Os problemas sociais da Covid-19
Introdução: o cenário
A cada dia a imprensa publica uma nova data para o pico da Covid-19 e anuncia promessas desencontradas sobre vacina e medicamentos. Assumindo a chegada do pico em agosto de 2020 e o surgimento de vacina ou medicamento no início de 2021, este ensaio apresenta considerações sobre o impacto da pandemia no mercado de trabalho e outros desdobramentos sociais.[1]
Com 60 dias de infecções, a pandemia quebrou inúmeras empresas brasileiras, destruiu 1,1 milhão de empregos formais[2] e afastou do trabalho cerca de 5 milhões de pessoas, 75% informais.[3] Sem políticas públicas, a taxa de desemprego teria saltado dos 12% atuais para 24% ou mais.[4] Graças às regras trabalhistas flexibilizadoras,[5] foi possível poupar mais de 8 milhões de empregos formais até o início de junho. O trabalho remoto também ajudou a manter muitas pessoas trabalhando. E a concessão de um auxílio emergencial de R$ 600,00 mensais para trabalhadores vulneráveis foi crucial para sua sobrevivência e consumo.
Tais providências foram tomadas no pressuposto de que a pandemia arrefeceria em 90 dias. Ocorre que o Brasil chegou em junho como o epicentro da pandemia, o que forçou muitas empresas a permanecerem fechadas ou a trabalharem com severas restrições.[6]
O Banco Mundial indicou que a crise da Covid-19 afetará os países emergentes por cinco anos,[7] sendo que no Brasil, a redução do trabalho e renda atingirá mais de 80% dos brasileiros.[8] Prevê-se uma recessão gravíssima, prolongada e inédita.
Nos dias atuais, grande parte das empresas sofre dificuldades imensas. Entre abril e maio de 2020, os pedidos de recuperação judicial subiram 70% e as falências, 30%. O governo passou a acenar com novas injeções de crédito para capital de giro. Apesar disso, firmas de pequeno porte passaram a demitir muitos empregados. Antecipa-se uma escalada do desemprego e forte queda de renda para 2020-21. Milhões de brasileiros ficarão sem emprego, sem recursos e sem perspectiva de trabalho nesse período.
Impactos na saúde
Embora o Sistema Único de Saúde (SUS) seja um projeto louvável pelo seu caráter universal e gratuito, ele se revelou insuficiente no caso da Covid-19. O SUS já vinha sofrendo em decorrência da prolongada recessão de 2015-17. Ao serem demitidos, milhões de trabalhadores ficaram sem planos de saúde e passaram a pressionar o SUS. Com a chegada da pandemia, o problema se agravou. Em muitos estados já houve grave colapso hospitalar. Isso compromete a sobrevivência e a qualidade de vida das pessoas.
Impactos na pobreza e na desigualdade
O aprofundamento da desigualdade decorrente da pandemia é um fenômeno mundial.[9] No Brasil, isso é ainda mais claro. Os pobres têm maior probabilidade de se infectar, adoecer e morrer.[10] Prova disso é a disparada do contágio entre os moradores das favelas, onde é impossível obedecer ao distanciamento social. Os analistas estimam um aumento de 60% da extrema pobreza (US$ 1.90 ao dia per capita).[11]
A pandemia lesionará também a classe média. Profissionais mais qualificados, desempregados e/ou substituídos por tecnologias tendem a descer na escala social, o que gera frustrações e compromete a coesão social.[12] Muitos empregos serão perdidos para sempre.[13] Será um tempo de muita apreensão.
Impacto sobre as mulheres
Historicamente, as recessões sempre impactaram mais os homens do que as mulheres. Na pandemia atual, dá-se o inverso porque as mulheres são a maioria nas atividades paralisadas ou semiparalisadas (escolas, creches, turismo, hotéis, entretenimento, salões de beleza, oficinas de costura etc.). Além disso, elas são maioria entre os trabalhadores informais – os mais desprotegidos.[14]
Por cima do desemprego há o aumento da violência doméstica e sexual nos domicílios mais pobres, onde homens adultos vivem de forma aglomerada com mulheres e meninas.[15] A violência ainda é muito subnotificada por medo que elas têm dos homens.[16]
O reingresso das mulheres no mercado de trabalho será igualmente doloroso. Muitas terão de aceitar trabalhos precários, desprotegidos e de menor renda.[17]
Impactos sobre as crianças
Os impactos da Covid-19 sobre as crianças são preocupantes tanto na esfera educacional como na nutricional. A suspensão das aulas determina grave defasagem educacional e também sérios déficits nutricionais, porque as crianças mais pobres dependem da escola para se alimentar (merendas, lanches, sucos, etc.). A desnutrição levará a maior adoecimento.
A deterioração econômica dos adultos forçará o engajamento de crianças e adolescentes em atividades laborais precárias do mercado informal, novamente, com reflexos negativos na sua saúde e na sua educação.
Impactos políticos
O aumento da desigualdade, da pobreza e da mobilidade social descendente gerarão frustração e descontentamento que tendem a desaguar em movimentos sociais que, aliás, já começaram nas grandes cidades.[18] A onda de protesto interracial dos Estados Unidos alastrou-se rapidamente para vários países, misturada com o desemprego provocado pela pandemia. Por serem fenômenos de multidões, é difícil identificar os seus componentes com precisão e prever as suas consequências. Multidões têm sempre vários fatores causais, mas, com frequência, se desdobram em condutas antidemocráticas que exigem ações policiais.[19] A pandemia não é causa, mas está por trás dessas condutas devido ao estrago provocado pelo alto desemprego e severa queda de renda. Muitas manifestações políticas virão durante a pandemia.[20]
Impactos na cultura
O setor cultural e de entretenimento costuma ficar de fora nas análises das recessões. Com a Covid-19, o fechamento ou abertura restrita dos teatros, cinemas, museus e galerias e outros ambientes desamparou por completo os profissionais dessa área que, na maioria, são free lancers, informais, que recebem por trabalho realizado e, por isso, ficam sem nenhum recurso.[21] Só no início de junho, o governo aprovou R$ 3 bilhões para ajudar os profissionais e os grupos culturais e de entretenimento, o que parece insuficiente para atender a cerca de 5 milhões de artistas, entre técnicos e pessoal de apoio.
Conclusão
Os impactos sociais da Covid-19 serão de longa duração. O desemprego será brutal. As regras de flexibilização trabalhista terão de ser prorrogadas. Elas perderão potência com o avanço da crise. O problema do déficit fiscal por elas gerado terá de ser resolvido no futuro.
Os brasileiros em geral ficarão mais pobres e mais desiguais. A atenuação do sofrimento exigirá muito trabalho dos agentes econômicos e dos governantes. Destes, espera-se uma liderança racional, confiável e que transmitam esperança ao povo.
Finalmente, a pandemia trará mudanças na globalização. Depender da China como fábrica do mundo traz riscos irreparáveis. Muitos países procurarão diversificar sua produção.[22] É um grande desafio. No Brasil, será necessário melhorar muito a qualidade da Educação e investir maciçamente em pesquisa e desenvolvimento.
Recomendações de políticas sociais
- Manter as regras trabalhistas flexíveis pelo tempo que for necessário.
- Implementar linhas de crédito com garantia do governo para evitar a falência das empresas.
- Manter o auxílio emergencial para os trabalhadores informais e formular um programa de renda mínima que contenha mecanismos de saída.
- Aprovar regras de proteção social para os trabalhadores por conta própria informais e sem vínculo empregatício.[23]
- Definir politicas específicas para a proteção de mulheres e crianças.
- Articular o uso de tecnologias modernas com programas de Educação e qualificação continuadas.
- Manter serviços de apoio psicológico para pessoas afetadas na sua saúde mental.
Notas
[1] Sobre os vários impactos da Covid-19, ver: CONTI, Thomas V. Crise tripla do Covid-19: um olhar econômico sobre políticas públicas de combate à pandemia. Texto para discussão, 2020.
[2] Cadastro Geral de Emprego e Desemprego, abr. 2020.
[3] IBGE. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios, maio 2020.
[4] MENEZES FILHO, Naércio A.; KOMATSU, Bruno K. Simulações de impactos do Covid-19 e da renda básica emergencial sobre o desemprego, renda e pobreza e desigualdade. São Paulo: INSPER, 2020. Policy paper nº 43.
[5] MP 927, 22 abr. 2020 e MP 936, 1° abr. 2020.
[6] Só puderam operar as empresas dos setores essenciais (agricultura e pecuária, comércio de alimentos e higiene, transporte, segurança, farmácias, hospitais, abastecimento de combustível etc.).
[7] ZUMBRUM, Josh. Crise afetará por até 5 anos os emergentes. São Paulo: Valor Econômico, 3 jun. 2020.
[8] CRISE do coronavírus expõe 81% da força de trabalho a risco de perda de renda. São Paulo: Folha de S. Paulo, 18 abr. 2020. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2020/04/crise-do-coronavirus-expoe-81-da-forca-de-trabalho-a-risco-de-perda-de-renda.shtml
[9] ADAMS-PRASSI, Abi et al. Inequality in the impact of Coronavirus shock: evidence from real time surveys. Bonn: Institute of Labor Economics, abr. 2020.
[10] LIMA, Leila Souza. Jovens mais pobres são vulneráveis ao Covid-19. São Paulo: Valor Econômico, 14 maio 2020.
[11] BOAS, Bruno Villas. Desigualdade de renda tende a crescer, citando estudos de Francisco Ferreira, do Banco Mundial, Valor Econômico, 25 maio 2020; Marcelo Neri, “Como o Covid-19 aumentará a pobreza e a desigualdade no Brasil”, Centro de Políticas Sociais, Fundação Getúlio Vargas, 25 maio 2020.
[12] PASTORE, José. A classe média está espremida. São Paulo; O Estado de S.Paulo, 26 dez. 2019.
[13] Nos Estados Unidos, estima-se que 40% dos empregos fechados não voltarão. Ver: REOPEN and shut, London:: The Economist, 16 maio 2020.
[14] UNITED NATIONS. The impact of Covid-19 on women. New York, 2020. Policy brief.
[15] UNITED NATIONS. Covid-19 pandemic triggers devastating social, economic impact on women and girls. New York, abr. 2020.
[16] MARQUES, Emanuele Souza et al. A violência contra mulheres, crianças e adolescentes em tempos de pandemia pelo Covid-19. [S. l. : s. n. ]: Cadernos de Saúde Pública, abr. 2020; VIEIRA, Pâmela Rocha et al. Isolamento social e o aumento da violência doméstica: o que isso nos revela? [S. l.]: Revista Brasileira de Epidemiologia, abr. 2020.
[17] LLORENTE HERAS, Raquel. Impacto del Covid-19 en el mercado de trabajo: un análisis de los colectivos vulnerables. [S. l.] Universidad de Alcalá, 2020. Serie Documentos de Trabajo n. 2.
[18] Protestos contra e a favor do governo.
[19] BLOFELD, Marike et al. Assessing the political and social impact of the Covid-19 crisis in Latin America. GIGA Focus, n. 3, abr. 2020; ESTRESSE causado pela pandemia do Covid-19 pode levar a conflitos sociais. Brasília: IPEA, 8 abr. 2020.
[20] MILANOVIC Branko. The real pandemic danger is social collapse. [S. l.] Foreign Affairs, 19 mar. 2020.
[21] CORONAVIRUS and cultural and creative sectors: impact, innovations and planning for post-crisis. Paris: OECD, 2020.
[22] MOREIRA, Assis. Países deverão rever produção doméstica. São Paulo: Valor Econômico, 25 maio 2020; Goodbye globalisation. London: The Economist, 16 maio 2020; GLOBALISATION unwound: has covid-19 killed globalisation? [S. l.]: Leaders Magazine, 14 maio 2020; JUNG, Alexander. The future of global economy: the beginning of de-globalization. [S. l.]: Der Spiegel, 8 maio 2020.
[23] Ver: PASTORE, José. O trabalho do futuro e o futuro do direito. [S. l.] Revista LTR, set. 2019; PASTORE, José. A proteção do trabalho independente. São Paulo: Folha de S. Paulo, 19 ago. 2019.
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