04 janeiro 2021

O Poder da minoria e a crise da democracia americana

“Nós não somos uma democracia”, tuitou o senador republicano Mike Lee um mês antes da eleição presidencial que deu a vitória ao democrata Joe Biden. Sua intenção não era denunciar falhas no sistema representativo, mas sim defender a ideia de que a vontade da maioria não é um elemento essencial do sistema político dos Estados Unidos, o país que muitos consideram a mais antiga democracia do planeta.
O post de Lee recebeu 45 mil curtidas e foi retuitado 7,3 mil vezes. A relativização da vontade popular ganhou força na retórica dos conservadores americanos nos últimos anos, na medida em que o resultado do voto direto se dissociava cada vez mais da decisão do Colégio Eleitoral sobre quem deve presidir o país. O argumento principal de Lee e outros conservadores é o de que os Estados Unidos são um República, e não uma democracia.[1]
O Colégio Eleitoral é o maior símbolo do eventual divórcio entre maioria dos eleitores e a representação, mas ela é ainda mais evidente no Senado, onde cada Estado tem três cadeiras, independentemente de sua população. Na Câmara dos Deputados, o desenho casuístico de distritos eleitorais favorece o partido que controla o processo, diluindo os votos da legenda adversária. A definição das fronteiras dos distritos eleitorais é feita pelas assembleias legislativas, controladas pelo Partido Republicano em 32 dos 50 estados.
Essas distorções são provocadas por elementos estruturais do modelo político americano e aprofundadas pelas diferenças na distribuição geográfica entre os seguidores dos dois partidos que disputam o poder e uma boa dose de casuísmo.
Democratas preferem viver em grandes centros urbanos, enquanto republicanos optam por lugares menos povoados do interior ou da zona rural, que têm peso desproporcional no sistema representativo do país. Essas distorções tendem a se acentuar, o que pode levar a uma crise de legitimidade política nos EUA. Aliadas à polarização crescente do país, elas devem, no curto prazo, criar sérios obstáculos para Biden implementar sua agenda.
Voto popular x Colégio Eleitoral
Candidatos democratas ganharam o voto popular em sete das últimas oito eleições presidenciais, um feito que não havia sido registrado por nenhuma legenda desde a criação do sistema partidário moderno dos EUA, em 1828. Ainda assim, em apenas cinco das oito vezes, o vencedor democrata chegou à Casa Branca.
Em 2016, Hillary Clinton teve 2,9 milhões de votos a mais que Donald Trump, mas perdeu no Colégio Eleitoral com um placar de 304 a 227 delegados em favor de seu adversário. Dezesseis anos antes, o democrata Al Gore derrotou o republicano George W. Bush por uma diferença de 540 mil votos, mas naufragou no Colégio Eleitoral por apenas um delegado. Foi a primeira vez desde 1888 em que a vontade da maioria não se refletiu na escolha do presidente.
Biden teve uma clara vitória sobre Trump. Com vantagem de 6,2 milhões de votos, ele recebeu o maior percentual do voto popular dado a um candidato que desafia um presidente em exercício desde Franklin Delano Roosevelt, em 1932. O democrata também conquistou 306 delegados no Colégio Eleitoral, número similar ao obtido por Trump em 2016.
Mas Biden esteve muito perto de perder a eleição, apesar de sua grande dianteira no voto popular. Em três estados cruciais para a vitória, sua vantagem total foi de 112,7 mil votos: Pensilvânia (81,7 mil ou 1,2 ponto percentual), Wisconsin (20,6 mil, 0,7 ponto percentual) e Arizona (10,5 mil, 0,3 ponto percentual).
Se tivesse perdido nesses três estados, Biden não alcançaria o número mínimo de 270 delegados necessários para a eleição no Colégio Eleitoral, mesmo tendo cerca de 6 milhões de votos a mais que Trump.
Erwin Chemerinsky, professor de Direito Constitucional da Universidade da Califórnia, observa que estados com apenas 23% da população dos EUA têm um número de delegados no Colégio Eleitoral suficiente para eleger o presidente da maior economia do mundo. “Os americanos se agarram a muitos mitos. Um deles é o de que vivemos em uma democracia”, escreveu Chemerinsky.
À diferença do tuite do senador republicano que abre este artigo, seu tom era de inconformismo e crítica. “Duas vezes nos últimos 16 anos o candidato que perdeu no voto popular foi, no entanto, selecionado para ser presidente por causa do Colégio Eleitoral. Não há qualquer outro País democrático em que isso poderia acontecer.”[2] Ambos os candidatos que chegaram à Casa Branca sem apoio da maioria dos eleitores eram do Partido Republicano.
Os defensores do Colégio Eleitoral argumentam que ele deu estabilidade à democracia americana. Mas, se a dissociação entre voto popular e resultados persistir, o modelo se transformará em fonte de instabilidade e conflito. Um número cada vez maior de americanos se concentra em grandes regiões metropolitanas e vê o peso de seu voto diminuir em relação aos que moram em pequenas cidades ou regiões rurais, que tendem a ser mais conservadoras.
Estado menos populoso dos EUA, Wyoming vota em candidatos republicanos à presidência desde 1964. A Califórnia, com a maior população, é um sólido estado democrata. Em 1900, a população da Califórnia era 16 vezes maior que a de Wyoming. A diferença agora é de 67 vezes. Os californianos precisam de 714 mil votos para eleger um delegado no colegiado que escolhe o presidente. No Wyoming, são necessários apenas 195 mil. Ou seja, o poder de um eleitor do Estado é 3,7 vezes maior que o de um da Califórnia. E ambos têm o mesmo número de representantes no Senado.
“Nosso sistema político cada vez mais permite que a minoria prevaleça sobre a maioria”, escrevem os cientistas políticos E. J. Dionne Jr., Norman Ornstein e Thomas E. Mann no livro One Nation After Trump (Uma Nação Depois de Trump, em tradução livre).[3]
Como muitos dos elementos do modelo de governo dos EUA, a distorção reflete a preocupação em equilibrar os interesses dos Estados da Federação e o peso da vontade popular que marcou a elaboração da Constituição dos EUA, no fim do século 18. O problema é que esse compromisso leva cada vez mais à perda de representatividade da maioria dos eleitores.
Ornstein e seus coautores observam que o percentual de americanos que vivem em pequenas e grandes regiões metropolitanas passou de 63%, em 1960, para 84%, em 2010 – uma diferença de 21 pontos percentuais.
Desequilíbrio no Senado
O maior desequilíbrio no peso dos votos das regiões urbanas e rurais ocorre no Senado, a Casa do Parlamento desenhada para representar os estados e atuar como poder moderador da Câmara dos Deputados, que representaria o voto popular. O cientista político David Birdsell, do Baruch College, prevê que, em 2040, 70% dos americanos viverão nos 15 estados mais populosos dos EUA (de um total de 50). Isso significa que esse universo conseguirá eleger apenas 30 dos 100 senadores do país. Os restantes 70 serão eleitos pelos 30% de eleitores que viverão em estados com menor população, que tendem a ser republicanos.[4]
A equação de forças do Senado que Biden terá em seus dois primeiros anos de mandato só seria conhecida no dia 5 de janeiro, data de duas eleições em segundo turno no estado da Geórgia. Antes delas, os Partidos Democrata e Republicano haviam conquistado, cada um, 48 das 100 cadeiras da Casa. Biden foi o primeiro democrata a vencer na Geórgia em 28 anos, mas a diferença foi de apenas 0,2 ponto percentual, ou 12,67 mil votos. É pouco provável que o tradicional Estado republicano eleja dois senadores democratas.
Se os republicanos ganharem as duas cadeiras, a minoria democrata de 48 senadores representará 20 milhões de pessoas a mais do que a maioria da legenda adversária. Se o resultado for de 50 a 50, o partido de Biden representará 41 milhões de pessoas a mais, mesmo controlando apenas metade do Senado. Nesta hipótese, o voto de desempate caberá à vice-presidente, Kamala Harris.
A vitória de Biden não será completa sem o Senado. Além de ser essencial em mudanças legislativas, a Casa tem o poder de aprovar nomeações de juízes da Suprema Corte e de dezenas de tribunais federais ao redor do país, assim como os integrantes do gabinete do presidente.
O controle do Senado foi essencial para os republicanos transformarem o perfil da Suprema Corte no governo Trump, com a indicação de três magistrados conservadores. Também foi instrumental para eles negarem a apreciação do nome de Merrick Garland, apontado pelo ex-presidente Barack Obama para a Corte em março de 2016, nove meses antes da eleição presidencial que seria vencida por Trump.
Na época, os republicanos alegaram que a escolha deveria ser deixada para o sucessor de Obama. Agora, eles aprovaram o nome de Amy Coney Barrett em velocidade recorde, a tempo de ela assumir o cargo sete dias antes da eleição em que o atual presidente foi derrotado.
Não há presidencialismo de coalizão nos EUA e a crescente polarização significa que votações cruciais levam cada vez mais ao estrito alinhamento dos senadores ou deputados com seus partidos. O nome de Barrett, por exemplo, recebeu apoio de 52 republicanos contra 48 democratas, na primeira vez em 151 anos em que um integrante da Suprema Corte foi aprovado sem nenhum voto do partido minoritário.
O Judiciário tem enorme influência na sociedade americana. Questões como o direito ao aborto, liberdade de imprensa e o casamento entre pessoas do mesmo sexo foram definidas pela Suprema Corte ao interpretar a Constituição, e não pelo Congresso.
Biden precisará do Senado para implementar grande parte de sua agenda doméstica. Suas propostas de aumentar a tributação dos mais ricos, reformar o sistema de saúde e investir US$ 1,7 trilhão de recursos federais em energia renovável pelos próximos dez anos dependem de aval do Legislativo.
Supressão do voto como estratégia
Com a preferência de uma parcela decrescente do eleitorado, o Partido Republicano adotou a supressão do voto como estratégia eleitoral – e não me refiro às tentativas de Trump de interromper a contagem dos votos e levar a decisão de 2020 para a Suprema Corte.
Os mecanismos são mais sutis e quase sempre têm a roupagem de medidas supostamente adotadas para combater fraudes eleitorais, ainda que sua ocorrência seja insignificante. O efeito é dificultar o acesso às urnas de negros, hispânicos, pobres e jovens, que tendem a votar no Partido Democrata. Na eleição de novembro, 87% dos afro-americanos escolheram Biden, que também conquistou 60% dos votos na faixa etária de 18 a 29 anos.[5]
Os esforços de supressão de voto ganharam fôlego a partir de 2013, quando a Suprema Corte derrubou dispositivo do Ato do Direito de Voto, de 1965, que obrigava estados do Sul que tiveram segregação racial a submeter ao governo federal qualquer mudança em suas regras eleitorais.
Desde então, vários estados dificultaram o exercício do voto. A maneira mais direta é a exigência de documento com foto para identificação do eleitor. A condição seria razoável se o Estado americano provesse a todos os seus cidadãos uma cédula de identidade ou título de eleitor gratuitos, como ocorre no Brasil. Nos EUA, o eleitor tem de arcar com os custos da identificação e a mais comum delas é a carteira de motorista. Consegui-la exige dinheiro, a habilidade de dirigir e, em geral, a propriedade de um carro.
A obtenção de outros documentos também impõe custos aos cidadãos, na forma de despesas de transporte, taxas oficiais e perda de horas trabalhadas. A American Civil Liberties Union, a principal entidade de defesa dos direitos civis nos EUA, calcula o gasto entre US$ 75 (R$ 424) e US$ 175 (R$ 989). Em alguns estados, a definição dos documentos aceitos reflete preferências políticas. No Texas, governado pelo Partido Republicano, os eleitores podem se identificar com licenças para porte de armas, mas carteiras de estudantes não são aceitas. O primeiro grupo tende a ser republicano, enquanto o segundo se alinha mais aos democratas
Estima-se que 21 milhões de americanos, o equivalente a 11% dos cidadãos, não possuem documento de identificação emitido pelo governo.[6] Pesquisa de 2018 do Public Religion Research Institute e da revista The Atlantic


[1]
Entre os exemplos dessa posição está estudo divulgado pela The Heritage Foundation, um dos principais think tanks conversadores dos EUA: Bernard Dobski, “America is a Republic, Not a Democracy”, The Heritage Foundation, 19 de junho de 2020, https://www.heritage.org/american-founders/report/america-republic-not-democracy, acesso em 1º de dezembro de 2020. 
[2]
Erwin Chemerinsky, “The First Priority: Making America a Democracy”, American Prospect, 15 de janeiro de 2019, https://prospect.org/power/first-priority-making-america-democracy/, acesso em 30 de novembro de 2020.
[3]
E. J. Dionne Jr., Normal Ornstein e Thomas E. Mann, “One Nation After Trump, St. Martin’s Press, fevereiro de 2020.
[4]
Philip Bump, “By 2040, two-thirds of Americans will be represented by 30% of the Senate”, Washington Post, 28 de novembro de 2017, https://www.washingtonpost.com/news/politics/wp/2017/11/28/by-2040-two-thirds-of-americans-will-be-represented-by-30-percent-of-the-senate/, acesso em 30 de novembro de 2020.
[5]
“Exit Polls – President”, CNN Politics, https://edition.cnn.com/election/2020/exit-polls/president/national-results, acesso em 1º de dezembro de 2020.
[6]
“Oppose Voter ID Legislation – Fact Sheet”, American Civil Liberties Union, 2017, https://www.aclu.org/other/oppose-voter-id-legislation-fact-sheet, acesso em 1º de dezembro de 2020.

Cláudia Trevisan é diretora-executiva do Conselho Empresarial Brasil-China, ex-correspondente do jornal O Estado de S.Paulo nos EUA e na China, autora dos livros “Os Chineses” e “China – O Renascimento do Império” e mestre pela Escola de Estudos Internacionais Avançados da Universidade Johns Hopkins.

Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

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