09 outubro 2024

Os atuais ‘Supremos’: Estados Unidos e Brasil*

Conversávamos e analisávamos decisões da Suprema Corte dos Estados Unidos. Em jantar com os professores da Harvard Law, Terry Fischer e David B. Wilkins. Dezembro de 2000. Lá mesmo em Cambridge, Massachusetts.
De repente, disse Fischer (o pioneiro dos estudos de Direito e Tecnologia, criador do Beckman Center), em quase autorreflexão: “A nossa Suprema Corte está prejudicando a democracia”.

Prenunciou-se um mal-estar. Com desesperança quase certa. Se não foram estas exatas palavras, o sentido foi. Levantou nossa imediata curiosidade acadêmica. Tomou a pauta.

Um pouco mais de um mês antes, em 7 de novembro, houvera a disputa presidencial: George W. Bush v. Al Gore. Acirrada. Quem ganhasse na Flórida seria o presidente. Após a contagem inicial de votos, a margem que separava os dois candidatos naquele colégio eleitoral era de menos de 0,5%.

Laurence Tribe, também professor de Harvard, era o advogado de Gore. Requereu à Suprema Corte recontagem dos votos por máquinas, segundo a legislação eleitoral daquele estado. Alegou suspeita de erro ou mesmo de fraude.

Não apenas os sistemas eleitorais de cada estado são diferentes, mas dos vários condados da própria Flórida eram diferentes também. No caso, a principal discussão estava no próprio design das cédulas. Não seguiam mesmo padrão. A máquina não conseguia contar bem. Ambiente propício a erros e manipulações.

Já vimos, recentemente, iguais discussões aqui no Brasil. Propunham-se mudanças. Voto impresso ou voto eletrônico. Código aberto ou código fechado. Aqui somos diferentes. Temos claros critérios nacionais, uma noção de federação diferente, com uma Justiça Eleitoral e Código Eleitoral únicos para todo o país.

Lá nos Estados Unidos, a Supreme Court aceitou julgar o caso Bush v. Gore. O país parou. A democracia parou. Esperava-se decisão. Foi momento máximo de potencial influência da Corte nos destinos do país.

A Corte deu a vitória aos republicanos, a Bush. O resto é história. O Onze de Setembro, a Guerra do Afeganistão, a Guerra do Iraque e tanto mais… 

Poderia ter sido diferente? Não sabemos.

Mas o que espantara Terry Fischer naquele momento foram as justificativas para sustentar a tese vencedora:  

Dada a avaliação da Corte de que o processo de recontagem em andamento provavelmente estava sendo conduzido de maneira inconstitucional, a Corte [em liminar do dia 9 de dezembro de 2000] suspendeu a ordem que direcionava a recontagem para que pudesse ouvir este caso e emitir uma decisão rápida. O dispositivo [legal, do Estado da Flórida] de contestação [das eleições], como foi mandatado pela Suprema Corte Estadual, não está bem calculado para sustentar a confiança que todos os cidadãos devem ter no resultado das eleições. O Estado [da Flórida] não demonstrou que seus procedimentos incluem as salvaguardas necessárias.[1] (Tradução nossa)

E finalizava:

Nossa consideração está limitada às circunstâncias presentes, pois o problema da proteção igualitária nos processos eleitorais geralmente apresenta muitas complexidades.[2] (Tradução nossa)

A decisão foi per curiam, omitindo até mesmo quem foi o relator. Passava-se por opinião “da Corte”, um justice impessoal. Geralmente, as decisões per curiam se limitam a casos simples com jurisprudência consolidada. Não era o caso. Isso ficou claro com a quantidade de concurring opinions e dissenting votes publicados pelos justices.  

Para Fisher, fora clara decisão política. Com argumentos — digamos — inusitados. Um espanto. A Corte decidira: (a) por conta de “provável inconstitucionalidade”; (b) por conta de um sistema eleitoral que “não sustenta a confiança que todos os cidadãos devem ter”; mais ainda: (c) por meio de uma decisão “limitada às circunstâncias presentes”.

Ou seja, foi decisão única, pressionada pela pressa, sem a legitimadora confiança.

Não podemos confundir contramajoritário com antidemocrático. Diz Adam Przeworski, um dos maiores cientistas políticos do mundo, que “a democracia é um método para realizar valores extrínsecos”, na visão maximalista. Método tem regras, passo a passo, limites, objetivos.

A confiança nas instituições, no médio prazo, depende da constância e da fidelidade do método decisório. De transparência, honestidade e lisura outros também. Que legitimam.

A falta de confiança, tanto lá quanto cá, está crescentemente refletida nas pesquisas de opinião e de percepção.

No Brasil, a pesquisa da AtlasIntel de 4/9/2024 mostrou que 49,7% dos brasileiros dizem não confiar no trabalho do STF. Em 2023, eram 44% os que tinham essa percepção. E 11% eram indecisos, contra os 4% de hoje. Um dos piores critérios avaliados foi a imparcialidade, julgada como péssima por 51% dos entrevistados.

Lá também

Nos EUA, a Gallup realiza um levantamento anual da opinião pública dos americanos sobre a Suprema Corte. Os resultados divulgados em 1º de julho deste ano indicam que 52% dos americanos desaprovam a Corte. Quatro por cento a menos que no ano passado. Porém, muito acima até mesmo do que foi levantado em 10 de janeiro de 2001, que foi de apenas 29% de desaprovação. Mesmo que ainda “no calor do momento” da decisão de Bush v. Gore, proferida menos de um mês antes.

Supremo só com legalidade, sem legitimidade, não faz democracia. Foi assim durante o regime ditatorial. Daí o constituinte ter acrescido à Constituição de 1988 um inusitado adjetivo: Estado “Democrático” de Direito. Quer dizer: Estado Legítimo de Direito.

Tínhamos legalidade, mas não tínhamos legitimidade. Não a legalidade do voto, mas autolegalidade da força. O Ato Institucional nº 1 dizia que os vitoriosos detinham Poder Constituinte Originário. Não é o voto que legitima. É a força.

Criam-se duas legalidades: uma externa e uma interna. Dois ordenamentos. Uma pirâmide normativa “de duas cabeças”[3]. Mantém-se o rule of law para a legitimidade externa. Já a legitimidade interna, para o povo, é mobilizada pela imagem genérica do cumprimento das regras do jogo aparentemente constitucional.

Quanto ao argumento de Bush v. Gore, em que “provavelmente” é usado como “realmente” para sustentar a inconstitucionalidade e mandar parar a contagem dos votos, trata-se de ilusão jurisdicional. Mas acontece também no Brasil.

Deltan Dallagnol foi condenado pelo TSE, em maio de 2023. Teve seu mandato cassado. Não pelo que ele fez, mas pelo que ele não fez, e que poderia ter feito. Ele não foi condenado nos processos administrativos, mas poderia ter sido! Por “ilegalidade provável”!

Diz o relator, ministro Benedito Gonçalves:

Dito de outro modo, segundo os recorrentes, embora via de regra essa causa de inelegibilidade pressuponha a existência de processo administrativo disciplinar (PAD) que possa acarretar aposentadoria compulsória ou perda do cargo, aduz-se que o recorrido antecipou seu pedido de exoneração de forma proposital exatamente para evitar que os outros 15 procedimentos diversos que tramitavam contra ele fossem convertidos ou dessem origem aos PADs. [4] (Grifos nossos)

E a decisão da corte americana não criava jurisprudência. O que, na teoria jurídica, é o limite anterior que a decisão constitucional tem de respeitar. Não se julga o que “provavelmente” aconteceu, mas o que de fato aconteceu.

O nosso Supremo importou o conceito de jurisprudência vinculante, o que limita o autoritarismo do ministro. Mas não importou nem a força decisória nem os mecanismos organizacionais para se identificar qual é a jurisprudência dominante e qual não é. Funciona no julgamento como se fosse apenas citação judicial erudita.

Tentativas têm sido feitas para dar força normativa às jurisprudências importantes. Como a súmula vinculante, criada pela Emenda 45.

Diz a Constituição, no art. 103-A, que o Supremo poderá, após reiteradas decisões, aprovar súmula que terá efeito vinculante em relação ao Poder Judiciário e à Administração Pública. Decisão que contrariar súmula é cassada. O ato administrativo é anulado. Ou seja, tem força de lei.

O presidente Luís Roberto Barroso pretende apresentar projetos estabelecendo único padrão organizacional de acordão. Ajuda na identificação dos precedentes. Hoje, temos acórdãos para casos semelhantes com 30 ou com duas páginas. Que tratam de um tema relevante ou de dez ao mesmo tempo. São incomparáveis.

Mas, naquele jantar em Cambridge, a espontânea preocupação de Terry Fischer com certeza era mais ampla.

Robert Dahl, clássico cientista político, em seu livro A Constituição norte-americana é democrática?, já previa erros de modelagem eleitoral na democracia dos EUA. Entre eles, o principal, o óbvio ululante: a eleição não é direta. É por colegiados eleitorais. Cada estado com seus sistemas, seus padrões, suas regras diferentes. O que resulta em dois graves problemas para a democracia.

Primeiro, se o peso dos colegiados é diferente para a mesma quantidade de votos, os votos são desiguais. Não existe o princípio basilar de “um cidadão, um voto”.

Segundo, o resultado pode ser que a maioria não eleja a presidência, mas sim a minoria. Não deu ou dá outra. Gore teve mais votos do que Bush e perdeu. Hilary teve mais votos do que Trump e perdeu. Os cidadãos podem ser iguais, mas seus votos não o são. Dependem do colegiado do qual fazem parte.

Para Fischer, a ponta do iceberg da politização judicial suprema emergia. E avançaria silenciosamente, no decorrer dos anos. Cada vez mais visível. Até hoje. E de várias formas.

Politização ideológica que se esconde na dicotomia liberais versus conservadores. No fundo, politização partidária entre republicanos e democratas.

Em 2016, por exemplo, o Senado — então de maioria republicana — se recusou a avaliar e decidir sobre se Merrick Garland, o indicado por Barack Obama, deveria ou não ir para a vaga de Antonin Scalia na Suprema Corte. Naquela ocasião, Mitch McConnell, líder do Senate Judiciary Committee, fez claro bloqueio. Disse a Obama: “Presidente, o senhor não vai preencher a vacância da Suprema Corte”.

O bloqueio político-partidário da votação, por decurso de prazo legal, deu certo. Quando assumiu, Trump mudou. Retirou a indicação de Obama e indicou justices como Brett Kavanaugh e Amy Coney Barrett. Votados e aceitos, mas conservadores. Constituíram nova maioria na Corte.

Prazos judiciais com efeito político

Outro exemplo sobre a influência da decisão constitucional no resultado político eleitoral: a Corte americana poderia ter adiado, mas a pressão eleitoral a fez julgar a tempo adequado a constitucionalidade do projeto de saúde de Obama. Decidindo pouco antes das eleições. A ponto de ser considerado um dos fatores decisivos para a vitória presidencial de Obama.

A gestão das pautas e prazos dos casos que chegam ao Supremo ou na Corte americana é um dos fatores capazes de influenciar eleições. Como foi aqui no caso do Presidente Lula. Tanto para lá como para cá, importa tanto quanto o mérito dos casos pendentes: Bolsonaro e Trump poderão ou não participar das futuras eleições? Quando decidir?

Repito: pautas e prazos judiciais são, hoje em dia, fatores tão eleitoralmente decisivos quanto o próprio mérito das decisões. E são instrumentos que passam desapercebidos, camuflados pelo processualismo, pela burocracia.

Com apoio de uma nova maioria na Corte conservadora de Trump, em 2022, landmark cases como a histórica decisão de Roe v. Wade, sobre aborto, são derrubados. No mesmo ano, outra decisão de matiz ´trumpiana’ amplia o acesso às armas.

Agora em 2024, a Corte confere imunidade para atos oficiais dos presidentes, inclusive para Trump. O chief justice John Roberts, conservador indicado por George Bush, em seu voto pela maioria, estabeleceu:

O presidente não goza de imunidade pelos seus atos não oficiais, e nem tudo o que o presidente faz é oficial. O presidente não está acima da lei. Mas o Congresso não pode criminalizar a condução presidencial das responsabilidades do Executivo sob a Constituição. E o sistema de separação de poderes, desenhado pelos constituintes, sempre demandou um Executivo enérgico e independente. O presidente não pode, portanto, ser acusado pelo exercício do seu núcleo de poderes constitucionais e ele tem direito a, no mínimo, uma imunidade presuntiva de acusações por todos os seus atos oficiais. Essa imunidade se aplica igualmente a todos os ocupantes do ‘salão oval’, independentemente de razões políticas ou partidárias.[5] (Tradução nossa).

A justice Sonia Sotomayor, indicada por Obama, como relatora do dissenting vote, reagiu. Explicitou a fratura na corte. Um dos mais violentos votos jamais escritos. Grito de alerta.

A decisão de hoje, de garantir a ex-presidentes imunidade penal, remodela a instituição da presidência. Ela zomba do princípio fundacional da nossa Constituição e sistema de governo de que ninguém está acima da lei. […] Porque a nossa Constituição não protege um ex-presidente de responder por atos criminosos e de traição, eu divirjo. […]

A Corte agora confronta uma questão que nunca precisou ser respondida na História da nação: se um ex-presidente goza de imunidade contra persecução criminal federal. A maioria pensa que deveria gozar, então, inventa uma imunidade “atextual”, “ahistórica” e injustificável para pôr o presidente acima da lei. […] Presuntiva ou absoluta, sob a decisão da maioria, os usos que o presidente faz de seus poderes oficiais para quaisquer fins, mesmo os mais corruptos, são imunes à persecução.[6] (Tradução nossa).

A repercussão foi mundial. Aumenta a discricionariedade, quase arbítrio do presidente — para declarar guerra, por exemplo.  O Financial Times, Londres, em edital, entendeu que a corte teria derrubado um dos pilares da democracia:

Com os tribunais agora incapacitados de responsabilizar um presidente pela maioria das ações tomadas no cargo, a decisão transfere essa responsabilidade para o Senado e a Câmara dos Deputados. Mas, como mostram os impeachments fracassados de Trump, a atual legislatura polarizada dos Estados Unidos revelou-se mal equipada para conter um demagogo. Ao priorizar uma presidência “enérgica” em detrimento de uma presidência responsável, os juízes conservadores da corte destruíram um pilar fundamental do sistema americano.

Quem por primeiro mencionou a necessidade de um executivo com competência rápida, num mundo cheio de guerras físicas, foi Montesquieu. O Executivo não poderia guerrear apreensivo. Há três séculos.

“Se os atos oficiais de um ex-presidente forem rotineiramente sujeitos a escrutínio em acusações criminais, a ‘independência do Executivo’ pode ser significativamente comprometida”, como escreve o chief justice John Roberts.

Mais potencial arbítrio. A definição de “atos oficiais” e “não oficiais” do presidente vai depender de juízes de instâncias inferiores. A incerteza judicial é maior. O poder decisório eleitoral dos juízes é maior.

A decisão da Corte, no fundo, deu uma espécie de carta branca à Casa Branca. Daí a reação de Joe Biden. Propôs emenda à Constituição para reforma da Corte: ministros não vitalícios. Com mandatos. E uma proposta para tentar minimamente equalizar a quantidade de indicações por mandato.

Mas não é apenas a crescente político-partidarização da Corte que estaria afetando a democracia, segundo o presidente americano.

Lá e cá, o descrédito pela falta de ética da Corte e potencial quase latente corrupção estão vindo à luz do dia.

O caso mais famoso de potencial corrupção é do justice Clarence Thomas. Alvo de grande indignação. ProPublica, 150 editores, jornalismo especializado em acompanhar as instituições políticas, órgão independente e sem fins lucrativos, mostrou que, por mais de duas décadas, o ministro Clarence Thomas teve férias luxuosas pagas diretamente pelo bilionário republicano Harlan Crow.

Com casos na Justiça

Clarence Thomas e esposa voavam nos seus jatinhos particulares. Faziam cruzeiros no seu iate. Passavam estadias no seu resort. Conviviam com o bilionário no dia a dia. A última viagem presenteada por Crow aos Thomas foi à Indonésia. Custou cerca de 500 mil dólares em 2019.

O ministro Clarence Thomas violou a lei. Que requer que todo presente — físico ou não, joias ou não — recebido pelos magistrados e membros do Congresso tenha que ser declarado. Nada foi.

As relações perigosas de ministros com as partes, lá e cá, não são apenas debate sobre quem paga ou não. Ou quanto recebeu ou não. É importante o potencial contágio que fere os princípios da imparcialidade e transparência: as relações ocultas. Afinal, sem imparcialidade não se tem justiça. Parafraseando Oliver W. Holmes: a luz do sol é o melhor desinfetante.

A norma, inclusive jurisprudencial, nos EUA, tem sido a de que o magistrado, além de ser honesto, tem que ‘parecer’ honesto. E mais. Além de imparcial, tem que parecer imparcial. Foi a decisão que afastou o importante juiz Thomas Penfield Jackson no caso da Microsoft.

A Suprema Corte americana, quando chamada a confirmar ou não o seu afastamento, não encontrou desvios registrados nos autos que demonstrassem favorecimentos comprometedores da imparcialidade do juiz[7]. No âmbito interno ao processo, seu comportamento fora “correto”.

Porém, o magistrado concedera entrevistas públicas a jornais, como The New York Times, The Wall Street Journal, Financial Times, e participara de conferências e seminários em universidades, fazendo comentários jurídicos sobre o caso ainda não julgado. Realizou encontros com repórteres para conceder entrevistas ‘em off‘.

Apesar de ter vetado a publicação dessas informações antes da conclusão do julgamento, de nada adiantou. O dano à confiança das partes e, principalmente, dos cidadãos sobre a imparcialidade do Judiciário já estava feito. O juiz foi afastado compulsoriamente. A percepção sobre a imparcialidade é bem público constitucionalmente tutelável.

No Brasil, o Conselho Nacional de Justiça teve que decidir sobre a tutela desse bem[8]. Em caso que tratava da possibilidade de (a) o magistrado ministrar aulas; (b) compor a coordenação do curso de Direito; (c) participar de programas de rádio; (d) ter participação societária, na condição de quotista, de sociedade cujo objeto social envolvesse atuação empresarial voltada para profissionais do Direito. A pergunta era se essas atividades esbarravam nos limites inerentes ao exercício da magistratura.

Como orientação, o texto Constitucional diz:

Art. 95. Os juízes gozam das seguintes garantias:

[…]

Parágrafo único. Aos juízes é vedado:

I – exercer, ainda que em disponibilidade, outro cargo ou função, salvo uma de magistério.

Decidiu o Conselho:

(a) O magistrado pode ser docente, desde que essa atividade não prejudique o exercício da magistratura,
cabendo aos respectivos tribunais a fixação de limites;

(b) Pode exercer a coordenação de curso de Direito, desde que seja de planejamento ou de pedagogia;

(c) Participar de programas de rádio também é permitido, contanto que o assunto não seja de casos pendentes, na forma do art. 36, III, LOMAN;

(d) Já sobre a possibilidade de ser sócio proprietário de instituto de ensino e pesquisa científica de Direito, o CNJ entendeu que esbarra nos limites da magistratura.


Sobre esse último tópico, entendeu o Conselho que a imagem, o prestígio e a eventual influência do magistrado como titular de cargo público acrescentam valor à sociedade. Especialmente se a sua participação for individualizável e se a comercialização do bem ou serviço ofertado ocorrer na mesma área em que o magistrado atua — como era naquele caso. Daí esses atributos passam a ser ativos intangíveis da sociedade, gerando valor. E a participação societária do magistrado passa a ser incompatível com a função que desempenha na Administração Pública — impessoal e imparcial.

Anos atrás, perguntei a outro importante professor de Harvard Law se parente do justice podia litigar junto à própria Corte. Respondeu-me que não. Perguntei o porquê. A resposta foi que esta era uma prática cultural não escrita, mas consolidada. Um limite cultural. Uma não questão. Mas que é Direito. Não escrito, mas juridicamente significante. Consuetudinário.

Os dados atuais, porém, parecem indicar que estes limites costumeiros estão fragilizados neste século 21.

Em 2023, o The New York Times publica: “Na Suprema Corte, questões éticas sobre as ligações empresariais de uma esposa”. Jane Roberts, esposa atual do chief justice John Roberts, teria uma firma de consultorias para estratégias de litigância na Suprema Corte. Teria ganhado mais de 10 milhões de dólares com as consultorias para escritórios de advocacia de ponta. Revista Forbes confirma.

Cá, parentes e esposas de ministros — às vezes de outras formas, mas com o mesmo anti-ethos —, têm escritórios de advocacia com interesses e litigâncias no Supremo.

Lá e cá, o culpado não é o sol da mídia. É a noite da ‘intransparência’.

O nepotismo judicial supremo é inconstitucional, porque — repito — afeta o princípio basilar do Estado Democrático de Direito: a imparcialidade. Contra o ethos nepotista que se valeram decisões do Conselho Nacional de Justiça.

Conforme a Resolução nº 7, de 2005 do CNJ, parentes são expressamente proibidos de concorrer à nomeação. É vedado o exercício de cargo de provimento em comissão ou de função gratificada por cônjuge, companheiro ou qualquer parente até o terceiro grau (em linha reta, colateral ou por afinidade) dos magistrados no Tribunal ao qual se vinculam. É proibida também a contratação de pessoa jurídica que tenha, em seu quadro societário, pessoas que possuam essas mesmas relações de parentesco com magistrados e servidores ocupantes de cargos de direção ou funções administrativas, de chefia, de assessoramento ou ligados à área de licitações.

Para não deixar dúvidas de que a Constituição de 1988 combate o ethos nepotista, o Supremo editou, em 2008, a Súmula Vinculante nº 13. Diz ela:

A nomeação de cônjuge, companheiro ou parente em linha reta, colateral ou por afinidade, até o terceiro grau, inclusive, da autoridade nomeante ou de servidor da mesma pessoa jurídica investido em cargo de direção, chefia ou assessoramento, para o exercício de cargo em comissão ou de confiança ou, ainda, de função gratificada na administração pública direta e indireta em qualquer dos poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, compreendido o ajuste mediante designações recíprocas, viola a Constituição Federal. 

Ambas, resolução e súmula, visam proteger a Administração Pública contra a parcialidade. Conforme o princípio insculpido no art. 37 da Constituição de 1988.

Em 2021, Martha-Ann Alito, esposa do justice Samuel Alito, fez questão de hastear a bandeira americana de cabeça para baixo, gesto que tinha se tornado símbolo dos apoiadores de Trump naquela ocasião. Foi na sua casa na Virgínia, segundo o The Washington Post.

Quando um vizinho colocou uma placa dizendo ‘Fuck Trump’, sua esposa apenas reagiu. Não havia conotação política — alegou justice Samuel Alito… indicado por George W. Bush.

A menos que esse vizinho da Virgínia também compartilhe com o justice a vizinhança também em outro estado. O The New York Times e o The Guardian reportaram que, na casa de Alito e sua esposa em Nova Jersey, foi também hasteada uma bandeira da Revolução Americana com os dizeres “Appeal to heaven, outro símbolo associado à extrema direita.

Estes ‘microssintomas’ — talvez ‘microbactérias’ — se não controlados, geram infecção. Macropatologias culturais e institucionais. Necessitam de remédios. Inflamam a democracia.

Lá, ao contrário de cá, a Corte americana tenta se automedicar. Criou e adotou um código de conduta em 2023. Diz o preâmbulo:

[…] Em sua maioria, essas regras e princípios não são novos. A Corte tem, há muito, um conjunto equivalente de regras éticas derivadas da common law, isto é, um corpo normativo que deriva de uma variedade de fontes […] A ausência de um código, no entanto, levou, nos últimos anos, a um mal-entendido de que os magistrados dessa Corte, diferentemente dos outros juristas neste país, consideram-se irrestritos por normas éticas. Para resolver esse mal-entendido, nós estamos expedindo esse código, que largamente representa uma codificação de princípios que há muito reconhecemos como governantes da nossa conduta.[9] (Tradução nossa).

No Brasil, João Gabriel de Lima, da Folha de São Paulo, tem insistido na necessidade de o nosso Supremo ter também seu próprio código de conduta. Mas o ministro Alexandre de Moraes lhe diz não ser necessário.

Importante, entretanto, seria cumprir pelo menos as normas de claro conteúdo ético determinadas pela LOMAN. Por exemplo, as vedações ao exercício da magistratura dispostas no seu art. 36. São elas: o exercício de comércio ou participação em sociedade comercial (exceto como acionista ou quotista); exercer cargo de direção ou técnico de sociedade civil, associação ou fundação, independente da natureza ou finalidade (exceto associação de classe); manifestar opinião sobre processo pendente de julgamento, em qualquer meio de comunicação.

Para o filósofo do Direito Ronald Dworkin, “os ministros precisam se entender como colegas uns dos outros, do passado e do futuro, com quem constroem uma coerente moralidade constitucional, e precisam cuidar de ver se a sua contribuição se harmoniza no todo”[10] (tradução nossa).

Supremos são orquestras. Não há sinfonias apenas com solistas

O então mal-estar de Terry Fischer parece, hoje, ganhar o mundo. Nos últimos na anos, vários países, por um motivo ou por outro, de uma maneira ou de outra, têm procurado aperfeiçoar e mudar suas cortes constitucionais. Como a França, Inglaterra e, agora, o México.

O respeitado jurista Vladimir Passos de Freitas, recentemente, fez uma análise da atual proposta de reforma do Supremo mexicano. Puro risco. Mas reforma. Estabelece eleição popular para juízes, promete acabar com vencimentos exagerados, atraso nos serviços e distanciamento da população. E termina conclamando:

Esta é, em síntese, a situação a que se submeterá o Judiciário do México. Uma experiência sem volta que colocará a Justiça do país sob um enorme risco de politização e fortalecimento dos cartéis de drogas. Além, evidentemente, da fuga de investidores, que não se arriscarão a submeter-se a juízes sem nenhuma presunção de imparcialidade[11].

A independência, transparência e imparcialidade de árbitros é patrimônio não apenas jurídico-constitucional do mundo Ocidental. É prática cultural indispensável ao viver pacificamente.

Agora mesmo em Paris, Ben Lowe foi expulso dos Jogos Olímpicos depois de viralizar foto sua ao lado de um dos surfistas que iam disputar a prova na qual iria arbitrar.

A Associação Internacional de Surfe diz que, para proteger o valor da imparcialidade, integridade e justiça da competição, removeu o árbitro. O Comitê Olímpico Internacional acatou.

A emenda de Joe Biden vai provavelmente para o cemitério de emendas constitucionais americanas. Dada a rigidez e a dificuldade de mudança daquela Constituição. O que não impede que seja crescente a demanda por aperfeiçoamentos institucionais.

Em artigo do The Guardian, aquele mesmo Laurence Tribe que advogou por Gore em 2000 escreve com Dennis Aftergut: “os americanos estão desesperados para que a alta Corte seja reformada. Kamala Harris pode fazer essa mudança se ganhar”. Laurence Tribe esteve na Comissão Presidencial sobre a Suprema Corte dos EUA, grupo formado pelo presidente Biden para analisar justamente essas propostas para o tribunal.

E fatos parecem mostrar que Laurence está correto

Na Convenção dos Democratas, Kamala Harris abordou vários assuntos de grande interesse dos americanos. Problemas contemporâneos. Moradia, alimentação, inflação, saúde. Direitos fundamentais básicos. Mas falou também da Suprema Corte. Precisamente, da reforma que pretende levar a cabo. E, citando a decisão que conferiu imunidade ao ex-presidente, Harris advertiu os eleitores: “Entendam o que significaria se Trump voltasse para a Casa Branca sem os ‘guarda-corpos’ [constitucionais]. […] A Corte não vai pará-lo”.

Diante das imagens, fatos e dados e informações que chegam até nós dos Estados Unidos, Ruy Castro, na Folha de São Paulo, em ‘Era uma vez a América’, perguntou: “Por todos esses séculos, convivemos mesmo com a maior democracia do mundo ou com uma ilusão fabricada pelos próprios americanos”?  


Referências bibliográficas

1. BUSH v. Gore, 531-U.S.rep. 98, (2000) p.109.

2. idem. ibidem

3. FALCÃO, Joaquim. A pirâmide de duas cabeças. In: BACHA, Edmar; CARVALHO, José Murilo de; FALCÃO, Joaquim; TRINDADE, Marcelo; MALAN, Pedro; SCHWARTZMAN, Simon (Org). 130 anos: em busca da República. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2019.

4. BRASIL. Tribunal Superior Eleitoral. Recurso Ordinário Eleitoral 060140770/PR. Relator: Ministro Benedito Gonçalves. Acórdão de 16.05.2023. Diário de Justiça Eletrônico 112, 2. jun. 2023.

5. TRUMP v. United States. Opinion of the Court (2024). p.42.

6. TRUMP v. United States, 603 US ____ (2024). p.1-3.

7. FALCÃO, Joaquim; OSÓRIO, Laura. A futura atividade político-partidária e a responsabilidade ética do magistrado. Revista USP, São Paulo, v. 110, p. 55-64, jul./set. 2016.

8. PEDIDO DE PROVIDÊNCIAS. Conselho Nacional de Justiça (CNJ) n.20071000000302.

9. UNITED STATES. Supreme Court. Code of Conduct for Justices. Disponível em: <https://www.supremecourt.gov/about/Code-of-Conduct-for-Justices_November_13_2023.pdf>.

10. DWORKIN, Ronald. Freedom’s law: the moral reading of the American Constitution. Cambridge: Harvard University Press, 1996.

11. FREITAS, Vladimir Passos de. Reforma judicial no México e riscos no Brasil. [s.l.] Conjur. 15.set.2024. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2024-set-15/reforma-judicial-no-mexico-e-riscos-no-brasil/>.

*Colaboração de Guilherme Soares. Uma primeira versão deste artigo foi publicada no jornal Folha de São Paulo, São Paulo, 11 ago. 2024.



É advogado, mestre em Direito por Harvard e doutor em Educação pela Universidade de Genebra. É membro da Academia Brasileira de Letras e da Academia Brasileira de Direito Constitucional

Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

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