30 junho 2022

O centro democrático pode recuperar relevância política

Doutor em Ciência Política, professor e pesquisador se debruça no seu artigo em enumerar as dimensões que tornam relevante um grupo político de centro democrático, a tal da ‘terceira via’. “Isso porque seus principais partidos e líderes estão confusos e perdidos nos últimos quatro anos”, diz ele. Entre os erros estão privilegiar a briga pelo poder interno em vez de procurar um caminho unificador e nem sempre delimitar a diferença entre a posição centrista democrática e o Centrão. Há claras dificuldades em construir uma identidade comum e efetivamente distinta do bolsonarismo, trilhando o caminho contrário do lulismo.

Participar de maneira decisiva do processo democrático vai além das vitórias eleitorais. Uma força política pode se tornar relevante para o jogo político por cinco razões: pela defesa da própria democracia (1); por sua capacidade de compreender o sentimento da população (2); por seu poder de influenciar a agenda pública (3); pela busca e conquista de cargos eletivos (4); e, caso derrotada na disputa eleitoral, pela maneira como atua como aliada ou adversária dos governos eleitos (5). Ocupar esses papéis envolve a definição de uma identidade política e estratégias de mais largo prazo.

Elencar as dimensões que tornam relevante um grupo político é uma tarefa essencial para o chamado centro democrático, por vezes autointitulado de terceira via. Isso porque seus principais partidos e líderes estão confusos e perdidos nos últimos quatro anos. Desde a derrota na eleição de 2018, nunca mais encontraram o eixo, cometendo dois erros estratégicos.

O primeiro foi privilegiar a briga pelo poder interno em vez de procurar um caminho unificador. Vários nomes foram lançados, o que muitas vezes significa não ter nenhum, e o conflito dentro do PSDB foi fratricida. Sabe-se que a construção de um nome nacional para a campanha presidencial depende de tempo, de modo que teria sido melhor lançar um candidato pelo menos um ano antes da eleição, especialmente porque o confronto seria com duas grandes lideranças populares como Lula ou Bolsonaro.

O segundo erro foi nem sempre delimitar nitidamente a diferença entre a posição centrista democrática e o Centrão. A oposição do centro democrático ao Governo Bolsonaro foi muitas vezes dúbia e algumas de suas lideranças, como o deputado Aécio Neves, beneficiaram-se de um governismo mal disfarçado em sua aliança com o presidente da Câmara, Arthur Lira. Outro partido que, em tese, comporia esse grupo, o União Brasil, tem boa parte de suas lideranças apoiando o bolsonarismo. A liderança que mais marcou publicamente sua divergência com a presidência bolsonarista foi o governador paulista, João Dória, mas isso não o levou a ser um comandante inconteste dessa proposta de terceira via.

Em poucas palavras, o centro democrático teve dificuldades de construir uma identidade comum e efetivamente distinta do bolsonarismo, trilhando o caminho contrário do lulismo, que unificou os partidos de centro-esquerda e montou sua plataforma política dos últimos anos em torno do antibolsonarismo. Isso explica, em parte, a posição eleitoral atual de cada um destes grupos.

Papel de guardiões da democracia

O conjunto de erros cometidos pelo centro democrático enfraqueceu sua posição política, mas é possível algum tipo de reconstrução política que aumente sua relevância nas eleições de 2022 e em qualquer cenário de 2023. Para tanto, deve dar conta dos cinco elementos elencados anteriormente como centrais para o jogo político.

Em primeiro lugar, o centro democrático deve se colocar ativamente como um dos guardiões da democracia. Muitos dos seus integrantes adotaram essa postura recentemente. No entanto, é possível ter uma posição institucional mais forte. Dada a profundidade da crise do sistema político brasileiro e a polarização eleitoral, o centrismo tem condições de liderar um bloco maior de partidos de vários espectros políticos em torno da defesa das regras do jogo, do processo eleitoral e contra qualquer golpe que o presidente Bolsonaro eventualmente busque implementar no país.

Na verdade, a desinstitucionalização do país e a fragilização da democracia já começaram no Brasil. A criação do orçamento secreto, a destruição de várias políticas públicas, o fechamento de vários canais de participação da sociedade nas decisões governamentais, o enfraquecimento dos órgãos de controle e a constante ameaça ao TSE e ao STF, incitando bolsonaristas que atuam na guerra da infâmia na internet e estão fortemente armados, são pontos que mostram que Bolsonaro vem traçando um caminho autocrático. Uma tentativa golpista não seria, desse modo, um raio em céu azul.

Por isso, todos os candidatos antibolsonaristas deveriam escrever um manifesto em defesa do regime democrático, dizendo neste documento que têm diferenças entre si, mas que vão lutar juntos para evitar qualquer retorno do autoritarismo no país. Se as lideranças do centro democrático estiverem entre os que comandam esse processo de resistência, sairão, em qualquer circunstância, como vencedores e como relevantes para o conjunto do sistema político, bem como para toda a sociedade.

O segundo elemento fundamental para a reconstrução da relevância do centro democrático é melhorar sua leitura do estado de espírito da população brasileira na atualidade. Embora tenha quadros sofisticados, com experiência governamental e grande capacidade formuladora, o centrismo parece hoje estar numa bolha elitista, não compreendendo a profundidade da crise social brasileira. Para ter votos, apoios e influência, é fundamental ser popular, algo que o centro democrático não tem conseguido ser.

Mais do que os números da economia, que já são muito ruins no momento, é o aumento da miséria, da fome e, sobretudo, da desesperança que marca grande parte do eleitorado, particularmente as classes D e E. Na verdade, a desilusão com o país também abarca setores das classes C e B, porque a promessa de ascensão social, para a primeira, e de uma vida melhor para os filhos, para a segunda, estão sendo sepultadas pelo bolsonarismo. Pesquisas qualitativas têm apontado uma visão que resume o sentimento majoritário do eleitorado: as pessoas estão indignadas, à flor da pele, e estão querendo alguém que as defenda não só com ideias, mas com empatia e emoção.

Há uma grande parcela da população que se coloca como antipetista, mas a maior parte do eleitorado é, hoje, profundamente antibolsonarista, não compactuando com os valores defendidos pelo presidente Bolsonaro – como o uso das armas e sua visão beligerante de mundo – e recriminando os resultados das políticas públicas em áreas sensíveis aos mais pobres, como educação, saúde, moradia e, especialmente (mas não só), bem-estar econômico. Esse é o espírito da época atual, e o centro democrático tem de incorporar esse diagnóstico para produzir uma ação política popular, empática, emotiva e, obviamente, mas não de forma solitária, orientada por boas ideias.

O principal atributo do centro democrático no momento em que a polarização política domina o cenário é tentar melhorar o debate público. Esse é o terceiro elemento que pode ajudar a fazer um aggiornamento na imagem do centrismo para o conjunto da população.

Agenda sofisticada para políticas públicas

No momento, há, de um lado, o bolsonarismo defendendo ideias de extrema direita vinculadas à guerra cultural e um caminhão de loucuras populistas no plano econômico. De outro, situa-se o lulismo, que pretende fazer uma campanha mais propositiva, denunciando a enorme quantidade de erros do Governo Bolsonaro em políticas de saúde, educação, cultura, meio ambiente e defesa dos direitos humanos, ao mesmo tempo em que utiliza uma estratégia mais defensiva no campo econômico, apontando a piora da qualidade de vida de quase todos os brasileiros, sem apresentar um plano estruturado para tirar o país desse buraco. Como Lula, efetivamente teve, em geral, um comportamento responsável na economia e conseguiu bons resultados em termos de crescimento dos empregos e da renda, seu discurso será que ele não fará algo diferente do que já fez quando esteve no governo – pena que o Brasil estará numa situação bem pior em 2023 do que estava em 2003. 

Neste jogo político, cabe ao centro democrático apresentar uma agenda mais sofisticada de políticas públicas, mostrando o que pode ser feito para que o país possa adotar um rumo diferente do atual. O risco aqui é parecer muito conservador num país que está à beira de um ataque de nervos. Por essa razão, é preciso construir um discurso que compatibilize a responsabilidade econômica e o uso de evidências e de experiências nacionais e internacionais bem-sucedidas com uma postura de maior sensibilidade social. A desigualdade, em suas diversas dimensões, deve ocupar um lugar bem maior na agenda centrista do que ocorreu nos últimos anos.

Mesmo que perca as eleições, o centrismo pode influenciar positivamente o país e o próximo governo se for capaz de apresentar uma agenda detalhada e bem montada de políticas públicas, mas que se sustente num olhar generoso, e não pretensioso, de diálogo social. Essa conversa estruturada por ideias pode, inclusive, fazer com que o lulismo ouça mais o centro democrático, de modo a ter de incorporar efetivamente uma parte de suas propostas, algo que, por ora, está apenas no terreno das promessas eleitorais. De todo modo, cabe lembrar que muitas pesquisas qualitativas mostram uma percepção de que esses partidos de centro têm boas ideias, mas não conversam com ninguém, seja para convencer, seja para aprender com a sociedade. Talvez esta seja a lição maior que uma perspectiva mais tecnocrática que dominou o tucanato deva aprender no atual contexto eleitoral.

A conquista de uma posição de maior relevância passa, ainda, pela apresentação de uma candidatura unificada do centrismo democrático, um quarto e decisivo ponto no caminho da recuperação de espaço político. O mais provável é a junção entre PSDB, MDB e Cidadania, com espaço para outros aliados, em torno do nome da senadora Simone Tebet. Suas chances de vitória são claramente menores do que as de Lula e Bolsonaro, particularmente porque o centro apresentou-se tarde demais para o eleitorado brasileiro. Todavia, qualquer eleição abre algum espaço para surpresas e fatos novos. Mas para que a sorte sorria à Tebet, é preciso que sua campanha entenda o que está em jogo na cabeça do eleitor. 

Aproveitar a fragilização eleitoral bolsonarista

O caminho que pode levar a um crescimento maior da candidatura do centro democrático passa pelo provável desgaste do bolsonarismo nos próximos meses, em especial pela piora da sensação de bem-estar da população. Se esse diagnóstico estiver correto, o mote da campanha não deve ser primordialmente o de uma terceira via diante da polarização. Simone Tebet tem que crescer aproveitando-se da fragilização eleitoral do presidente Bolsonaro; essa é sua única via de subida. Ressalte-se claramente: em termos de conquista de votos, o concorrente principal do centrismo não é Lula, mas o atual incumbente.

Mas não se trata de criar uma polarização com o bolsonarismo, pois a maioria dos eleitores conquistáveis pelo centrismo está hoje, de forma envergonhada ou por falta de opção, com Bolsonaro. O espantalho a se bater é a situação econômica e social do país, que deve ser ressaltada como trágica e de responsabilidade do presidente da República. A única chance de Simone Tebet é apresentar-se de uma dupla maneira, o que é compatível com sua imagem pessoal: como um quadro experiente e capaz de produzir soluções adequadas ao país, mas montando essa identidade em torno do componente emocional que uma candidata mulher pode propor a um país que está à flor da pele. Uma campanha meramente racionalista, como têm feito todas as lideranças do centro democrático, terá poucas chances de furar a polarização.

Tomando como base o retrato atual e as condições mais estruturais, de fato os favoritos são, pela ordem, Lula e Bolsonaro. Não obstante, o centro democrático tem de se apresentar para ganhar eleitores, que podem não votar agora em Simone Tebet, mas podem migrar num futuro próximo do bolsonarismo para o centrismo. Além disso, há candidaturas em estados importantes da Federação, como Rio Grande do Sul e São Paulo, que podem se beneficiar de uma candidatura propositiva, antibolsonarista (os maiores adversários dos candidatos dessa coligação serão apoiados pelo Palácio do Planalto) e que procure chegar, por empatia e emoção, nas camadas mais populares. Conquistar as governadorias nestes colégios eleitorais é uma garantia de sobrevida mais ampla ao centrismo.

Caso haja um segundo turno sem Tebet, o centro democrático terá, dessa vez, que apoiar mais nitidamente um candidato – no caso, o que tiver mais comprometido com a democracia. Num cenário como esse, é possível demarcar as diferenças com o petismo, mas também procurar influenciar a agenda do lulismo, o que realçaria a centralidade desse grupo político no próximo mandato. As opções desastrosas seriam a alienação eleitoral, o que só fortaleceria a polarização, e o apoio escondido, o que não gera um acréscimo de poder dentro do sistema político.

Já se apresenta aqui o cenário que o centro democrático poderá enfrentar, no qual precisará saber como se posicionar como oposição ou até aliado do próximo governo. Essa é a última e mais difícil dimensão que precisa estar no radar dos centristas. Uma vitória de Bolsonaro provavelmente resultaria num mandato mais radical contra a democracia e mais populista no plano econômico. Neste caso, colocar-se desde o início como um defensor da democracia e adotar uma postura oposicionista mais firme são fundamentais para a sobrevivência desses partidos, nem que isso custe a perda de políticos para o Centrão. O caminho oportunista do poder deve ser completamente rechaçado se PSDB, MDB e Cidadania quiserem existir, com alguma relevância, no futuro.

O posicionamento em relação a um possível Governo Lula é mais complexo. Claro que o caminho de uma oposição pura pode ser a opção, caso o lulismo não abra espaço para o diálogo programático sobre a agenda governamental, ou se o novo governo optar pelo Centrão como suporte para a governabilidade. Só que a história pode ganhar outro formato, abrindo um caminho de conversa e de alianças pontuais. Nesta situação, se o centrismo souber mostrar que está jogando a favor do país e sendo decisivo na construção conjunta de soluções, em que todos cedem um pouco, aí será um erro optar apenas pelo oposicionismo.

Ao lidar com essas cinco dimensões a partir das quais é possível recuperar relevância política, o centro democrático poderá aproveitar o frescor de uma candidatura presidencial feminina, a força em alguns colégios eleitorais importantes e a oportunidade de conversar com a sociedade, especialmente para ganhar uma imagem popular, e assim sair da enorme crise de identidade na qual está inserido desde 2018. Em meio a esse processo, outro problema se colocará como urgente: a necessidade de renovação de quadros, com a esperança de emergirem boas lideranças para além do fator etário. MDB e PSDB envelheceram mal, principalmente na forma como veem a sociedade ao seu redor.

O grande desafio do centro democrático, que aparecerá claramente durante as eleições, será conjugar credibilidade e boas ideias com maior inserção social e aumento do diálogo com as forças democráticas. Ganhar é, sem dúvida, uma forma de se tornar mais relevante politicamente, mas ampliar os laços populares e a influência sobre outras forças políticas é outra forma de conquistar prestígio agora e no futuro próximo.


Fernando Luiz Abrucio é doutor em Ciência Política pela USP, professor do Programa de Mestrado e Doutorado em Administração Pública e Governo da FGV-SP e atualmente é pesquisador visitante no MIT (Massachusetts Institute of Technology). Ganhador do Prêmio Moinho Santista como melhor jovem cientista político brasileiro (2001) e vencedor por duas vezes do Prêmio Anpad de melhor trabalho em Administração Pública no Brasil (1998 e 2003). Tem uma coluna no jornal Valor Econômico (República) e um Programa na rádio CBN (Discuta, São Paulo).

Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

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