era um dado prévio nem, evidentemente, um destino. Ela foi uma meta, perseguida incansavelmente pelo Império e aceita pelas oligarquias regionais brasileiras, que precisavam de um Estado central forte para proteger o escravismo das pressões da maior potência da época. Quase nada soldava as disparatadas regiões do Brasil, que não estavam interligadas por redes viárias e experimentaram diversas convulsões autonomistas ou separatistas. Até a Guerra do Paraguai, a ameaça latente da secessão pairou sobre as províncias meridionais, que sofriam os impactos das mutáveis alianças das facções uruguaias com federalistas e unitários argentinos e, depois, com o Paraguai de Solano López. A política externa do Império do Brasil, particularmente a sua estratégia platina, tinha o objetivo de conservar a unidade territorial do país.
Paralelamente, o Império definiu como seu interesse vital impedir a formação de uma coalizão antibrasileira na América do Sul, nos moldes imaginados por Alberdi. A Tríplice Aliança contra Solano López, no Prata, e os tratados bilaterais de navegação e fronteiras, no Amazonas, representaram triunfos estratégicos do Brasil. Mais tarde, no início do século XX, sob o comando do Barão do Rio Branco, a orientação imperial foi conservada e aprofundada. Os tratados de fronteiras, alcançados por meio de negociação ou arbitragem, dirimiram contenciosos territoriais com os vizinhos e esvaziaram as alegações de expansionismo brasileiro. No Prata, a política de cooperação ABC (Argentina, Brasil, Chile), uma prefiguração da estratégia de integração regional materializada no Mercosul, evitou a reativação das antigas disputas com a Argentina. O espectro de uma aliança hispânica contra o Brasil havia-se dissolvido.


À sombra de Washington?


O sentimento antibrasileiro, contudo, apenas mudou de forma. Quando o Brasil engajou-se no estabelecimento de uma parceria privilegiada com os EUA e Joaquim Nabuco, embaixador em Washington, saudou o “monroísmo” , houve reações de desagrado entre os vizinhos hispânicos. Em 1904, quando Rio Branco sugeriu que os EUA atuassem como mediador na guerra civil paraguaia que acabaria desaguando num governo pró-argentino, o jornal portenho La Nación desempenhou o papel de porta-voz da acusação de que o Brasil agia como peão regional da potência do Norte. Três anos mais tarde, o episódio do bloqueio naval à Venezuela, efetivado por britânicos, franceses e espanhóis com anuência americana, em represália à recusa do caudilho Cipriano Castro em pagar a dívida externa, reabriu a guerra verbal. Na ocasião, Rio Branco recusou-se a apoiar a iniciativa argentina de formar uma liga sul-americana contra o intervencionismo europeu e o jornal La Prensa, também de Buenos Aires, retomou a acusação de que o Brasil servia de veículo para o hegemonismo americano.


O Brasil engajou-se no pan-americanismo com um entusiasmo que contrastava com a atitude dos vizinhos hispânicos, que ainda remoíam os fracassos do bolivarianismo. A visita de Elihu Root ao Rio de Janeiro, em 1906, a primeira de um secretário de Estado americano a um país estrangeiro, realizada na moldura do Corolário Roosevelt , reativou as desconfianças em relação ao Brasil. A Argentina, em especial, preferia enxergar-se como parte do mundo europeu, privilegiava suas relações com a Grã-Bretanha e opunha-se às iniciativas pan-americanas. O antiamericanismo hispano-americano do ínicio do século XX expressava uma opção pela Europa e entrelaçava-se com antigos sentimentos antibrasileiros.


Estanislau Zeballos, chanceler argentino por três vezes, a última das quais entre 1906 e 1908, nunca aceitou a derrota para o Brasil no arbitramento da área contestada de Palmas. Com os olhos postos nos tempos do desmoronamento da Grande Argentina, ele interpretava a política externa brasileira como ferramenta de um projeto expansionista: “ela responde a uma meta internacional que fincou raízes na consciência do povo brasileiro e de seus estadistas, pela qual o Brasil deve ter a superioridade da direção política no Rio da Prata e que este deve ser um teatro no qual o Brasil exerça uma influência decisiva”. O seu convicto antibrasileirismo era o complemento natural de uma política que buscava, sem sucesso, recuperar a hegemonia argentina sobre todos os territórios das antigas Províncias Unidas.
Os sentimentos antibrasileiros e antiamericanos na América Hispânica têm origens e trajetórias distintas, mas eles se cruzaram quando Rio Branco estabeleceu a parceria estratégica do Brasil com os EUA. Depois, a identificação tornou-se mais forte, com o advento de um antiamericanismo nacionalista e de esquerda. Nas décadas de 1920 e 1930, sob o influxo da Aliança Popular Revolucionária Americana (APRA), do peruano Haya de la Torre, o vácuo deixado pela virtual dissolução do bolivarianismo foi ocupado pelo movimento da Indo-América. Nas suas variantes reformista ou revolucionária, tal como propugnada pelo também peruano José Carlos Mariátegui e pelo nicaraguense Augusto César Sandino, o movimento organizava-se ao redor de um anti-imperialismo que denunciava a coalizão de interesses entre os EUA e os latifundiários latino-americanos. A redenção da América Latina dependia de uma ruptura com os EUA e o pan-americanismo e de uma modernização assentada sobre as tradições comunais indígenas. O Brasil era visto como aliado da potência do Norte e um obstáculo para a realização da “segunda independência” das nações indo-americanas.


Com maior ou menor sofisticação teórica, os marxistas buscam incansavelmente os fundamentos econômicos das estratégias políticas. No pós-guerra, uma corrente de pensadores marxistas elaborou a tese de que a aliança entre Brasil e EUA, reafirmada pelo engajamento brasileiro na campanha contra o Eixo, refletia o lugar específico ocupado pelo Brasil no sistema mundial. Sob a influência decisiva de André Gunder Frank, e reinterpretando a teoria cepalina da dependência, esses pensadores classificaram o Brasil como um centro subimperialista na América Latina.
A tese do subimperialismo baseava-se na ideia de que a diferenciação da economia mundial modificava a clássica divisão internacional do trabalho entre produtores de manufaturas e produtores primários. Entre o “centro” imperialista do sistema e sua “periferia” explorada, interpunham-se nações que, embora subordinadas ao capital financeiro internacional, experimentavam um importante desenvolvimento industrial e adquiriam relativa autonomia geopolítica. Tais nações – Brasil, Irã, Iraque, Turquia, Israel, África do Sul – convertiam-se em nexos do sistema hegemônico dos países imperialistas e funcionavam como guardiões regionais da ordem global.


De acordo com a tese, nos centros subimperialistas as classes dominantes beneficiavam-se do aumento da produtividade derivado da modernização econômica, mas não abriam mão da superexploração do trabalho. O efeito era perpetuar um mercado interno contraído, incapaz de absorver a crescente produção industrial. As saídas para o impasse consistiam na formação de classes médias numericamente pequenas, mas prósperas, numa ampla intervenção estatal destinada tanto a financiar o consumo privado quanto a ampliar a demanda pública e, finalmente, na expansão econômica no exterior, via exportações industriais e investimentos empresariais. Os países subimperialistas se associariam ao centro do sistema, que continuava a tutelá-los, para explorar a vasta periferia atrasada.
A teorização sobre o subimperialismo brasileiro atingiu seu ápice, como era de esperar, na década de 1970, quando a ditadura militar promovia o seu “milagre econômico”. Os teóricos não se preocupavam em analisar factualmente a política externa conduzida pela ditadura brasileira, com seus óbvios traços nacionalistas e seus frequentes desentendimentos com os EUA. Num tempo de entusiasmo pela Revolução Cubana e pelo guevarismo, bastava-lhes um esquema interpretativo apoiado em supostas determinações econômicas e adaptado a orientações políticas que privilegiavam as imaginadas potencialidades revolucionárias do campesinato dos países pobres da América Latina.


Lanterna na popa


O Brasil não é, evidentemente, um “centro subimperialista”, mas tem importantes interesses econômicos e políticos no entorno sul-americano. A Petrobrás e a Odebrecht atuam, diretamente, em oito dos treze países da América do Sul. A Petrobrás é, de longe, a maior empresa estabelecida na Bolívia: as suas atividades representam cerca de 18% do PIB do país e geram um quarto da arrecadação fiscal total. A construtora Queiroz Galvão realiza obras em três países da região. O Brasil é o maior parceiro comercial dos três sócios platinos do Mercosul. A Usina de Itaipu é a maior fonte isolada de recursos externos do Paraguai, um país que recebeu, nas quatro últimas décadas, algo em torno de meio milhão de brasileiros. Os “brasiguaios”, proprietários de terras na faixa leste do Paraguai, tocam o setor mais moderno e produtivo do agronegócio do país vizinho. Na Bolívia, em número significativo, agricultores brasileiros estabeleceram-se junto às fronteiras orientais. A mobilização de sentimentos antibrasileiros por governos sul-americanos é uma ameaça concreta aos interesses nacionais, que abrangem, destacadamente, o projeto de integração da América do Sul.


Os governos engajados na reativação da tese do “imperialismo brasileiro” não podem ser, apropriadamente, enquadrados num conjunto ideológico monolítico. O chavismo tem evidentes repercussões políticas e diplomáticas internacionais, mas não constitui a fonte inspiradora dos governos de Evo Morales, Rafael Correa ou Fernando Lugo, que são fenômenos caracteristicamente nacionais. Entretanto, apesar das diferenças fundamentais que os separam, todos estes governos acalentam uma dupla aversão aos EUA e ao Brasil. No caso de Chávez e, em menor escala, de Correa, uma relevante matriz ideológica dessa dupla aversão encontra-se no programa de edificação de um capitalismo de Estado. Sob o ponto de vista deles, as empresas brasileiras são elementos do conjunto imperialista constituído pelas multinacionais. A Petrobrás, embora controlada pelo Estado, é classificada na mesma categoria, por ser uma empresa de capital misto.


Com a lanterna fincada na popa, Chávez, Morales, Correa e Lugo recuperam cada um dos preconceitos e ressentimentos antibrasileiros emanados de uma história de dois séculos e os exprimem nos termos oferecidos pela linguagem marxista do pós-guerra. Chávez fala em nome do “socialismo do século XXI” quando ataca o Congresso brasileiro e exige uma refundação do Mercosul, mas sua referência histórica está menos em Lênin e mais em Cipriano Castro que, na sua visão, ocupa o lugar de fundador do moderno anti-imperialismo venezuelano. Morales exprimiu-se com franqueza durante a crise com a Petrobrás, ao enunciar o diagnóstico de que “o Brasil nunca apoiou a Bolívia e deu um cavalo em troca do Acre”.


O equatoriano Correa transformou uma questão menor, puramente econômica, entre seu país e a Odebrecht, no ponto de partida de uma crise diplomática porque, no fim das contas, pretendia firmar uma posição contra as empresas multinacionais e contra a economia de mercado. Na ocasião, asseverou que “o Brasil está entre os mesmos de sempre”, isto é, os países imperialistas. No Paraguai, Lugo é o vértice de uma coalizão de governo que reúne movimentos sociais de esquerda e nacionalistas de direita. No dia da visita oficial de Lula a Assunção, 21 de maio do ano passado, o jornal ABC Color, órgão representativo de parcela relevante da elite política e publicação de maior circulação do país, estampou a seguinte manchete: “Brasil, um país imperialista e explorador”. O próprio Lugo evita utilizar tais termos, mas a fórmula é de uso corriqueiro entre os movimentos populares cujos líderes figuram entre seus principais colaboradores.

Atitude inadequada


O Brasil não encontrou o tom ou a atitude adequada para reagir às palavras e atos oriundos da política antibrasileira conduzida por esses governos. No caso boliviano, a reação brasileira, que originou intensa polêmica doméstica, consistiu em desviar o foco de atenções para a dimensão econômica do evento. A Petrobrás, como era inevitável, abriu negociações sobre as cláusulas do novo contrato de prestação de serviços com o governo boliviano e sobre o preço de transferência das refinarias. Por algum tempo, a empresa estatal congelou os investimentos na Bolívia, mas a posição foi revertida em virtude de decisão política do governo brasileiro. A decisão pode ser justificada, razoavelmente, com base nos interesses permanentes brasileiros de conservar boas relações com o vizinho que compartilha a maior extensão de fronteiras com o Brasil. Entretanto, no lugar de um firme protesto contra a ocupação militar das instalações da Petrobrás, que foi um ato de hostilidade, Lula tratou de enfatizar o direito boliviano de mudar a forma de exploração de seus recursos energéticos e minimizou o incidente. Sob o argumento de que o Brasil deve entender as demandas dos vizinhos mais pobres e auxiliar o seu desenvolvimento, o presidente brasileiro renunciou à necessária defesa dos princípios que sustentam a política externa do país.


No episódio equatoriano, a crise decorreu de uma opção de Correa, que procurava posicionar-se na moldura das disputas políticas domésticas. Em condições normais, as divergências entre um país soberano e uma empresa privada estrangeira nem chegariam a formar um incidente diplomático. Mesmo a contestação da dívida equatoriana com o banco estatal de investimentos do Brasil poderia ficar circunscrita ao leito da diplomacia comercial. Mas o gesto de ocupação militar dos canteiros de obras e, especialmente, os constrangimentos impostos a funcionários brasileiros da Odebrecht configuraram atos intoleráveis, de gratuita provocação. A resposta brasileira foi certamente menos branda que no caso boliviano, mas mirou o alvo errado.


Reagindo ao anúncio de suspensão do pagamento da dívida com o BNDES, o Itamaraty chegou a chamar de volta o embaixador em Quito e o ministro das Relações Exteriores Celso Amorim declarou que o não-pagamento da dívida secaria o comércio bilateral. Entretanto, a dimensão verdadeiramente grave da ação equatoriana foi a ação militar e as ameaças aos direitos de cidadãos brasileiros. Tais atos exigiriam, eles sim, a chamada do embaixador para consultas, mas passaram quase em brancas nuvens. No fim, a mensagem involuntária enviada pelo governo do Brasil foi que a dívida é a única coisa realmente importante.


A vontade de inscrever os episódios numa moldura econômica, esvaziando seu conteúdo político, poderia justificar-se com base no critério da prudência e da moderação. Mas apenas na hipótese de que se tratassem de eventos isolados, não de manifestações de franca hostilidade contra o Brasil com densas ramificações ideológicas. “Eles não podem nos tratar como se fôssemos uma potência colonial que quer explorá-los; nós seguimos as regras do mercado internacional”, retrucou Celso Amorim aos comentários do presidente Correa. Ocorre que tais regras representam, sob a perspectiva de tais governos, um diktat imperialista.


A integração sul-americana, nos moldes propugnados pelo Brasil, tem poucas chances de avançar enquanto um grupo de governos da região persistir na postura de resistência às “regras do mercado internacional”. Mas isso não é tudo, nem o pior. Enquanto o governo brasileiro engajava-se na regularização dos documentos dos imigrantes bolivianos, La Paz adiava indefinidamente a documentação dos brasileiros que vivem na Bolívia e ameaçava expropriar suas terras. No Paraguai, desde a campanha eleitoral, o espectro de uma expropriação em massa paira sobre os “brasiguaios”, que são vistos pelos movimentos sociais alinhados a Lugo como o símbolo do odiado capitalismo agrário.
As hesitações e ambiguidades do Brasil diante da postura antibrasileira destes vizinhos refletem o duplo comando a que está submetida nossa política externa no governo Lula. O presidente rechaça, tanto quanto Celso Amorim, a acusação dirigida contra o Brasil. Em fevereiro de 2007, ao lado do boliviano Morales, que visitava o país, Lula enviou um recado claro e nítido: “Não somos imperialistas como alguns dizem. Não somos hegemonistas como alguns querem. Somos um país que tem a compreensão de sua dimensão geográfica, sua importância econômica, seu desenvolvimento científico e tecnológico”. Contudo, uma parte significativa da base de apoio de Lula imagina precisamente que “somos imperialistas” e “hegemonistas”.


Setores relevantes do PT aplaudiram a declaração de Chávez que imputava ao Congresso Nacional uma posição de servilismo diante dos EUA e solidarizaram-se com as provocações de Morales contra a Petrobrás. Os atos agressivos de Correa receberam apoio ainda mais entusiasmado, pois seu alvo aparente era uma empresa privada. O MST, muito próximo aos movimentos populares que sustentam Lugo, defende abertamente não apenas a revisão do Tratado de Itaipu como também a expropriação dos “brasiguaios”. Roberto Baggio, dirigente do MST, expressou do seguinte modo a sua posição: “Defendemos a soberania do nosso país e de todos os países. Somos contra o imperialismo dos Estados Unidos sobre o Brasil e do Brasil sobre qualquer país da América do Sul”. Faltou muito pouco para Baggio classificar o Brasil como pitiyanqui sul-americano.


Há anos, o Brasil se dá ao estranho luxo de conduzir uma política externa dúplice na América do Sul. De um lado, reafirmam-se as linhas gerais da tradição de política externa brasileira, baseada na parceria com os EUA e no projeto de uma integração sul-americana que se articula nos marcos da economia de mercado. De outro, sob o influxo conjunto da ala ultranacionalista do Itamaraty e da Secretaria de Relações Internacionais do PT, desenvolve-se um discurso antiamericano que prega a cooperação com o chavismo e almeja constituir um bloco regional de poder.
Um primeiro resultado desta duplicidade foi a incapacidade de definir uma posição sobre a crise triangular que envolveu Colômbia, Venezuela e Equador, no episódio da libertação de reféns das FARC. O segundo expressa-se na dificuldade de coordenar uma resposta política e diplomática coerente à sucessão de atos dos vizinhos que ferem os interesses nacionais. A inação não solucionará o impasse, mas o agravará, gerando tensões crescentes com tais vizinhos. É o preço cobrado pela rede de compromissos ideológicos que cerca o governo Lula.


1 . Referência à Doutrina Monroe, enunciada pelo presidente dos Estados Unidos James Monroe, em 1823, segundo a qual quaisquer tentativas de interferência nos assuntos internos ou recolonização de países latino-americanos por potências européias seriam interpretadas como uma agressão aos interesses dos Estados Unidos. (N. do E.)

2 . Referência a acréscimo à Doutrina Monroe feito pelo presidente norte-americano Theodore Rossevelt, em 1904, segundo o qual os Estados Unidos teriam direito à intervenção nos assuntos internos de países latino-americanos em face de perturbações da ordem que contrariassem os seus interesses. (N. do E.)

Demétrio Magnoli é sociólogo, conselheiro do Centro Brasileiro de Relações Internacionais, colunista dos jornais Folha de S.Paulo e O Globo, comentarista internacional na GloboNews

Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

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