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Interesse Nacional
01 julho 2010

O Contexto de Política Externa para a Eleição de 2010

A crescente proeminência do Brasil no cenário geopolítico mundial desde pelo menos o início deste século tem feito com que temas de política externa, inexpressivos nas campanhas presidenciais do século passado, passassem a ter mais relevância, embora ainda diminuta quando comparada com a dos principais assuntos da agenda doméstica (economia, segurança, saúde, educação e outros).

A presença brasileira mais expressiva no mundo, de fato, é um fenômeno que se consolida no século xxi, embora tenha raízes na história republicana, em especial após a Segunda Guerra Mundial e particularmente a partir da democratização da América do Sul nos anos 1980 e 1990 e da constituição do Mercosul, que deu massa crítica de negócios às relações internacionais do País, envolvendo mais a iniciativa privada no debate e na formulação de ações nas relações do Brasil com outros países.

A importância do Brasil não deriva nem de fatos recentes nem da vontade de um ou outro líder nacional isoladamente. Seria, portanto, um erro se na campanha presidencial de 2010 ela fosse tratada como uma conquista da administração que encerra seu segundo mandato.


A “teoria do grande homem” de Thomas Carlyle, segundo a qual “a história do mundo nada mais é do que a biografia de grandes homens”, já foi contestada suficientemente por seu contemporâneo Karl Marx, que disse na abertura de O 18 Brumário de Luís Bonaparte: “Os homens fazem sua própria história, mas não a fazem como querem; não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado”.

A simples grandeza territorial e populacional do Brasil, as características de sua localização geográfica, a riqueza dos recursos naturais de que dispõe em seu território já são fatores indispensáveis (ainda que não suficientes) para a condição de ator central nas Américas e no mundo, sem os quais dificilmente ele conseguiria projetar-se além das fronteiras.

Somem-se a isso a maneira sensata e competente com que a história da diplomacia brasileira se escreveu, ao menos desde as fundações deixadas pelo Barão do Rio Branco, um legado de 140 anos de paz com seus múltiplos vizinhos e ainda as conquistas econômicas, sociais, políticas e institucionais obtidas ao longo do tempo, mas muito enfaticamente depois do êxito do Plano Real, e, então, quase todas as condições para aparecer mais e melhor na interação com outros países ficaram dadas.

A conjuntura de declínio relativo da preponderância unipolar global dos eua, que se iniciou com o fracasso da intervenção militar no Iraque e se aprofundou com a crise financeira global de 2008 para cá, a qual revelou as muitas e graves fragilidades estruturais da economia americana e solapou seu poder de iniciativa para tomar sozinho grandes decisões mundiais, tornou natural a ascendência de novos atores, entre os quais o Brasil já detinha situação privilegiada pelo seu currículo acima brevemente sumarizado e pela força de seu soft power.

Sem dúvida, o arrojo e a audácia que marcaram algumas das ações da política externa brasileira a partir de 2003 também tiveram papel fundamental no aumento da exposição do País sob os holofotes no palco do mundo e para a consumação do panorama internacional no qual se desenrola a competição entre Dilma Rousseff, José Serra e Marina Silva para a escolha do sucessor do presidente Luiz Inácio Lula da Silva em 2010.

Este artigo se propõe traçar o desenho básico desse panorama e apontar algumas possíveis diferenças essenciais de enfoque, estilo e prioridade que o próximo governo poderá adotar a partir de 1º de janeiro de 2011 em diante, sem perder de vista a premissa essencial de que muito dificilmente o que virá possa ter diferença radical em relação ao que vem sendo feito, devido à sujeição de qualquer novo presidente aos fatores determinantes acima descritos, que também se aplicaram a seus antecessores.

O declínio relativo dos eua, observado de maneira mais clara depois da crise dos empréstimos hipotecários subprime, foi o fator mais importante para a abertura de espaço para vários países surgirem como polos de poder regional ou mundial. Entre eles, a China, sem dúvida em primeiro lugar, a Europa (embora abalada por seus próprios problemas econômicos, que se tornaram mais agudos em 2010), a Rússia, a Índia, a África do Sul e, com destaque, o Brasil.

É importante, no entanto, manter o realismo: a supremacia americana não acabou e, embora seja provavelmente irreversível sua perda de poder, levará muito tempo até que esse processo se consume por completo. Basta recordar que o segundo maior pib nacional do mundo, o do Japão, tem cerca de um terço do valor do pib dos eua e que o orçamento americano de defesa é equivalente ao de todas as outras nações juntas. Sem falar na grande vantagem tecnológica, científica, cultural que os eua têm em relação aos demais países em termos de difusão e prevalência pelo mundo.

Assim, como, aliás, ensina a história em situações similares de deslocamento de poder que ocorreram anteriormente, muitos anos, talvez duas ou três gerações, vão-se passar até que se possa constatar que o centro das decisões real-mente se deslocou de uma nação para outra ou (como é possível que venha a ocorrer desta vez) para um conjunto de outras.

O Brasil tem aproveitado as brechas de oportunidades que se criaram nestes anos, inclusive porque uma das bases inalteradas da ação diplomática do País ao longo dos séculos xx e xxi é a prioridade dada a fóruns multilaterais, que viram sua importância crescer, tanto os mais antigos, como os originados em Bretton Woods (os quais precisam de reformulações para se adaptarem às novas circunstâncias da realidade, muito diversas das do final da Segunda Guerra Mundial), quanto os mais recentes, entre eles o G-20, que emerge da crise financeira como um dos possíveis instrumentos vitais para a boa governança global.

O secretário-geral do Itamaraty, embaixador Antonio de Aguiar Patriota, em artigo para a revista Política Externa (vol. 19, n. 1, junho/agosto de 2010), sintetiza a atuação internacional do atual governo em três eixos principais: o reforço das relações “tradicionais” (vizinhos e maiores parceiros do mundo desenvolvido), a diversificação de parcerias (especialmente no sentido Sul-Sul) e, no plano sistêmico, o empenho em aperfeiçoar o multilateralismo e os processos de governança global com o objetivo de torná-los “mais inclusivos, legítimos e eficazes”.

Dificilmente um candidato à Presidência com senso de responsabilidade será capaz de discordar da correção desses objetivos, perfeitamente coerentes com o passado da diplomacia brasileira. O ponto talvez mais suscetível a crítica, a ênfase dada à relação Sul-Sul, se revelou indiscutivelmente útil para o País devido à crise econômica que afetou mais gravemente os países desenvolvidos desde 2008. Sem dúvida, a ampliação do comércio entre 2002 e 2008 com a África (330%), Ásia (326%), Europa Oriental (311%) e Oriente Médio (246%) foi um dos fatores que ajudaram a amenizar no Brasil os efeitos da crise, como nota o embaixador Patriota, no artigo citado acima.

Também contribuiu, tanto para ajudar o Brasil a escapar menos machucado pela crise mundial quanto para elevar seu perfil internacional, a manutenção pela administração Lula de princípios econômicos estabelecidos pelas duas que a antecederam e deram ao País a estabilidade monetária e fiscal que o tornou um dos mais atrativos destinos para o capital estrangeiro.

A atuação dos líderes políticos do governo e da oposição em situações que em outros tempos poderiam ter gerado desnecessária instabilidade política m
anteve o Brasil em paz institucional, o que também ajudou significativamente para que ele pudesse tanto destacar-se no cenário mundial como porto seguro para investimentos internacionais quanto credenciar-se como parceiro com credibilidade para atuar nos grandes fóruns mundiais de decisão.

O presidente Lula também deu sequência, evidentemente com suas próprias características de personalidade e estilo, muito diversas das de seu antecessor, ao exercício da diplomacia presidencial em escala elevada, que havia sido uma das características marcantes da atuação internacional brasileira nos anos do governo de Fernando Henrique Cardoso. Ambos, Lula e Cardoso, são inegavelmente vistos na comunidade internacional como dois dos mais respeitados líderes nacionais contemporâneos.


É curioso, no entanto, notar que, durante a campanha de 2002, o então candidato Lula dizia que não faria uso da diplomacia presidencial. Em entrevista à revista Política Externa (vol. 11, n. 2, setembro/novembro de 2002), ele afirmou o seguinte: “Resumindo, não manteremos a tendência do governo fhc de concentração de decisões no Poder Executivo – a chamada diplomacia presidencial – que visava principalmente à obtenção de grande visibilidade internacional para o próprio presidente, sem que houvesse uma correspondência de seus discursos com a política externa real. A nossa proposta é de construção de uma política externa coerente, coordenada pelo Itamaraty, em sintonia com as necessidades internas de crescimento e desenvolvimento social”.

Não obstante, sob sua gestão, o Brasil manteve a tradição de participante ativo e bem-visto em todas as organizações multilaterais relevantes. Por exemplo, este é o país que por mais tempo teve assento no Conselho de Segurança da onu fora os cinco permanentes (e está lá novamente em 2010), que continua sendo um dos principais articuladores das negociações na omc (como foi desde os tempos do gatt), que tem voz decisiva em acordos que dizem respeito ao ambiente (e foi a sede da primeira cúpula mundial sobre o tema, em 1992). E o presidente Lula realizou mais viagens ao exterior e participou de mais reuniões de cúpula do que seu antecessor imediato fizera. A diplomacia brasileira se valeu bastante de sua biografia para promover a imagem e as ideias do País.

Evidentemente, há temas internacionais a respeito dos quais existem divergências sérias no Brasil e isso se reflete no debate político-partidário e na campanha presidencial. Um aspecto da política externa para o qual a campanha eleitoral de 2010 já abriu espaço, desde a formalização das principais pré-candidaturas, para o debate é o de como o Brasil deve expressar sua indiscutível e natural condição de país mais importante da América do Sul, que existe desde sempre, mas que foi tratada com extrema cautela pela diplomacia brasileira durante a maior parte do século xx.

Não foi à toa que o primeiro assunto internacional a ganhar contornos de polêmica entre o principal candidato da oposição, José Serra, e a candidata do governo, Dilma Rousseff, tenha sido o tipo de tratamento que a administração Lula tem dado a um dos países que neste século elegeram governantes que seguem uma linha ideológica mais à esquerda tradicional, no caso a Bolívia.


Uma das questões externas que mais mobilizou a oposição no Congresso do Brasil, nos últimos oito anos, foi a aprovação à entrada da Venezuela no Mercosul, pelos mesmos motivos. Situações específicas, como os problemas enfrentados por empresas brasileiras na Bolívia e na Venezuela, a contestação pelo Paraguai dos termos do acordo de gestão da Usina de Itaipu, as escaramuças entre Colômbia e Equador devido à utilização de território equatoriano por guerrilheiros colombianos, entre outras, também geraram discussões entre governo e oposição de 2003 para cá.

Os que divergem de Lula nesse aspecto acham que a posição do Brasil diante dos vizinhos mais ou menos “bolivarianos” tem sido indulgente e que isso tem trazido prejuízos aos interesses nacionais brasileiros, desde o que são consideradas concessões excessivas em comércio com a Argentina até falta de reação mais firme em favor de companhias privadas ou estatais brasileiras que têm sido alvo de ações de governo na Bolívia ou na Venezuela.

O candidato do psdb, José Serra, que tem uma posição antiga de dúvida em relação às vantagens possíveis que o Brasil pode aferir do Mercosul e de crítica ao que ele vê como pressa no processo de integração, levantou em maio o tema da crescente produção de cocaína na Bolívia direcionada depois a cidades brasileiras e atacou o que ele considera ser condescendência tanto do governo da Bolívia com os produtores de drogas ilegais quanto do brasileiro em relação ao boliviano e, com isso, criou o primeiro debate sobre política externa da campanha, num assunto em que de fato as divergências na sociedade brasileira são mais agudas e enfáticas, como se viu, aliás, também no episódio da deposição do presidente Manuel Zelaya, de Honduras, também um “bolivariano”, que recebeu grande apoio do Brasil, cuja embaixada em Tegucigalpa lhe serviu de abrigo.

Também é fonte de dúvidas e eventuais críticas da parte da oposição a disposição que a administração Lula demonstrou para usar recursos do bndes para o financiamento de obras em países vizinhos. Entre os argumentos oficiais para este tipo de ação é de que a liderança regional tem seus ônus, os quais o Brasil vinha deixando de pagar e de que, no final das contas, esses projetos, executados quase sempre por empresas brasileiras, acabam revertendo em benefício do País.

Mas, para boa parte da oposição, o governo Lula abre mão do interesse nacional com constância em suas relações com alguns vizinhos e tem sido tímido, por excessiva cautela ou simpatia ideológica, na reação ou na crítica de decisões de administrações alinhadas com ou simpatizantes da linha-mestra concebida por Hugo Chávez, mesmo quando elas representam riscos à economia ou à segurança do País.

A presumida relutância a intervir mais resolutamente nessas e em outras situações de desavenças entre vizinhos (como a crise entre Argentina e Uruguai sobre a instalação de uma indústria de papel às margens do rio da Prata) tem sido lembrada pela oposição em contraste com o voluntarismo inegável com que o governo Lula se apresenta para mediar questões distantes do Brasil do ponto de vista geográfico, econômico e cultural, como o conflito entre Israel e palestinos e a situação do programa nuclear iraniano, esta provavelmente a mais controvertida decisão
de política externa dos oito anos na direção do País.

Desde o início destes oito anos, havia a desconfiança de que as relações exteriores seriam o espaço em que o governo Lula daria mais oportunidade para que seus apoiadores ideologicamente posicionados mais à esquerda se expressassem e tivessem poder de decisão, já que – por razões de pragmatismo básico – a política econômica teria de ficar sob um controle mais conservador.

De fato, o campo externo serviu para dar vazão a muita retórica esquerdista desde o início da atual administração. Mas na prática as ações não foram coerentes com o discurso com frequência radicalizado. Previam-se, por exemplo, confrontos entre Brasil e eua devido ao aparente abismo ideológico que separava os presidentes Lula e George W. Bush. Isso, no entanto, não ocorreu. A relação pessoal entre ambos parece ter sido das mais cordiais e as relações entre os dois países não só não teve rusgas no período em que eles governaram, como encorparam de modo significativo do ponto de vista institucional.

Problemas com o governo Obama

Tem sido na administração de Barack Obama, com quem supostamente Lula teria muitos mais pontos de afinidade política e pessoal do que com Bush, que problemas de porte têm surgido no relacionamento entre os dois países fundamentais do hemisfério ocidental, que vêm gerando significativas controvérsias na opinião pública brasileira, com inevitáveis repercussões políticas e eleitorais.

A já citada situação de Honduras foi a primeira a colocar Brasil e eua em campos opostos, embora de início os dois tenham atuado em conjunto para rechaçar o golpe de Estado e para articular o retorno de Zelaya ao poder. Quando, no entanto, os esforços deram em nada e uma eleição resultou na escolha de um novo presidente, Porfírio Lobo, Washington acabou por reconhecer o novo governo, mas Brasília não.

Ocorreram outras situações em que Lula e Obama se desentenderam. Quando o brasileiro, por exemplo, convidou o americano para dar explicações à Unasul sobre o acordo que permite a militares dos eua usarem bases colombianas, a iniciativa foi recusada gelidamente e causou desnecessário ruído nas relações. Mas este episódio é um dos exemplos em que a retórica brasileira foi pesada, mas na prática resultou em nada. O Brasil não só assimilou sem problemas o acordo entre Colômbia e eua como acabou por assinar um acordo militar seu com os eua meses depois, o qual, embora não traga nada de muito significativo, tem importância simbólica porque é o primeiro desde o estremecimento nas relações militares bilaterais durante o governo Geisel, na década de 1970.

Também na assistência às vítimas do terremoto no Haiti houve estranhamento entre os dois governos, cada qual tentando sobrepujar o outro performaticamente para aparecer melhor junto a seus públicos interno e externo como o ator fundamental nos esforços humanitários. O Haiti, aliás, é uma das razões principais que explicam a boa vontade do governo W. Bush em relação ao de Lula, já que este aceitou (por suas próprias razões, para cacifar as pretensões de obter para o Brasil uma cadeira de membro permanente do Conselho de Segurança da onu) o comando da missão de manutenção de paz naquele país em 2004. Historicamente, sucessivas administrações americanas insistiam com as brasileiras para que o Brasil assumisse papel mais preponderante em ações de segurança no hemisfério, com pouco sucesso. A missão no Haiti significou uma mudança nesse paradigma e foi saudada com entusiasmo por Washington, tendo sido citada constantemente como prova da boa qualidade das relações bilaterais.

Também ocorreram escaramuças no campo do comércio, inclusive com o anúncio das retaliações contra os eua no caso do algodão (iniciado, por sinal, na administração de Fernando Henrique Cardoso) e com vários ataques retóricos de Brasília a Washington, que detém a responsabilidade pelo impasse na rodada de Doha. A cúpula do aquecimento global em Copenhague também serviu de palco para novas divergências entre Brasil e eua.

Mas discordâncias em fóruns multilaterais fazem parte da vida diplomática, desavenças e até sanções comerciais ocorrem entre as nações mais amigas, o caso do Haiti sempre foi e será mais de aproximação do que de distanciamento entre Brasília e Washington, e Honduras, afinal, não tem tanta importância para nenhum dos dois países a ponto de servir de risco para a estabilidade de suas relações.

Já o Irã é outra história. Trata-se de um dos mais antigos e importantes inimigos dos eua desde o fim da Segunda Guerra Mundial, ainda visto como uma ameaça ao país pela maioria dos americanos. E o programa nuclear iraniano é absolutamente vital para a segurança de Israel, um dos maiores aliados dos eua no Oriente Médio, região fundamental para a política externa americana, Iraque, ainda sob a proteção de Washington, e Afeganistão, principal teatro de guerra de suas Forças Armadas, e Europa.


Ainda é cedo para avaliar o que ocorreu entre Brasil, Turquia, Irã e eua em abril e maio de 2010, quando o presidente Lula esteve em Teerã e, com o premiê da Turquia, Recep Erdogan, assinou um acordo com o presidente iraniano, Mahmoud Ahmadinejad, sobre a remessa de parte do estoque de urânio levemente enriquecido do Irã para enriquecimento até 20% na Turquia. E este não é o local para examinar suas muitas minúcias e as ainda não totalmente esclarecidas circunstâncias.

Irã e o contencioso com os eua

Importa que esse incidente trouxe o mais sério contencioso entre Brasil e eua em quatro décadas e causou na opinião pública brasileira um dos mais acalorados debates sobre tema de política externa de que se tem notícia recente. Embora quase todos sejam justificadamente cautelosos ao tratar de um assunto sobre o qual há muito que ainda não se sabe, certamente candidatos e eleitores se posicionam de maneira diversa em relação a ele porque envolve muitos valores próximos do cerne de convicções das pessoas.

Um desses valores é o do respeito a direitos humanos. O regime iraniano tem sido muito acusado de desrespeitá-los de modo sistemático e brutal. Pode ser que muitas das acusações sejam improcedentes, mas há uma sensação generalizada em diversos países, inclusive no Brasil, de que há razões para crer que elas têm fundamento. Apesar disso, no entanto, o presidente Lula tem mantido as mais cordiais relações com Teerã e prestado apoio sistemático a seu colega Ahmadinejad, o que tem provocado críticas da parte de muitos oposicionistas. A candidata &ag
rave; Presidência, Marina Silva, tem dado ênfase a esse aspecto específico da política externa brasileira atual em seus pronunciamentos de campanha.

Conselho de segurança da onu

O comportamento do Brasil em votações em órgãos multilaterais que envolvem condenações ou sanções a governos acusados de desrespeito a direitos humanos é outro ponto da política externa atual que vem sendo alvo de críticas da oposição e de setores da sociedade civil. Para os que o censuram, o governo Lula tem sido muito pouco presente na ação a esses regimes por estar interessado em cortejá-los e a seus aliados com vistas a ter sucesso em seu pleito de tornar o Brasil membro permanente do Conselho de Segurança da onu. E há ainda a situação de Cuba, a cujo regime, também constantemente acusado de repressão a direitos humanos, o Brasil também presta apoio irrestrito, outra razão para desavenças com os eua.

Apesar de ser praticamente consensual na sociedade brasileira que o País tem todas as condições de aspirar à cadeira permanente no Conselho de Segurança da onu, há muitos que não aceitam algumas das aparentes táticas que o governo vem usando para ampliar sua rede de apoio à pretensão. Além dessa possível condescendência em direitos humanos, na qual o Brasil vinha tentando construir um histórico respeitável, inclusive para compensar seu próprio déficit no setor durante o regime militar, a administração Lula é atacada por ter feito o que os críticos acham ter sido concessões demasiadas, como quando, por exemplo, deu à China o status de país de livre mercado.

Embora seja muito improvável que haja alguma pessoa pública de expressão no País que defenda que o Brasil volte a buscar a construção de armas nucleares, algo que é proibido pela própria Constituição, o apoio do governo Lula ao projeto do Irã, o discurso de algumas autoridades de primeiro escalão contra o Tratado de Não-proliferação Nuclear, ao qual o Brasil aderiu na gestão de Fernando Henrique Cardoso, e os problemas que o País tem criado a inspeções da aiea a locais onde se desenvolvem seus projetos nucleares, são suficientes para fazer com que o Brasil tenha outra área de atrito com os eua e as principais potências do Ocidente.

Apesar desses temas em que há divergência aguçada entre governo e oposição, é importante voltar a ressaltar que a administração Lula não provocou nenhuma mudança de paradigma na política externa brasileira. No máximo, ela pode ter-se aproximado em alguns aspectos de modelos que têm legitimidade histórica, como a Política Externa Independente de San Tiago Dantas e Araújo Castro (governos Jânio Quadros e João Goulart) e sua sucedânea de Azeredo da Silveira (governo Ernesto Geisel), as quais – por sua vez – tampouco chegaram a significar rompimento com as linhas básicas delineadas pelo Barão do Rio Branco. O Brasil tem tido políticas de Estado em suas relações internacionais, não de governos, o que – poucos haverão de discordar – é um ativo importante do País.

A próxima administração, seja liderada por quem for, certamente manterá seus princípios básicos, assim como o fará também na política econômica e nas instituições políticas, e esta é uma das condições para que o Brasil se mantenha, se possível de modo ainda mais relevante, como ator fundamental no cenário geopolítico mundial.

América do Sul: espaço para mudança

Há muito espaço para mudanças, caso a oposição se eleja, em especial na maneira como o País trata com seus vizinhos. A América do Sul e seu entorno latino-americano são o espaço natural de atuação externa do Brasil e é significativo que seja aqui que se concentrem as maiores razões de desentendimento entre governo e oposição e onde haja a maior possibilidade de alterações de rumo político.

É preciso, ainda, cuidado para evitar erros que podem ser atribuídos ao que às vezes aparenta ser um deslumbramento com o nível de prestígio global que o País alcançou, realçado não apenas pela sua inegável maior importância relativa em fóruns decisórios multilaterais, mas até por sua escolha para sediar importantes eventos mundiais, como a Copa do Mundo de Futebol de 2014 e os Jogos Olímpicos de 2016.

O excesso de protagonismo pode levar o País a se aventurar em empreitadas para as quais não dispõe de recursos materiais, logísticos, mesmo diplomáticos suficientes para ter boas chances de êxito. Fracassos retumbantes podem colocar em risco a credibilidade nacional, que vem sendo construída há décadas em bases sólidas, como se tem procurado demonstrar.

Como o embaixador Rubens Ricupero argumenta em artigo editado pela revista Política Externa (vol. 19, n. 1, junho/agosto de 2010), embora seja grande e maior do que nunca antes, o prestígio internacional do Brasil durante o governo Lula não foi suficiente para garantir ao país nenhuma de suas principais ambições em política externa: o assento permanente no Conselho de Segurança da onu, a conclusão favorável da rodada de Doha, a reforma do fmi e do Banco Mundial de acordo com os interesses brasileiros, a revitalização do Mercosul, uma situação de estabilidade entre países da América do Sul que estão à beira de graves conflitos, o fim dos atritos comerciais com a Argentina. Acrescente-se que esse grande prestígio também não foi o bastante para o Brasil ficar com nenhum dos muitos cargos de comando de organizações multilaterais que o governo ambicionou obter nestes oito anos: da presidência do bid à direção-geral da omc.

Prestígio é bom para um país, mas não garante resultados concretos a favor de seus interesses nacionais nem é obtido por meio de ações espetaculares de um líder ou de um governo, mas se constrói ao longo de décadas por meio de políticas de Estado coerentes e bem formuladas, como é o caso do Brasil. Mantê-las assim é indispensável para que ele persevere e seja alavanca para a obtenção de benefícios concretos para a nação.

Foi isso o que fizeram as duas mais recentes administrações federais do Brasil, é o que se espera que venha a fazer a próxima, e não há razões para temer que ela não o faça, pois todas as três pessoas com chances de se eleger presidente têm dado demonstrações efetivas de comportamento e discurso públicos de seu compromisso com as instituições e as práticas que vêm tornando o Brasil um país muito expre
ssivo no conjunto das nações.

É professor do Insper. Foi correspondente da Folha de S.Paulo nos EUA e editor da Revista Política Externa. É livre-docente e doutor pela USP e mestre pela Michigan State University. Membro do Conselho Curador da Fundação Padre Anchieta

Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

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