01 janeiro 2009

Os Campos do Possível: A Oportunidade Histórica do Pré-Sal

Poucas vezes um desafio tão sem ambigüidades se apresentou a um grupo de dirigentes, ampliando abruptamente o campo do possível […]. Nos próximos dois decênios, a Venezuela poderá ter saltado a barreira que separa subdesenvolvimento de desenvolvimento, sendo quiçá o primeiro país da América Latina a realizar essa façanha, ou terá perdido a sua chance histórica. Pelo menos sobre um ponto básico existe consenso: a inação ou a omissão do Estado não constitui uma opção[1].

Celso Furtado

Celso Furtado escreveu essa passagem em 1974, quando o grande aumento do preço internacional do petróleo criou condições objetivas para que a Venezuela e outras economias exportadoras do petróleo pudessem dar um salto de qualidade em seu desenvolvimento. Com efeito, o embargo da opep havia feito saltar o preço do barril de petróleo de US$ 2,5 (1972) para US$ 12 (1974), quase quintuplicando praticamente da noite para o dia as rendas dos países exportadores do “ouro negro”. Esse “choque do petróleo” teve conseqüências econômicas e geopolíticas dramáticas e provocou uma massiva transferência de recursos para as nações produtoras de hidrocarbonetos. Na época, muitos economistas, como Furtado, consideravam que tais nações poderiam ascender, em pouco tempo, à condição de países plenamente desenvolvidos.

Contudo, passados mais de três decênios, é lamentável constatar que essa oportunidade histórica foi perdida por muitas dessas nações, que ficaram presas à “doença holandesa” e à dependência do petróleo[2]. Escolhas erradas ou a omissão do Estado levaram-nas a desperdiçar o que Furtado classificou como a “ampliação abrupta do campo do possível”.

Assim, boa parte desses países desperdiçou a sua notável riqueza em consumo de bens importados e gastos perdulários, criou gigantescas burocracias e não construiu os fundamentos destinados a promover o desenvolvimento sustentado. Foram vítimas de uma abundância esterilizante.

Ironicamente, a denominada economia do petróleo tem peso enorme no mundo. Gira cerca de US$ 1,6 trilhão por ano e representa parcela significativa do pib mundial. Entre as dez maiores empresas globais, seis são empresas ligadas ao petróleo. Somente a exxon vinha apresentando, até meados deste ano, faturamento líquido trimestral de US$ 15 bilhões. Mesmo no Brasil, que não é um grande produtor, a economia dos hidrocarbonetos já representa mais de 10% do pib.

Assim, é curioso constatar que, entre os quinze maiores exportadores mundiais de petróleo, apenas um tem lugar de destaque no ranking do Índice de Desenvolvimento Humano (idh) da onu: a Noruega, que ocupa a segunda colocação. O resto não figura sequer entre os trinta primeiros, sendo que a maioria está abaixo da 50ª posição. Ademais, as economias desses países ainda são, em geral, pouco diversificadas e fortemente dependentes das divisas do petróleo. Trata-se de verdadeira tragédia que condena tais nações a um futuro incerto, já que o petróleo é recurso não-renovável.

Um exemplo extremo é o da Guiné Equatorial. Esse minúsculo país da África exporta 400 mil barris de petróleo por dia e tem pib per capita de cerca de US$ 50 mil, medido pelo poder de compra, o nono maior do mundo. Porém, apesar dessa riqueza, o país ainda não conseguiu diversificar a sua economia, que continua dependente da exportação de commodities. O saneamento básico é precário e não há água potável nas torneiras. No campo social, a situação é muito ruim. A Guiné Equatorial ocupa a posição 127 no ranking do idh da onu.

Alguns autores, como Sachs e Warner[3], chegaram até a teorizar sobre uma “maldição dos recursos naturais”. Conforme esses teóricos, países que têm abundância de commodities de exportação apresentam, em média, crescimento econômico baixo, ao passo que países que carecem de recursos naturais, como os do Sudeste Asiático, têm, em geral, crescimento mais elevado, além de economias mais diversificadas. Evidentemente, esse baixo dinamismo econômico se reflete também no desenvolvimento social. Assim, os países árabes têm idh médio de 0,699, número que está abaixo da média mundial, que é de 0,743.

A literatura econômica aponta vários fatores que afetam as economias dos países exportadores de commodities, especialmente aqueles que dependem do petróleo. Entre esses, destacam-se a baixa taxa de investimento nos setores não-extrativistas, o que contribui para a pouca diversificação da produção; a corrupção e a malversação dos recursos públicos, que desvia preciosos recursos; o consumo perdulário de produtos importados, que neutraliza esforços de industrialização; a grande oscilação dos preços internacionais das commodities, que gera instabilidade macroeconômica; e o baixo investimento relativo em educação e ciência e tecnologia, que impede a estratégica construção de uma sociedade do conhecimento.

Entretanto, a “maldição dos recursos naturais” e a “doença holandesa” não são destinos inexoráveis a condenar todos os países ricos em petróleo ou em outras commodities. Há notáveis exceções. Além da Noruega, já mencionada neste artigo, é fácil constatar que países como os EUA, o Canadá e a Islândia têm abundância de recursos naturais e, ao mesmo tempo, situam-se num patamar muito elevado em termos de desenvolvimento econômico e social.

Ao que tudo indica, a correlação, positiva ou negativa, entre a abundância de recursos naturais e o desenvolvimento econômico e social depende de uma série de variáveis econômicas, sociais e educacionais. No entanto, é provável que o fator mais relevante seja o político. De fato, ter instituições sólidas e uma democracia viva e participativa faz grande diferença. Talvez toda a diferença. A democracia permite a discussão aberta e transparente sobre a destinação dos recursos gerados com a exportação das commodities, a definição de uma estratégia consensuada de desenvolvimento e o controle efetivo do gasto público. Tudo depende, em última instância, de decisões acertadas tomadas no momento adequado. Por isso, Celso Furtado alertava que a omissão do Estado não era uma opção para os países exportadores de petróleo.

Desafio sem ambigüidades

Ora, o mesmo “desafio sem ambigüidades” que Furtado anteviu para a Venezuela em 1974 apresenta-se agora para o Brasil. Com efeito, as descobertas do pré-sal, mesmo que comprovadas apenas parcialmente, são extraordinárias. Os testes feitos numa área de 14 000 km² (Pólo de Tupi) permitem inferir que as jazidas poderiam ter entre 50 e 80 bilhões de barris, sendo que a formação geológica do pré-sal possui área total de mais de 160 000 km².

Embora ainda não se saiba com exatidão a real dimensão e conformação do pré-sal, tudo indica que se trata de grandes “ilhas” esparsas nessa área gigantesca, tal como assinaladas no mapa do Quadro 1, conformando extensos megacampos com muito gás e óleo leve de boa qualidade.

Fazendo-se projeções com base em estimativas referentes apenas à área mais estudada, o chamado Pólo de Tupi (na hipótese mais otimista de 80 bilhões de barris), podemos chegar à conclusão de que o Brasil poderia produzir entre dois e três milhões de barris/dia, no prazo de cerca de seis anos, o que elevaria substancialmente o patamar do desenvolvimento brasileiro. No entanto, é preciso levar em consideração também a hipótese, perfeitamente plausível, de que haja outros megacampos semelhantes nas áreas da mesma formação geológica que ainda não foram prospectadas.

Contudo, independentemente de qual hipótese se confirme, o fato concreto e inexorável é que o Brasil se tornará potência petrolífera tardia, num mundo que ainda dependerá de petróleo por muito tempo, pois, apesar dos recentes investimentos em energias alternativas, a matriz energética mundial é dependente dos hidrocarbonetos em 65%.

No quadro a seguir, pode-se observar o volume da reservas provadas de petróleo até ano passado (2007). Note-se que, levando em conta as estimativas mais otimistas para o Pólo de Tupi, o Brasil passaria a ter cerca de 6,5% das reservas mundiais (cerca de 1,2 trilhão de barris), um número bastante significativo. De qualquer forma, o pré-sal ampliará de forma substancial as reservas provadas do Brasil, que hoje ascendem a 14 bilhões de barris.

Deve-se ter em mente que as descobertas de novas reservas de hidrocarbonetos não têm ocorrido num bom ritmo nas últimas décadas. Assim, entre 1987 e 1997 as reservas de óleo cresceram somente 18,6%, já no período decorrido entre 1997 e 2007, o crescimento foi ainda menor (15,7%). Ademais, a produção mundial de hidrocarbonetos, especialmente a de petróleo, não tem aumentado de modo a satisfazer o grande crescimento da demanda mundial por energia. Note-se, no quadro abaixo, que a produção mundial de petróleo está praticamente estagnada nos últimos quatro anos.

Em contraste, o consumo mundial de hidrocarbonetos vem aumentando extraordinariamente, notadamente na Ásia, em função do crescimento econômico vertiginoso dos gigantes China e Índia. A apec (Asia-Pacific Economic Cooperation), excluídos os países que estão fora do continente asiático, já consome cerca de 25 milhões de barris de petróleo por dia, o mesmo consumo apresentado pela América do Norte. A China, tomada isoladamente, foi responsável por 50% do aumento da demanda por petróleo nos últimos cinco anos. Há, por conseguinte, um desequilíbrio estrutural entre demanda e oferta de hidrocarbonetos, que poderá ser mitigado, mas não resolvido, pela crise atual.

Assim sendo, fica evidente a importância estratégica dessa grande descoberta de petróleo no nosso subsolo marinho. Ela é importante não apenas para o Brasil, mas também para a economia mundial e, em especial, para os países importadores de petróleo.

A produção comercial do pré-sal implica, sem dúvida, grandes desafios logísticos e técnicos que não devem ser subestimados. Porém, tais desafios não alteram esse cenário promissor. As dificuldades e o ceticismo dos que nunca tiveram visão estratégica do Brasil não impediram que o país e a Petrobras conseguissem a auto-suficiência em petróleo em termos de volume de produção, contrariando os vaticínios “técnicos” dos que apostavam na inviabilidade da indústria de petróleo brasileira. Não impediram ontem e não impedirão hoje. A sociedade brasileira está tomando consciência de que o pré-sal representa oportunidade histórica única para que o Brasil dê salto de qualidade em seu desenvolvimento. Também está crescendo a consciência de que, para que essa oportunidade não venha a ser desperdiçada, é necessário modificar o atual marco regulatório do petróleo no Brasil.

Por que mudar o marco regulatório

O atual marco regulatório, dado basicamente pela Lei do Petróleo (Lei n.º 9 478, de 6 de agosto de 1997), desempenhou papel positivo no desenvolvimento da indústria brasileira de hidrocarbonetos. Graças a ele, a produção brasileira de gás e petróleo praticamente duplicou, no período compreendido entre 1998 e 2007.

Porém, é forçoso reconhecer que as condições do país à época de sua constituição eram bem diferentes das prevalentes hoje. Naquele tempo, o país não tinha crédito, a economia estava muito fragilizada, o risco exploratório era altíssimo, os campos eram muito pequenos e o preço do barril de petróleo estava em cerca de US$ 10. Acertadamente, transferiu-se o risco para as empresas, mediante contratos de concessão. Hoje, entretanto, o Brasil tem contas públicas em equilíbrio, a economia, apesar da crise, ainda cresce de forma sustentada, as novas jazidas têm enorme potencial, o preço do barril é seis vezes maior e as áreas prospectadas têm risco muito baixo. Mudou-se da água para o vinho, ou da água para o óleo.

A crise financeira internacional, apesar de muito grave, não deverá alterar substancialmente esse quadro, no médio e longo prazos. Sem dúvida, a crise manterá o preço do petróleo em níveis mais baixos do que aqueles que predominavam até meados deste ano. Não obstante, parece pouco provável que os preços internacionais do óleo voltem aos patamares de uma década atrás. As projeções de crescimento para os países emergentes, especialmente os do Leste da Ásia, apontam para uma dinâmica econômica ainda significativa no médio prazo, que deverá incidir positivamente na demanda por energia. Além disso, a opep já vem tomando medidas de contenção da produção.

Agregue-se que os países centrais estão tomando medidas bastante fortes para reverter o quadro de incerteza, de empoçamento da liquidez e de contaminação da economia real pela crise do sistema financeiro internacional. Desse modo, assim que a economia desses países começar a recuperar-se, os preços do petróleo deverão voltar a subir, já que há, como assinalamos, um desequilíbrio estrutural entre produção e demanda de hidrocarbonetos.

Mas, ainda na eventualidade de uma queda maior e prolongada do preço do petróleo, a produção comercial do pré-sal poderá viabilizar-se. Especialistas consideram que essa produção pode tornar-se viável mesmo com o preço internacional do óleo em torno de US$ 35.

O cenário é, pois, definitivamente promissor e o quadro atual do petróleo no Brasil mudou radicalmente. Pois bem, ante mudança de tal magnitude, é preciso refletir sobre se vale a pena manter o marco regulatório do petróleo, ou se ele deve ser alterado, estabelecendo-se para as novas áreas regimes exploratórios baseados em partilhas ou joint ventures. A diferença não é banal. Implica escolha estratégica de profundas conseqüências. No regime de concessões, o óleo, uma vez começado o processo de retirada do subsolo, passa a pertencer à empresa concessionária. No regime de partilha, a União mantém a propriedade das reservas e do petróleo. Nesse último caso, o Estado tem flexibilidade muito maior para planejar e efetuar os investimentos que considere prioritários ao desenvolvimento sustentado, assim como para estabelecer o ritmo da exploração. Foi por isso que o governo, de forma correta, suspendeu a 9ª rodada de concessões. Percebeu-se que era preciso rediscutir o modelo atual.

Infelizmente, esse debate estratégico vem sendo apequenado. Tentam transformar uma questão acessória, qual seja, se o Brasil deve ou não criar estatal para gerir as novas reservas, no cerne da discussão. Ademais, tentam contrapor a possível criação dessa estatal aos interesses da Petrobras. Ora, a estatal proposta não passaria de mero escritório de representação, a exemplo da petoro da Noruega que, por lei, não pode ter mais do que sessenta empregados. A Petrobras foi, é, e será a grande parceira estratégica do Estado brasileiro na exploração e refino do petróleo.

Mais: considero que a Petrobras tem de ser fortalecida para que possa enfrentar os desafios do pré-sal, juntamente com os desafios relativos ao aumento da nossa capacidade de refino, fundamental para o equilíbrio da balança comercial brasileira de hidrocarbonetos, para o processo de substituição de importações de equipamentos destinados à produção de petróleo, como as caras e sofisticadas plataformas marítimas, bem como para os investimentos em gasodutos e na produção nas áreas pós-sal. Uma das alternativas seria destinar a área contínua às jazidas do pré-sal já concessionadas, necessária à unitização das reservas, à Petrobras. Dessa forma, o óleo quantificado e precificado capitalizaria a empresa e a permitiria manter o seu ambicioso plano de investimentos e desenvolver novos investimentos para o pré-sal. Em sentido inverso, a disputa por contratos de concessão a descapitalizaria.

Considere-se que os investimentos que a Petrobras terá de fazer para viabilizar o pré-sal (plataformas, navios, novos portos, gasodutos, etc.) terão enorme impacto positivo na indústria nacional, especialmente a naval, assim como na geração de tecnologia de ponta em várias áreas estratégicas.

Por que mudar a distribuição dos royalties

Outra questão que a sociedade terá de enfrentar é a relativa à distribuição dos royalties do petróleo.

A grande maioria de especialistas da matéria concorda que a atual legislação brasileira sobre distribuição dos royalties do petróleo é, no mínimo, confusa e anacrônica. De início, os critérios de repartição da receita foram estabelecidos privilegiando o território do qual era extraído o petróleo, como forma de indenizar o estado e o município pela perda do bem finito e como compensação pelo risco ambiental inerente à atividade. Nada mais justo. Porém, tais critérios foram estabelecidos numa época em que só havia lavras em terra, em territórios pertencentes a estados e municípios. Ninguém ainda falava de petróleo em plataforma continental, que é área pertencente à União. Posteriormente, quando se começou a prospectar o petróleo oceânico, manteve-se o critério da territorialidade por vias transversas: os municípios e estados “confrontantes” às jazidas da plataforma continental receberiam o grosso dos royalties e das participações especiais.

Tal critério é uma espécie de loteria geográfica sem sentido. Com efeito, por que razão um município, às vezes distante mais de uma centena de quilômetros da jazida, situada em área da União, tem de receber boa parte dos royalties e das participações especiais? Saliente-se, além disso, que o critério que o ibge usa atualmente para definir estados e municípios “confrontantes”, as linhas ortogonais que se projetam para o oceano, cria situações esdrúxulas. Muitas vezes, municípios que estão ao lado do município “confrontante” e mais próximos da jazida ficam excluídos das benesses distribuídas. Entes federados que têm costa convexa são grandemente beneficiados, ao passo que os que têm costa côncava ficam muito prejudicados (vide Quadro 5).

Com esse critério básico atual de distribuição de royalties geram-se graves distorções e injustiças. Tais injustiças não se dão apenas na distribuição dos royalties entre os estados que compõem a União, mas também na distribuição dentro dos estados. No Rio de Janeiro, por exemplo, os habitantes do município de Quissamã recebem, ao ano, quase R$ 7 mil per capita de royalties, ao passo que os habitantes de Belford Roxo, um município com graves problemas sociais, recebem apenas R$ 13. A bela e populosa capital fluminense aufere apenas 1,8% da receita, ao passo que Campos recebe 25%.

Há, na realidade, uma hiperconcentração de royalties do petróleo em apenas dez municípios, o que cria reais privilégios para uma pequena minoria e prejudica as populações do Rio de Janeiro e do Brasil. Com efeito, essa casta municipal recebe quase 60% dos royalties, ao passo que os outros 83 municípios do Rio de Janeiro e os mais de cinco mil municípios brasileiros pouco ou nada recebem. Observe-se que aquela participação marginal da cidade do Rio de Janeiro nos royalties só foi assegurada após decisão do stj[4].

A questão da hiperconcentração, no entanto, não se limita à mera e evidente injustiça na distribuição dos recursos. Ela também tem implicações negativas na gestão dos gastos públicos nos municípios beneficiados, assim como em seu crescimento econômico. De um modo geral, os municípios mais bem aquinhoados com royalties apresentam crescimento econômico abaixo da média nacional, têm dificuldades em arrecadar fora da atividade extrativista, e multiplicam gastos sem melhorar a qualidade dos serviços públicos. Parecem crescentemente presos à “maldição dos recursos naturais”.

Obviamente, tais efeitos negativos tenderão a aprofundar-se à medida que aumentar o volume de royalties e participações especiais. Com o pré-sal, o desperdício e malversação dos recursos públicos, que já são preocupantes, poderão tornar-se dramáticos.

Torna-se imprescindível, portanto, rever os critérios para a distribuição de royalties e participações especiais, de modo a propiciar melhor alocação dos recursos e seu bom aproveitamento, sob o prisma do interesse público.

É preciso enfatizar que, nesse processo, os entes federados não serão prejudicados e o pacto federativo será respeitado. Estimativas preliminares indicam que a produção inicial dos novos campos, excluindo Tupi e outros megacampos do pré-sal, poderá, no curto e médio prazos, duplicar a receita atual de royalties e participações especiais. Observe-se, ademais, que apenas 14 dos 74 campos em alto mar vêm recolhendo as chamadas participações especiais, espécie de royalties cobrados de áreas de grande produção, para os governos federal, estaduais e municipais. Por conseguinte, pode-se redistribuir e realocar os recursos sem prejudicar nenhum ente federado, mesmo o mais privilegiado.

Não obstante, essa discussão gera, compreensivelmente, grandes resistências. Além disso, em muitos foros o debate é colocado de forma distorcida, como se se tratasse de disputas provincianas de entes federados que competem por recursos públicos. A bem da verdade, esse é um debate que diz respeito aos interesses nacionais e ao futuro do Brasil. De fato, a discussão pertinente não é aquela que contrapõe São Paulo e Rio num embate provinciano sobre quem tem mais direitos aos recursos do pré-sal, mas, sim, aquela que deve unir o país na perspectiva do uso correto, com critérios intergeracionais, da riqueza finita do petróleo para financiar o desenvolvimento harmônico e sustentado do Brasil.

Portanto, é necessário rediscutir, sim, e com urgência, os critérios e princípios que são hoje utilizados para distribuir tais recursos. E não podemos parar por aí. Devemos também redefinir, com rigor, áreas estratégicas para a aplicação desses benefícios e mecanismos eficientes para o controle da utilização dos recursos, hoje muito frouxos.

Há que pensar também numa revisão da estrutura tributária do petróleo. Apesar do enorme crescimento da rentabilidade do setor, que já representa mais de 10% do pib, a arrecadação diminui proporcionalmente. Pouquíssimos poços pagam as participações especiais e, no que se refere aos bônus que as vencedoras dos leilões têm de pagar, a arrecadação obtida com os poços do pré-sal foi irrisória, um total de R$ 345 milhões, muito aquém do valor entre US$ 5 e US$ 15 por barril que deveria ter sido pago. Há uma elisão fiscal gigantesca que precisa ser corrigida.

Petróleo, democracia e interesse nacional

Destoando do monocórdio enredo trágico das economias sujeitas à maldição dos recursos naturais e à dependência do petróleo, destaca-se a exceção da Noruega. Lá, criou-se um fundo soberano com critérios intergeracionais que é muito bem administrado. Tal fundo, que já ultrapassa os US$ 400 bilhões, é usado parcimoniosamente para financiar educação, seguridade social e ciência e tecnologia. Também criou-se uma estatal enxuta, a petoro, com o objetivo de assegurar que os recursos do petróleo fossem investidos com critérios públicos de longo prazo. Claro está que as condições norueguesas preexistentes à exploração de petróleo facilitaram. De fato, a Noruega já era país econômica e socialmente desenvolvido antes de começar a exportar petróleo em grande quantidade. Mas o fator decisivo foi a democracia, que permitiu que o parlamento e a sociedade civil noruegueses discutissem a fundo como administrar e investir os recursos finitos do petróleo.

O nosso país também tem algumas vantagens comparativas. O Brasil já possui a décima economia mundial, razoavelmente diversificada e um mercado interno forte e de renovado dinamismo. Temos também um agrobusiness de destaque mundial, grande área para expansão da fronteira agrícola, vastos recursos naturais ainda inexplorados, água em abundância e enorme biodiversidade. A economia, com seus fundamentos agora equilibrados, cresce distribuindo renda. Estamos sendo afetados, sem dúvida, pela grave crise internacional. Contudo, a depender das decisões que tomarmos, poderemos dela sair mais fortalecidos para enfrentar os desafios da inserção internacional, num mundo que deverá tornar-se mais multipolar e numa economia mundial que sofrerá rearranjos profundos.

Entretanto, ainda temos três grandes entraves que nos impedem de alçar vôos maiores no desenvolvimento sustentado: o entrave da educação de baixa qualidade, que repercute na ausência de inovação e pesquisa mais robustas, o entrave da infra-estrutura e logística precárias, que inibe investimentos e eleva custos, e o entrave da desigualdade social que, apesar dos avanços recentes, limita o dinamismo do mercado interno e gera tensões sociais e políticas.

É aí que o petróleo recém-descoberto pode fazer diferença. Grande diferença. Se os recursos do pré-sal forem bem investidos e distribuídos com o objetivo estratégico de superar esses obstáculos, o Brasil poderá acelerar o tempo histórico do seu crescimento e dar grande salto de qualidade no desenvolvimento econômico e social.

Para alcançar esse objetivo, precisamos, porém, tomar as decisões corretas no momento adequado. E o momento adequado é agora. Uma coisa é certa: não discutir o arcaico marco regulatório dos hidrocarbonetos significa, muito provavelmente, condenar o país à doença holandesa e à maldição do petróleo. Tal paralisia antidemocrática não é, por conseguinte, uma opção.

Em 2022, o Brasil cumprirá 200 anos de independência. Se teremos algo relevante e positivo a celebrar naquela data dependerá, em boa parte, da decisão que tomarmos hoje sobre o que fazer com os novos recursos do petróleo. O dilema é claro: ou enfrentamos essa discussão estratégica com maturidade e espírito público, buscando o consenso possível, ou sucumbimos à desunião dos interesses paroquiais e políticos mesquinhos. A primeira opção deverá resultar na superação dos gargalos ao desenvolvimento sustentado e em mais independência. Já a segunda opção nos conduzirá inexoravelmente a uma nova e doentia dependência que poderá marcar profundamente as futuras gerações de brasileiros.

Os megacampos do pré-sal ampliaram o nosso campo do possível. Eles tornam possível o Brasil com educação de qualidade, logística apropriada e inclusão social. Mas, para tanto, é necessário, como advertia Furtado, que o Estado não se omita. Mais: é preciso que a sociedade não se omita. Nesse sentido, temos grande diferencial: democracia. Esse debate tem de tomar as ruas do Brasil. Assim, todos são bem-vindos a essa discussão estratégica. E não precisa ser geólogo. Basta ter espírito público.

[1]. Celso Furtado, Ensaios sobre a Venezuela, Rio de Janeiro, Contraponto, 2008.

[2]. O termo “doença holandesa” deriva dos efeitos econômicos negativos que as grandes descobertas , de gás natural nas costas dos Países Baixos provocaram na economia holandesa. A massiva entrada de dólares oriundos das exportações de hidrocarbonetos gerou uma grande apreciação da moeda local, a qual, por sua vez, gerou intenso fluxo de importações e desindustrialização.
 
[3]. J. Sachs & A. Warner, “Natural Resource Abundance and Economic Growth”, NBER Working Paper 5398, Cambridge, MA, 1995.

[4]. O RJ concentra 73,73% do total destinado aos Estados. Apenas 907 dos 5 562 municípios brasileiros foram beneficiados. Entre eles os 10 maiores recebedores concentram 59,04% dos recursos.

Economista e professor licenciado da PUC-SP e da Unicamp, é senador da República pelo PT-SP.

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