08 dezembro 2021

Centro como ideia e sua construção política

O que torna crível um centro político, convertendo-o em alternativa de poder, não é a propensão a se distinguir retoricamente da direita e da esquerda, mas a capacidade de se entender, simultaneamente, com ambas, criando marcos governativos na democracia. É exigência de política prática. Se ignorada, desaparece a razão de ser do centro.

Na resenha da política brasileira contemporânea, poucas palavras têm uso tão frequente e significado tão obscuro quanto ‘centro’. Políticos da direita gostam de se autodefinir através dela, enquanto na esquerda é comum a sua desqualificação como expressão de um lugar vazio. Interessante essa variação das motivações e dos modos pelos quais os dois polos expressam um desejo comum de retirar do termo qualquer significado substantivo particular. Tais malabarismos de políticos práticos têm elos com o modo como se pensa a política brasileira nos meios acadêmicos e jornalísticos.

No caso da centro-direita liberal, a tendência a evitar expor sua identidade ideológica (por evidências de elitismo político e social fortes, historicamente associadas à sua ‘práxis’ e que lhe trazem desconfortos eleitorais, em contextos de democracia) tem se acentuado pelo recente protagonismo da extrema-direita. Enquanto essa última atrai adeptos no eleitorado, demonizando o centro como esconderijo de esquerdistas dissimulados, aquela direita liberal, que renova compromissos democráticos, entrincheira-se na palavra centro para se diferenciar da barbárie vizinha. Movimento que todo político conservador sério, liberal ou não, está sendo instado a acompanhar.

Mas o preço, para os conservadores, é deixar de brigar pela sua identidade, que amiúde é usada de modo espúrio para nomear o bolsonarismo, um movimento reacionário, destrutivo de instituições, que é antítese de uma disposição conservadora legítima, para a qual a preservação das instituições deve ser cláusula pétrea. Esse é um dos motivos (aqui não cito, mas também não desconsidero o mundo dos interesses e sua relevância explicativa) que segura muitos conservadores em zona de tangência, até de complacência, com o bolsonarismo. Não à toa a memória de Churchill tem sido evocada para tentar fazer com que se mexam e se descolem dali.

A fuga de liberais para “o centro” em busca de diferenciação é um movimento com um lado benigno, de fortalecer no plano político-institucional a trincheira da democracia sob ataque. Nesse plano, a associação entre liberalismo e democracia é valor centrista, de ampla aceitação. Ao mesmo tempo, esse deslocamento difunde a versão (ou ao menos a sensação) de que o centro seria liberal também em termos de economia. E aí é confusão certa.

Essa hipótese encontrou respaldo factual durante os anos de ouro do mal chamado neoliberalismo, mas hoje, em tempo de crise global, não tem chancela no mundo real, diante da revalorização do papel do Estado nas sociedades em crise. Noves fora os Paulo Guedes do mundo, economistas e políticos liberais estão sendo chamados a negociar com o tempo, do mesmo modo que ocorreu, em sentido inverso, com a socialdemocracia, levada, décadas atrás, a uma inflexão liberal. A reciclagem demora e, enquanto ela não se completa, ouve-se, nessa área do centro retórico, discursos contra os “extremos”- assim adjetivada a posição de Lula e do PT, que de extremista não tem nem mais a retórica. A atitude de associar o centro a um pensamento único em economia é anacrônica, mas esse aviso, no Brasil, ainda não está pacificado entre liberais. A onda Biden é ainda um jargão.


Risco de invisibilidade do centro

O movimento da esquerda em relação à ideia de centro tem sido, até aqui, menos o de ocupar um lugar político que lhe corresponda e mais o de reagir a essa ideia, até mesmo negar sua validade empírica. Ela pensa que não precisa se refugiar no centro porque a imagem de esquerda não impede que seu ícone popular lidere pesquisas de intenção de voto. A rejeição respectiva a essa liderança é minimizada pela suposição de que, num confronto de negações, vencerá a revanche contra Bolsonaro. A hipótese não é delirante.

Mantidas até 2022 as atuais condições de alta temperatura política e/ou de baixa pressão dos demais atores, o antibolsonarismo gerará coalizão de veto análoga à que o antipetismo gerou em 2018. O que não chega a ser delirante, mas é imprudente, é tomar como premissa do raciocínio que as atuais condições de temperatura e pressão serão mantidas. É de supor que a temperatura aumentará muito e poderá levar Bolsonaro ao céu ou ao inferno, pois no purgatório ele já mostrou que só ficará se dopado. Logo, as chances da aposta conservadora da esquerda na performance populista de seu líder popular depositam-se na manutenção, ou queda ainda maior, das baixas condições da pressão exercida pelos atores que se postam entre Bolsonaro e Lula. Se essa pressão cair mais e, politicamente, Bolsonaro descer aos infernos, as forças governistas terão pouca chance de improvisar um substituto e, então, sem rivais ao centro, estará pavimentada a via para a fênix petista. Já se a pressão do centro cair, mas Bolsonaro chegar ao paraíso eleitoral, o PT poderá partilhar o ônus do improviso com o centro e conservar a posição de principal força da oposição num segundo mandato de Bolsonaro. Para qualquer dos dois cenários, a condição prévia é a invisibilidade de o centro provar sua inexistência.

A interpretação da cena por políticos alinhados ao PT e pela maioria dos analistas ligados à esquerda tende a valorizar a habilidade e firmeza da vontade política e da estratégia eleitoral. As implicações sociais das crises sanitária e econômica balizam as possibilidades de êxito de uma atitude fortemente crítica à situação presente e de evocação positiva do êxito popular das gestões de Lula. Com esses dois cimentos, esculpe-se um futuro a veicular na campanha. Nessa estratégia não há lugar para inovações ou mesmo revisões de atitudes pretéritas. Essa ortodoxia, contudo, não é ideológica, mas pragmática. A esquerda pensa que não há, na prateleira onde se estoca proposições programáticas, nada cujo apelo eleitoral seja maior do que a reiteração permitida por aqueles dois cimentos.  Enquanto, na arena plebiscitária, não houver concorrentes além de Bolsonaro, ideias serão artigos de segunda necessidade.

Acontece que a esquerda e a direita brasileiras operam sobre o mesmo país e o mesmo mundo. O mesmo contexto e o mesmo eleitorado que desafia liberais a encararem uma revisão da sua posição sobre o papel do Estado e sobre o tema das desigualdades sociais desafia a esquerda a mostrar que pode gerir o Estado e reduzir desigualdades com mais eficácia do que os adversários conciliados com essas duas agendas. Bolsonaro à parte, a centro-direita tem tido mais peso do que a esquerda ou a centro-esquerda em eleições de vários tipos no Brasil, desde 2016. Em tese é possível reverter essa tendência colando, na centro-direita, pechas de bolsonarista ou neoliberal. Se, no entanto, ela caminhar em direção diversa será mais difícil a controvérsia ideológica convencer mais que fatos e programas.

Em resumo, a direta conservadora e a centro-direita liberal tentam emprestar suas crenças ao centro, enquanto a esquerda lulo-petista trata a busca do centro como falsa questão, pensando-se a si mesma como sendo esse centro. Os respectivos capitais políticos desses dois aglomerados de atores são usados para tentar ocupar essa posição objetiva. Para a direita, o centro é uma posição acessível, de conteúdo neutro. Para a esquerda, uma ficção inútil, pelo seu conteúdo átono.

O centro é assim pensado como lugar de pouco peso, ou mesmo de ninguém, tendo à sua testa o polo que conseguir, a cada eleição, posição proeminente no embate político, podendo levar para esse centro plástico uma cauda de apoiadores ocasionais, cuja orientação ideológica, se existir, não conta muito. Na normalidade de uma democracia estável, isso não é um problema. Como já descoberto pela ciência das instituições e dos partidos, um sistema político pode assumir como seu centro um revezamento entre governos moderados de centro-direita e de centro-esquerda.

 
Jogo perigoso com o avanço do extremismo

O problema é a senhora realidade tensa, ou mesmo crítica, que infesta hoje as democracias, inclusive as mais estáveis. Quando algum extremo se torna eleitoralmente competitivo e ameaça ocupar esse centro, o jogo fica perigoso. E se a possibilidade vira realidade, como virou no Brasil, esse jogo, para não trincar totalmente com a dinâmica destrutiva da interação de extremismos ideológicos e interesses mal compreendidos, exige ser regulado – na verdade, salvo – por uma particular atitude política centrista que saliente a centralidade de suas regras e valores. Mais do que isso: requer que essa atitude centrista vá além da arbitragem e da arte do equilíbrio para assumir, também, uma dimensão programática e se candidatar diretamente ao poder. As forças políticas que deliberadamente se declaram parte desse hipotético centro no Brasil estão se movendo de modo incerto e lento, em direção a esse desafio que traduz uma emergência política.

Essa constatação põe o suposto centro no centro da análise sobre as razões pelas quais até aqui ele é tão gelatinoso. Ainda que se saiba que a direita tenta ocupá-lo e a esquerda anulá-lo, a pergunta mais importante é qual a responsabilidade política de quem supostamente está nesse lugar, se ele for, de fato, lugar neutro ou átono num país presidencialista a pouco mais de um ano de uma eleição decisiva.

Existem variados modos de se tentar definir o que é centro, todos eles dependentes de contingências de contexto e nenhum dele possível de aprofundar neste texto. Mas, ao mesmo tempo, pode-se pensar em centro enquanto crenças e valores políticos mais perenes, voltados ao mundo social. O escopo da socialdemocracia cai-lhe bem, ainda mais na ibero-américa, onde a esquerda o renegou. O triplo descentramento da luta social e da política institucional, que a esquerda do continente patrocinou através da práxis indenitária, da teoria decolonial e do culto iliberal populista à “democracia de alta intensidade”, arrastou-a, em grande parte, para um universo distinto e afastado da socialdemocracia. Mesmo em casos mais moderados, como o do PT, o flerte com essas perspectivas aumenta seu déficit republicano. Com isso, sobra campo aberto a uma atitude “de centro” comprometida em compatibilizar a luta por novos direitos contemporâneos e o antigo compromisso socialdemocrata com equidade articulada à democracia política, ao pragmatismo econômico, à cooperação social e ao pluralismo cultural.

No plano concreto dos atores políticos, a conversa não pode deixar de ser outra, já que se trata do reino dos fatos. Ao vasto espaço que se abre ao pensamento político entre o liberalismo e o esquerdismo no Brasil não corresponde um espaço político relevante de operação para quem se conecta a esse pensamento. Além da consciência de si – em termos de crenças, valores, interpretações sobre as particularidades brasileiras e sua tradução num programa – é preciso ler com realismo a atual situação política, que é adversa à ação que pensa a política como terreno prudencial para firmar compromissos estáveis entre tradição e progresso e entre experiência e razão. Mais do que o liberalismo ou o estatismo econômico; mais do que o conservadorismo ou algum maximalismo reformador; o adversário do centro é o voluntarismo. A disputa entre prudência e vontade corta transversalmente os partidos, porque a substância e a relevância do centro ligam-se à capacidade de evitar um autorreferente “centrismo”, detectar em distintos quadrantes ideológicos evidências de atitude prudencial e agregá-las através de políticas de aliança. É dessa natureza o desafio atual que se impõe a quem se considera “de centro”. Impõe-se porque o centro não pode vencer eleições e, muito menos, governar sozinho.


Olhar à direita é missão do centro

Diante de conjunturas marcadas por alto grau de incerteza, um pensamento de centro voltado a construir um centro na política real não pode deixar de olhar para a direita e para a esquerda e de dialogar com ambas. A posição do PSDB na geografia ideológica dos partidos brasileiros o faz ser, em tese, o partido mais vocacionado para essa operação. Paradoxalmente, tem sido um dos que têm mais dificuldade de tráfego interpartidário e é possível citar, dentre outras, duas razões para isso. Uma, contingente, tem nome e sobrenome e despacha no Palácio dos Bandeirantes. Outra, permanente, é o fato de o partido ter revisto, ao longo de 18 anos, desde que se organizou como oposição ao PT, o enquadramento estratégico da sua política em direção à centro-direita, sem rever o ideário socialdemocrata que orientou sua conduta de banda esquerda de seu próprio governo, até 2002.

Esse ideário socialdemocrata – distinto do programa liberal adotado pelos governos que liderou – sobrevive praticamente íntegro na coletânea de reflexões de natureza programática intitulada “Brasil pós-pandemia: uma proposta de reconstrução do futuro”, cujo caráter, por sinal, é mais de plataforma de governo do que de partido, a julgar pelo conteúdo e pelo plantel de autores reunido em seus capítulos.

Antes que pragmatistas de plantão objetem que programas são conversa fiada, admito que assim são se não se encontrar vocalizadores politicamente viáveis para fazer ideias influírem sobre decisões do eleitorado e de governo. Reponho uma impressão retirada de um artigo recente em que o PSDB é foco:

Valores da sociedade e necessidades do eleitorado convergem, no momento, para um ideário social democrático que dorme nas prateleiras internas do PSDB. Tirá-las dali para que trafeguem na política (na grande e na pequena) só pode ser obra de grande política, capaz de ler que o eleitorado destinatário tem votado de modo relevante na centro-direita (“O PDSB, entre a grande e a pequena política”, em “Politica&Coisa&Tal; “Esquerda Democrática”; “Roda Democrática”, 15.05.21).

O que fazer com isso pode ser parte da resposta sobre como construir um centro democrático nas condições quase agônicas em que se vive no Brasil. Observa-se os movimentos do ex-presidente Fernando Henrique em direção a um diálogo com o ex-presidente Lula. Correm traduções desse gesto como de resignação à inviabilidade eleitoral do centro. Lula seria um Lula melhor em companhia do centro no segundo turno. Outra leitura é possível: Lula pode ser um Lula menor que o centro daqui até 2022 e lhe ser sugerida uma reciprocidade. Isso é olhar para a esquerda, um movimento necessário à construção do centro, que não exclui o outro, mais complexo e mais promissor. Olhar para a direita é a missão mais importante do centro agora, demanda crítica da democracia junto à grande política. Assim como o diálogo com a esquerda, esse só vale se afetar a pequena política. Retorno ao texto já citado:

O que será mais realista? Inventar como candidato um quadro que pretenda reverter essa tendência do eleitorado ou oferecer à centro-direita o programa social-democrático de que ela necessita, nessa conjuntura social e sanitária crítica, para sustentar sua sintonia embaixo? (…) Refiro a uma virtual repactuação entre PSDB e DEM, com provável capacidade de atrair também o MDB e o PSD, dissuadindo-os de voos solo. Ao contrário de 1993/94, o contexto 2021/22 pede orientação social do Estado, em vez de liberalismo econômico. Ao contrário do eleitorado de 1994, o viés da atitude do eleitor é a centro-direita, em vez de centro-esquerda. No tempo em que uma frente da centro-direita à centro-esquerda fez FHC presidente, o PFL forneceu o programa econômico e o PSDB entrou com o quadro político capaz de realizá-lo nas circunstâncias daquele momento. A conclusão inescapável será a de que ideias podem, sim, conversar com a política prática. Aquele arranjo vitorioso esteve longe de ser mera obra de pequena política. Os dados do mundo real estão a sugerir, aos atores de centro e de centro-direita, a inversão dos termos de 1994 para produzir concertação análoga.

O melhor uso que se pode dar hoje a ideias social-democráticas resilientes, por anos, à hegemonia liberal é oferecê-las como dote do centro a uma aliança que pode tirar das cercanias do palácio forças políticas capazes de contribuir para revalidar o mandato de Bolsonaro. Isso não é pouco e é bem mais construtivo do que buscar um purismo de centro. O Brasil agradecerá nas urnas, em 2022 ou depois.

É doutor em Ciência Política pelo IUPERJ, professor de Filosofia e Ciências Humanas da Federal da Bahia. Coordena o grupo de pesquisa Ecos do Subsolo, concentrado em pesquisas sobre teoria e pensamento político. Foi vereador, deputado estadual e secretário de Educação em Salvador

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