17 novembro 2017

Por uma Política Nacional sobre Migrações, Refúgio e Apatridia

Segundo o relatório Tendências Globais[1], levantamento do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (Acnur) em matéria de deslocamento, ao final de 2016, havia cerca de 65,6 milhões de pessoas forçadas a deixar seus locais de origem por perseguição, conflito, violência generalizada ou violações de direitos humanos. Número maior em 300 mil se comparado ao ano anterior. Desse total, cerca de 22,5 milhões eram considerados refugiados, nos termos da legislação internacional – maior número de todos os tempos.

Introdução
Segundo o relatório Tendências Globais[1], levantamento do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (Acnur) em matéria de deslocamento, ao final de 2016, havia cerca de 65,6 milhões de pessoas forçadas a deixar seus locais de origem por perseguição, conflito, violência generalizada ou violações de direitos humanos. Número maior em 300 mil se comparado ao ano anterior. Desse total, cerca de 22,5 milhões eram considerados refugiados, nos termos da legislação internacional – maior número de todos os tempos.
De acordo com esse monitoramento da Organizações das Nações Unidas (ONU), em 2016, uma média de 20 pessoas por minuto se tornaram refugiadas, solicitantes de refúgio ou deslocadas internas. Em todo o mundo, 1 em cada 113 indivíduos era refugiado, deslocado interno ou solicitante de refúgio. Tem-se, assim, a maior crise migratória desde a 2ª Guerra Mundial.
Ciente do preocupante cenário internacional e do respectivo impacto para o contexto nacional, bem como de seu papel internacional humanitário, o Brasil, na esteira do que vinha estabelecendo nas últimas décadas, intensificou passos importantes no sentido de aperfeiçoar a legislação, fortalecer as instituições e inovar em mecanismos que pudessem contribuir para o arrefecimento do alarmante quadro.
Em linha com o ordenamento constitucional e com a aprovação da Lei de Refúgio (Lei nº 9.474, de 1997), o país, nos últimos anos, vinha estabelecendo as bases para a construção e consolidação de uma política nacional sobre migrações, refúgio e apatridia, de modo a subsidiar, institucional, estrutural e normativamente, o aperfeiçoamento das políticas públicas direcionadas a esses grupos populacionais.
Nesse contexto, a Secretaria Nacional de Justiça (SNJ), em sua gestão de 2015/2016, deu início a processo interno de diagnóstico para verificação da infraestrutura, recursos humanos, processos, colaboração da Organização das Nações Unidas, capacitação, saneamento de processos e procedimentos e políticas públicas de integração, com vistas a planejar e executar as ações necessárias ao fortalecimento dos sistemas de refúgio e migração brasileiros.
Percebeu-se que, naquele momento, o Comitê Nacional para os Refugiados (Conare) se encontrava com estrutura precária, fluxos de processos desatualizados, pouca capacitação e explosão meteórica da demanda de pedidos de refúgio diante da grave crise humanitária haitiana e síria. Conforme diagnóstico inédito publicado em 2015 pela SNJ[2], as solicitações de refúgio ao Estado brasileiro haviam aumentado de 966, em 2010, para 28.385, em 2014. Um crescimento de 2.838%! (dois mil, oitocentos e trinta e oito por cento).
Notou-se também carência de dados e estatísticas oficiais sobre migração e seus fluxos e ausência de legislação e política institucional estruturada sob a perspectiva da justiça e da cidadania capazes de assegurar e expandir direitos de migrantes e apátridas.
A exponencial demanda e frágil estrutura física, de recursos humanos, financeiros e de gestão impunha à Secretaria Nacional de Justiça a elaboração de um plano de trabalho para lidar com o quadro de crise internacional e de deficiências estruturais.  Tal plano de trabalho se estruturou em medidas de fortalecimento institucional e medidas de integração de nacionais de outros países.
As medidas de fortalecimento institucional consistiam em reformas de estrutura física e de processos, capacitação, elaboração de políticas públicas, cooperações com outras entidades – governamentais, internacionais e da sociedade civil –, emprego de ferramentas de gestão e de tecnologia da informação, entre outros, visando à eficiência e à efetividade das ações de política nacional de justiça voltadas a migrantes, refugiados, solicitantes de refúgio e apátridas.
As medidas de integração de imigrantes se deram em várias frentes, desde acesso à documentação, ensino de língua portuguesa, assistência social e direito à moradia, educação e saúde, bem como capacitação em gestão empresarial e empreendedorismo, visando promover desde logo sua inserção na sociedade brasileira e, assim, o respeito a seus direitos fundamentais, atendendo-os por meio de políticas públicas integradas.
A Secretaria buscava, dessa maneira, assegurar a observância da Constituição Federal (CF), da Lei de Refúgio e de acordos e compromissos internacionais assumidos pelo Brasil. Realizando todos os esforços necessários, cumpria-se o dever de garantir a prestação do serviço estatal, que, neste caso, consistia na realização de direitos humanos.
Não se tratava apenas de reconhecer a condição de refúgio ou oferecer acesso aos serviços públicos aos migrantes, mas também de fazê-lo com rapidez e qualidade, de forma a assegurar os direitos humanos básicos e possibilitar a eles, enfim, uma vida sem violência.
Desse modo, é possível perceber que, nas últimas décadas, o Brasil tem ampliado e qualificado sua atuação para integração de imigrantes, mas pode e deve fazer ainda mais, especialmente na conjuntura de agravamento das crises humanitárias ao redor do mundo.
2- Normas nacionais e internacionais sobre tratamento de imigrantes
As três grandes referências da proteção internacional da pessoa humana são o direito internacional dos direitos humanos, o direito internacional humanitário e o direito internacional dos refugiados, bem como suas interconexões. Todos têm por finalidade a proteção da vida, da saúde e a dignidade dos seres humanos.
O primeiro diz respeito a todas as circunstâncias, de guerra e de paz, e foi desenvolvido por meio de diversos instrumentos internacionais a partir da Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948. O segundo se aplica somente na vigência de conflitos armados e se ampara em um conjunto de convenções e tratados que regulamentam os métodos e os meios de guerra, em particular, as armas. Já o terceiro oferece proteção e assistência às pessoas que atravessaram uma fronteira internacional e tem sua origem na Convenção sobre o Estatuto dos Refugiados, de 1951.
Os sistemas de refúgio e migração brasileiros decorrem, normativamente, de acordos e compromissos internacionais assumidos pelo Brasil, de determinações basilares da Constituição Federal, da Lei de Refúgio – Lei nº 9.474, de 22 de julho de 1997, e da Lei de Migração – Lei nº 13.445, de 24 de maio de 2017. Em razão disso, antes de expor a concretude das políticas para imigrantes no país, faz-se importante esclarecer seus alicerces.
Constituição   Federal
As obrigações, os objetivos e os princípios do Estado brasileiro estão expressos nos art. 1o, incisos I, II, III e IV, art. 3o e art. 4o da Constituição Federal:
Art. 1o A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
I – a soberania;
II – a cidadania
III – a dignidade da pessoa humana;
IV – os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa.
 Art. 3o Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:
I – construir uma sociedade livre, justa e solidária;
II – garantir o desenvolvimento nacional;
III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;
IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
Art. 4o A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes princípios:
I – independência nacional;
II – prevalência dos direitos humanos;
III – autodeterminação dos povos;
IV – não intervenção;
V – igualdade entre os Estados;
VI – defesa da paz;
VII – solução pacífica dos conflitos;
VIII – repúdio ao terrorismo e ao racismo;
IX – cooperação entre os povos para o progresso da humanidade;
X – concessão de asilo político.
Notam-se, assim, expressamente no texto constitucional, os alicerces para o tratamento de imigrantes no país. Esses alicerces não são meramente enunciados programáticos da Carta Magna, mas princípios fundantes de nossa ordem jurídica, a ensejar interpretação e atuação conforme.
É papel do Estado brasileiro tomar as providências necessárias para que os indivíduos tenham condições mínimas de exercer sua cidadania e viver com dignidade, cumprindo, assim, com os objetivos fundamentais previstos no art. 3º da CF. O refúgio deve ser considerado como um direito fundamental, um mecanismo constitucional de amparo ao solicitante, garantindo a prevalência dos direitos humanos insculpida no inciso II do art. 4º da Carta Magna.
Ademais, não se olvide o teor do art. 5o da CF, “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes (…)”. A isso corresponde que o nacional de outro país, seja ele residente ou refugiado, tem direitos iguais aos dos demais brasileiros, e cabe ao Estado brasileiro assegurá-los.
Decorrem de tais disposições deveres para o Estado Brasileiro como a regularização da situação do imigrante e acolhida humanitária, impedindo-se a devolução ao país onde sua vida e sua liberdade estejam sendo ameaçadas. Quanto aos refugiados, o Brasil não pode ignorar a situação de fragilidade em que se encontram esses indivíduos, sendo sua obrigação analisar e decidir rapidamente as solicitações de concessão de refúgio. Neste caso, o serviço estatal trata de garantir a prevalência dos direitos humanos dos solicitantes, vindo a cumprir exatamente com o disposto nos dispositivos constitucionais acima expostos.
No que se refere aos apátridas, é importante mencionar a Emenda Constitucional nº 54, de 2007, que trata da possibilidade de ser atribuída a nacionalidade brasileira nata aos filhos de pai ou mãe brasileiros nascidos no exterior. A mencionada Emenda permitiu o registro em repartição brasileira competente, não mais exigindo que essas pessoas viessem a residir no Brasil, o que corrigiu uma situação de brasileiros apátridas.
Carta das Nações Unidas (Decreto no 19.841/45)
O Decreto nº 19.841, de 22 de outubro de 1945, que promulgou a Carta das Nações Unidas, impõe que os membros signatários cumpram as obrigações por eles assumidas:
“Artigo 2. A Organização e seus Membros, para a realização dos propósitos mencionados no Artigo 1, agirão de acordo com os seguintes Princípios:

  1. Todos os Membros, a fim de assegurarem para todos em geral os direitos e vantagens resultantes de sua qualidade de Membros, deverão cumprir de boa fé as obrigações por eles assumidas de acordo com a presente Carta.”

Na condição de membro signatário dos diplomas internacionais abaixo aduzidos, o Estado brasileiro tem a obrigação de garantir os direitos e vantagens previstos aos nacionais de outros países, sempre com rapidez e qualidade, em atenção aos princípios da eficiência e economicidade insculpidos no art. 37 da Constituição Federal.
Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados  (Decreto  de  promulgação  n. 50.215, de 28 de janeiro de 1961)
O refugiado é definido pela Convenção das Nações Unidas relativa ao Estatuto dos Refugiados como a pessoa que, temendo ser perseguida por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas, encontra-se fora do país de sua nacionalidade e que não pode ou, em virtude desse temor, não quer se valer da proteção desse país, ou que, se não tem nacionalidade e se encontra fora do país no qual tinha sua residência habitual em consequência de tais acontecimentos, não pode ou, devido ao referido temor, não quer voltar a ele.
Esse instrumento traz em seu art. 3o a cláusula da não discriminação, pela qual:
“Os Estados Contratantes aplicarão as disposições desta Convenção aos refugiados sem discriminação quanto à raça, à religião ou ao país de origem.”
Dentre os direitos garantidos ao refugiado, destaca-se a proibição de expulsão ou de rechaço, pela qual nenhum dos Estados Contratantes expulsará ou rechaçará, de forma alguma, um refugiado para as fronteiras dos territórios em que sua vida ou liberdade seja ameaçada em decorrência da sua raça, religião, nacionalidade, grupo social a que pertença ou opiniões políticas (artigo 33 da Convenção).
Declaração de Cartagena
A Declaração de Cartagena, adotada pelo “Colóquio sobre Proteção Internacional dos Refugiados na América Central, México e Panamá: Problemas Jurídicos e Humanitários” (Cartagena, Colômbia, 19-22/11/1984), determina aos países da região que estabeleçam um regime de garantias mínimas de proteção dos refugiados:
“III- O Colóquio adotou, deste modo, as seguintes conclusões: (…) Oitava – Propiciar que os países da região estabeleçam um regime de garantias mínimas de proteção dos refugiados, com base nos preceitos da Convenção de 1951 e do Protocolo de 1967 e na Convenção Americana dos Direitos Humanos, tomando-se ainda em consideração as conclusões emanadas do Comitê Executivo do Acnur, em particular a n. 22 sobre a Proteção dos Candidatos ao Asilo em Situações de Afluência em Grande Escala.
Lei  n. 9.474/97 (Lei do Refúgio)
No ordenamento pátrio, no Estatuto do Refugiado – Lei no 9.474/97 –, estabeleceu-se que será reconhecido como refugiado todo indivíduo que: (a) devido a fundados temores de perseguição por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas, encontre-se fora de seu país de nacionalidade e não possa ou não queira acolher-se à proteção de tal país; (b) não tendo nacionalidade e estando fora do país onde antes teve sua residência habitual, não possa ou não queira regressar a ele, em função das circunstâncias descritas no inciso anterior; e (c) devido a grave e generalizada violação de direitos humanos, é obrigado a deixar seu país de nacionalidade para buscar refúgio em outro país.
Ainda segundo essa norma, o refugiado gozará de direitos e estará sujeito aos deveres dos imigrantes no Brasil, ao disposto nesta Lei, na Convenção sobre o Estatuto dos Refugiados de 1951 e no Protocolo sobre o Estatuto dos Refugiados de 1967, cabendo-lhe a obrigação de acatar as leis, regulamentos e providências destinados à manutenção da ordem pública.
Foi esse ato normativo que instituiu o Comitê Nacional para Refugiados (Conare), responsável por analisar os pedidos de refúgio, e definiu suas competências, como seguem:
“Art. 12. Compete ao Conare, em consonância com a Convenção sobre o Estatuto dos Refugiados de 1951, com o Protocolo sobre o Estatuto dos Refugiados de 1967 e com as demais fontes de direito internacional dos refugiados:
I – analisar o pedido e declarar o reconhecimento, em primeira instância, da condição de refugiado;
II – decidir a cessação, em primeira instância, ex officio ou mediante requerimento das autoridades competentes, da condição de refugiado;
III – determinar a perda, em primeira instância, da condição de refugiado;
IV – orientar e coordenar as ações necessárias à eficácia da proteção, assistência e apoio jurídico aos refugiados;
V – aprovar instruções normativas esclarecedoras à execução desta Lei.”
Quanto ao processo de refúgio, a Lei nº 9.474/1997 prevê que, ao receber a solicitação de refúgio, a autoridade competente deverá colher as declarações do solicitante e informar ao Acnur sobre o processo de solicitação de refúgio, facultando ao organismo a possibilidade de oferecer sugestões para facilitar seu andamento. Concluída essa fase de instrução, o processo é encaminhado ao secretário-geral do Conare para inclusão em pauta para apreciação e decisão do colegiado.
Convenção sobre o Estatuto dos Apátridas (Decreto de promulgação  n.         4.246, de  22 de  maio de 2002)
Apátridas são todas as pessoas que não são consideradas nacionais por nenhum Estado, conforme sua legislação. Sem uma nacionalidade, esses indivíduos não conseguem dispor dos direitos inerentes à condição de nacional de qualquer país. A isso corresponde, por exemplo, falta de acesso à documentação básica de cidadania, o que impossibilita ou torna difícil fazer valer direitos e liberdades fundamentais.
A Convenção de 1954 reconhece a apatridia como um problema internacional e busca garantir que os apátridas desfrutem de normas mínimas de tratamento, garantindo o gozo de todos os aspectos de seus direitos humanos, até que seja encontrada uma solução para seus casos. É uma norma protetiva complementar a outros instrumentos de direitos humanos, prevendo uma série de medidas especiais e práticas para esse grupo vulnerável.
Convenção para a Redução dos Casos de Apatridia (Decreto de        promulgação  n. 8.501,  de  18  de agosto de 2015)
A promulgação da Convenção de 1961 pelo Brasil gera para o país o dever de permanente aperfeiçoamento institucional e normativo com vistas a prevenir e erradicar o fenômeno da apatridia no mundo. Trata-se de importante marco normativo para prevenir casos de apatridia e proteger as pessoas que já se encontrem nessa condição. Antes mesmo de sua promulgação, o Brasil já vinha tomando medidas nesse sentido, como a já mencionada Emenda Constitucional nº 54, de 2007.
Lei de Migrações (Lei nº13,445, de 24 de maio 2017)
A nova Lei de Migração – Lei nº 13.445, sancionada em maio de 2017 e que entrará em vigor em novembro deste ano, dispõe sobre os direitos e os deveres do migrante e do visitante, regula a sua entrada e estada no País e estabelece princípios e diretrizes para as políticas públicas para o emigrante.
A norma é resultado do esforço institucional promovido pelo Ministério da Justiça, iniciado em 2013, quando foi criada Comissão de Especialistas com a finalidade de apresentar uma proposta de Anteprojeto de Lei de migrações e promoção dos direitos dos migrantes no Brasil. Foram realizadas diversas reuniões e audiências públicas, bem como se aproveitaram as recomendações da I Conferência Nacional sobre Migrações e Refúgio (Comigrar), ocorrida em 2014, em São Paulo.
Em 2015, o processo legislativo foi catalisado por articulação conjunta do Ministério da Justiça com a Casa Civil, com o Ministério das Relações Exteriores (MRE), com a Polícia Federal (PF) e com o Ministério do Trabalho e da Previdência Social (MTPS).
A norma propõe a revogação da Lei nº 6.815, de 1980, obsoleta e formulada sob a égide da doutrina de segurança nacional da ditadura militar. As cinco principais características da Lei são (i) a compatibilização com a Constituição Federal de 1988; (ii) mudança de paradigma da legislação migratória brasileira, para uma perspectiva de justiça e cidadania, direitos humanos e desenvolvimento social e econômico; (iii) consolidação de ações fragmentadas; (iv) reconhecimento e fomento da participação da sociedade civil; e (v) preparação do Brasil para enfrentar o momento histórico atual.
Esse importante marco para o país visa facilitar o acesso a serviços públicos, desburocratizar procedimentos e explicitar direitos e garantias. Assegura-se ao migrante, em condição de igualdade com os nacionais, a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, a partir da perspectiva de reconhecimento da imigração como fenômeno inseparável da dignidade humana e do imigrante como elemento constitutivo da história e da cultura do povo brasileiro.
Há, portanto, enorme arcabouço nacional e internacional referente ao tema de migração, refúgio e apatridia a direcionar o Estado brasileiro ao cumprimento dos direitos e garantias previstos para imigrantes em suas mais diversas condições, constituindo verdadeiro dever para o Poder Público.
3- Políticas Públicas para Migração, Refúgio e Apatridia
Promovido o já mencionado diagnóstico institucional, estrutural e normativo das políticas públicas para migração, refúgio e apatridia, fez-se premente o planejamento e execução de diversas ações e mecanismos para assegurar e expandir direitos, provendo acolhimento, assistência, integração e moradia, conforme amplamente documentado no Relatório de Gestão 2015/2016 da Secretaria Nacional de Justiça do Ministério da Justiça[3].
Política  Nacional sobre Migrações, Refúgio e Apatridia (PNMR)
Foram percebidas como necessárias medidas de planejamento e execução de políticas públicas de acolhimento, assistência e integração consistentes na estruturação da Política Nacional sobre Migrações, Refúgio e Apatridia (PNMR).
Partia-se do entendimento de que a adoção de uma política migratória institucionalizada oferece condições ao Brasil para fazer frente à grave crise humanitária que o mundo enfrenta neste momento, permitindo que o país faça jus à sua vocação histórica de ser uma nação acolhedora e promotora dos direitos humanos.
Em 2015, a Secretaria Nacional de Justiça deu início ao processo de formalização e consolidação dessa política, após debates com outros ministérios, acadêmicos e organizações da sociedade civil que trabalham com o tema. Chegou-se a apresentar minuta de decreto da PNMR.
Tratam-se de ações de proteção e de integração dos migrantes à sociedade brasileira, com finalidade de propiciar inclusão social, facilitar a obtenção de documentação migratória, garantir acesso pleno e igualitário a direitos e promover direitos humanos das pessoas migrantes, refugiadas e apátridas.
Em seu funcionamento, previu-se atuação articulada entre a União, os estados, o Distrito Federal e os municípios, além de contar com a participação da sociedade civil e da comunidade acadêmica, criando-se instâncias de governança da política.
Plano de Ação para Imigrantes e  Refugiados
Para além disso, foi estruturado e sistematizado Plano de Ação para Imigrantes e Refugiados, com o objetivo de aperfeiçoar a oferta de políticas de educação, saúde, assistência social, integração ao mercado de trabalho e acesso à moradia, a partir da consolidação e sistematização de ações concretas, metas, prazos e responsáveis, dando execução à PNMR. O Plano é composto por dez eixos (educação, trabalho, saúde, fortalecimento institucional, previdência e assistência social, acolhimento, cultura, documentação, habitação e sensibilização).
Rede  CRAI   –  Centro de  Referência  e  Acolhida de Migrantes e Refugiados
Em 2014, foi inaugurado o primeiro Centro de Referência e Acolhida de Migrantes e Refugiados (CRAI), no município de São Paulo. O CRAI é equipamento público específico para atender a migrantes e a refugiados, oferecendo acolhimento, atendimento especializado, assistência jurídica, psicológica e social, além de oficinas de qualificação profissional. É fruto de parceria entre o governo federal e governos estaduais e municipais.
Em 2015, inaugurou-se a segunda unidade CRAI no município de São Paulo. Em dezembro de 2015, foram assinados dois convênios tripartites, com a prefeitura de Porto Alegre e o governo do Rio Grande do Sul e com o governo de Santa Catarina e a prefeitura de Florianópolis para ampliação da Rede CRAI junto a esses parceiros.
Rede de  Solidariedade na  Sociedade Civil
Outra frente considerada de extrema relevância foi a de manutenção da rede de parceiros da sociedade civil, com o objetivo de implementar ações de atenção e de integração de migrantes e de refugiados à sociedade brasileira, sempre de forma articulada e complementar, como o Instituto Migrações e Direitos Humanos (IMDH) e a Cáritas Brasileira.
Política  Migratória
Outra prioridade da SNJ foi o aprimoramento da Política Migratória por meio de campanha de sensibilização sobre a migração; do planejamento do Portal de Imigrantes, para que os usuários pudessem acessar informações sobre seus processos e conferir de forma transparente o trabalho desenvolvido pelo Ministério; e, especialmente, da execução de uma Política Migratória Humanitária para os cidadãos haitianos.
Merece destaque a Política Migratória Humanitária para os cidadãos haitianos – caso emblemático de solução de crise migratória – que conseguiu reverter e melhorar o cenário nacional de assistência a imigrantes haitianos no Brasil.
Tratou-se de plano de ação focado em quatro eixos: ajuste da rota migratória, acolhimento, mobilidade e assistência, regularização definitiva e campanha de sensibilização.
Por meio de parceria com outros órgãos do governo federal, governos estaduais e municipais, além de entidades da sociedade civil, houve queda de 98% no número de imigrantes que entravam no Brasil por via terrestre – caracterizada por situações de violações de direitos humanos por grupos criminosos.
Com o programa de emissão de vistos humanitários em Porto Príncipe, permitiu-se e estimulou-se que os haitianos viessem de avião, de forma mais segura e planejada. A nova política possibilitou ainda melhor programação, supervisão e controle pelo Estado brasileiro no acolhimento, na mobilidade e na assistência social aos imigrantes, por meio de ação articulada e em parceria com governos estaduais e municipais.
Permitiu-se, além disso, que haitianos que haviam entrado e se estabelecido no país nos últimos quatro anos solicitassem residência permanente no país, promovendo sua regularidade migratória definitiva.
QUADRO:
Merece destaque a Política Migratória Humanitária para os cidadãos haitianos – caso emblemático de solução de crise migratória – que conseguiu reverter e melhorar o cenário nacional de assistência a imigrantes haitianos no Brasil.
Tratou-se de plano de ação focado em quatro eixos: ajuste da rota migratória, acolhimento, mobilidade e assistência, regularização definitiva e campanha de sensibilização.
Por meio de parceria com outros órgãos do governo federal, governos estaduais e municipais, além de entidades da sociedade civil, houve queda de 98% no número de imigrantes que entravam no Brasil por via terrestre – caracterizada por situações de violações de direitos humanos por grupos criminosos.
Com o programa de emissão de vistos humanitários em Porto Príncipe, permitiu-se e estimulou-se que os haitianos viessem de avião, de forma mais segura e planejada. A nova política possibilitou ainda melhor programação, supervisão e controle pelo Estado brasileiro no acolhimento, na mobilidade e na assistência social aos imigrantes, por meio de ação articulada e em parceria com governos estaduais e municipais.
Permitiu-se, além disso, que haitianos que haviam entrado e se estabelecido no país nos últimos quatro anos solicitassem residência permanente no país, promovendo sua regularidade migratória definitiva.
[1]
Disponível em: http://www.unhcr.org/statistics/unhcrstats/ 5943e8a34/global-trends-forced-displacement-2016.html
[2]
Disponível em: http://www.acnur.org/t3/fileadmin/Documentos/portugues/Estatisticas/Sistema_de_Refugio_brasileiro_-_Refugio_em_numeros_-_05_05_2016.pdf
[3]
Disponível em: http://www.justica.gov.br/noticias/secretaria-nacional-de-justica-e-cidadania-divulga-relatorio-de-gestao-2015-2016/relatorio-de-gestao-snj-2015-2016_versao_divulgacao.pdf

Política  de  Refúgio
Conforme amplamente aqui exposto, o Brasil tem o dever de proteção aos refugiados e aos solicitantes de refúgio. Em razão disso, e diante do diagnóstico realizado, que revelou situação institucional precária, a SNJ, na condição de presidência do Conare, priorizou uma série de medidas nessa área para promover a reestruturação administrativa e o fortalecimento desse órgão.
Pela primeira vez, desde a existência do Conare, o Poder Público deu publicidade e transparência integral aos números de que dispunha e nas condições de que dispunha, em duas edições do chamado “Refúgio em Números”. De igual modo, em prol da transparência e do acesso à informação, as ações de fortalecimento do sistema de refúgio brasileiro foram amplamente divulgadas à sociedade pelo Ministério da Justiça em seu site oficial, em entrevistas e eventos realizados sobre o tema.
Foram algumas dessas medidas: reforma da estrutura física do Conare, descentralização territorial desse órgão, melhoria do processo de elegibilidade, revisão do sistema de solicitação, criação de indicadores para consolidação de bases de dados, aperfeiçoamento do roteiro de entrevista, identificação de perfil de origem e causa dos solicitantes, procedimentos de checagem de informação para identificação das vedações legais de reconhecimento de refúgio, procedimentos para concessão de vistos especiais, entre outras, melhor elucidadas abaixo:

  • Reforma do espaço físico do Conare: possibilidade de entrevistas por videoconferência, melhores condições de trabalho dos servidores, solução aos problemas de armazenamento dos processos.
  • Descentralização do Conare: implementação de unidades no Rio de Janeiro, São Paulo e Porto Alegre para melhor atender aos solicitantes de refúgio e refugiados.
  • Recursos humanos: ampliação do número de estagiários e da alocação de funcionários públicos (empregados da Infraero devidamente capacitados), auxílio do Acnur mediante colaboração de consultores na melhoria do processo de elegibilidade e criação de banco de voluntários para auxílio em pesquisas e outras tarefas.
  • WikiRefúgio: criação de plataforma de dados sobre países de origem dos solicitantes de refúgio para subsidiar a análise e acelerar a emissão de pareceres pelo Conare.
  • Melhoria de processos: adoção de formulários e melhoria do trabalho do Departamento da Polícia Federal; desenho de procedimentos padrões para fluxos de informações conforme legislação nacional; identificação da necessidade de procedimento de segurança; identificação da necessidade de capacitação dos servidores em consulado; formulação, pela primeira vez, de um roteiro de entrevista; identificação de fluxos de refúgio, de imigração ou mistos; identificação de tendências migratórias (haitianos, angoleses, congoleses); auxílio nas maiores demandas presenciais; e na informação sobre direitos e garantias para os refugiados segundo compromissos internacionais e legais assumidos pelo país.
  • SisConare: criação de um sistema digital de processos que facilitará o trâmite de processos e a consolidação de base de dados.
  • Adesão ao QAIQuality Assurance Initiative (Iniciativa de Garantia de Qualidade), estratégia implementada pela ONU em vários países com o objetivo de avaliar e promover a qualidade e a eficiência dos procedimentos de determinação da condição de refugiado.
  • Redução do passivo de processos que superaram mais de 64 mil nos últimos anos.
  • Treinamento e capacitação.
  • Programa de vistos especiais para pessoas afetadas pelo conflito sírio
  • Aprimoramento de políticas de integração de refugiados: acesso à documentação, ensino de língua portuguesa, assistência social e direito à moradia.
  • Projeto Refugiado Empreendedor: parceria com o Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas – Sebrae para oferecer capacitação em gestão empresarial, facilitando sua inclusão social.
  • Cooperação com o Acnur para aprimoramento de metodologias e técnicas de análise e processamento de diferentes dados e indicadores, avaliação de cenários e desenvolvimento de novas abordagens de financiamento.
  • Início das tratativas para retomada do Programa de Reassentamento de refugiados.
  • Campanha de sensibilização sobre refúgio.

Política de Apatridia
Nesse período, promulgou-se a já mencionada extremamente importante Convenção das Nações Unidas para a Redução dos Casos de Apatridia (de 1961) no Brasil. Também nessa seara, a desburocratização do Decreto de Migração, por meio do Decreto no 8.757, de 10 de maio de 2016, proporcionou avanço, posto que extinguiu a exigência de que o migrante, ao se naturalizar, renunciasse expressamente à sua nacionalidade anterior.
Por fim, por ação SNJ, a Lei de Migrações passou a contemplar também a disciplina do regime de reconhecimento e de proteção de apátridas no Brasil.
4- Considerações Finais
A adoção de uma política nacional sobre migrações, refúgio e apatridia voltada à consolidação de programas, ações e projetos que garantam direitos a esses cidadãos, sua regularização e documentação, bem como que promovam sua integração à sociedade, é medida premente de justiça e cidadania capaz de promover desenvolvimento social e econômico.
O debate, a formulação, a construção e a implementação de uma política nacional dessa natureza têm relevância de ordem humanitária, internacional, estratégica e histórica.
Em primeiro lugar, uma política para esse público parte do reconhecimento dos fenômenos migratórios como inseparáveis da dignidade humana, que não é territorializada, mas universal. A essas pessoas cabem direitos e acesso a serviços essenciais em qualquer ordem jurídica democrática, por imperativo humanitário e de solidariedade.
Em segundo lugar, a concepção dessa política obedece a razões jurídicas, consubstanciadas nos amplamente demonstrados compromissos constitucionais, legais e internacionais, assumidos pelo Estado brasileiro, que deles não pode se esquivar, sob pena de fazer ruir suas próprias bases.
Uma terceira ordem trata das razões estratégicas para a adoção de uma política nacional sobre migrações, refúgio e apatridia, ligadas ao desenvolvimento nacional. Sobre isso, é preciso reconhecer que o boom demográfico brasileiro está previsto para se encerrar na próxima década. A isso corresponde que a nossa população está em processo de envelhecimento e deve enfrentar os problemas sociais e econômicos que daí advêm. Por conta disso, o país poderá se beneficiar dos imigrantes e refugiados para restabelecer a população economicamente ativa e realizar a compensação previdenciária, como fizeram outros países em desenvolvimento.
Ademais, é preciso lembrar que as pessoas em deslocamento, por seu perfil e vivência, tendem ao empreendedorismo, forte gerador de emprego e renda. Tem-se aí um vetor de desenvolvimento social e econômico, mesmo em um cenário de crise econômica, que precisa ser reconhecido e potencializado, superando suposições meramente preconceituosas e discriminatórias.
Outrossim, é imprescindível que o Brasil, por coerência histórica, acolha tais pessoas, já que somos um país forjado por nacionais de outros países – seja, infelizmente, por deslocamento forçado, como foi o caso da escravidão; seja por imigrantes europeus e refugiados da primeira e segunda guerras mundiais.
Por fim, é preciso destacar que, por meio de uma atuação humanística e garantidora em relação aos imigrantes, o Brasil tem a conquistar papel de proeminência na cooperação internacional – o que lhe alçaria melhores posições nos debates multilaterais, respeito nos fóruns internacionais e confiança do ambiente internacional.
Notas:

  1. Disponível em: http://www.unhcr.org/statistics/unhcrstats/ 5943e8a34/global-trends-forced-displacement-2016.html
  1. Disponível em: http://www.acnur.org/t3/fileadmin/Documentos/portugues/Estatisticas/Sistema_de_Refugio_brasileiro_-_Refugio_em_numeros_-_05_05_2016.pdf
  1. Disponível em: http://www.justica.gov.br/noticias/secretaria-nacional-de-justica-e-cidadania-divulga-relatorio-de-gestao-2015-2016/relatorio-de-gestao-snj-2015-2016_versao_divulgacao.pdf

Beto Ferreira Martins Vasconcelos é advogado, professor na Fundação Getulio Vargas (FGV/RJ), ex-secretário Nacional de Justiça e ex-presidente do Comitê Nacional para os Refugiados (Conare). Marina Lacerda e Silva é advogada e mestranda em Direito, Estado e Constituição pela Universidade de Brasília (UnB). Paulo Roberto Gitirana de Araújo Guerra, administrador público, mestre em Desenvolvimento Social e em Paz pelas Universidades de Erasmus e da ONU, ex-diretor-adjunto do Departamento de Migrações, do Ministério da Justiça.

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