07 abril 2025

A ascensão da extrema direita no Brasil

O Brasil vive este pêndulo há cem anos. Os governos populares, que são industrializantes e investem em infraestrutura, formam um patrimônio estatal importante que os golpes de Estado visam, precisamente, transferir para os bolsos privados de uma meia dúzia de especuladores nacionais e, muito especialmente, estrangeiros

Não foi por acaso que a “elite do atraso” tenha entrado de cabeça na atual onda da extrema direita, a qual foi pavimentada, precisamente, pela “lava-jato”. Ao tentar acabar com o partido popular hegemônico até então, que era o PT, a lava-jato – apoiada pela elite e sua imprensa venal – termina por criminalizar toda a política, destruindo também com os partidos elitistas tradicionais como o PSDB. Bolsonaro e a extrema direita se aproveitam do rebaixamento da política tradicional como um todo e posam de “antipolítica”, permitindo, ao mesmo tempo, que a frustração do povo empobrecido pelos efeitos do golpe de 2016 possa ser canalizado para objetivos falsos. 

Este artigo foi publicado na edição 69 da Revista Interesse Nacional – Clique aqui para ver a revista completa

Bolsonaro protagonizou a entrega de empresas estatais a preço de banana, fazendo a festa da “privataria” elitista da fração financeira. O Brasil vive este pêndulo há cem anos. Os governos populares, que são industrializantes e investem em infraestrutura, formam um patrimônio estatal importante que os golpes de Estado visam, precisamente, transferir para os bolsos privados de uma meia dúzia de especuladores nacionais e, muito especialmente, estrangeiros. O agronegócio também se apaixonou por Bolsonaro, ao ver que tinha alguém disposto a tolerar todo tipo de abuso de poder com agrotóxicos e estimular queimadas, grilagem e criminalização dos movimentos populares no campo. 

A principal herança do golpe de 2016 foi precisamente Bolsonaro e a ascensão da extrema direita. Um golpe realizado, como vimos, por três razoes principais: 1. pela pressão dos EUA de evitar que o Brasil se tornasse uma potência regional importante, de modo a preservar a divisão internacional do trabalho que nos condena à exportação de produtos primários há 500 anos; 2. a necessidade de manter juros altos que a presidente Dilma tentava combater; 3. repassar os 70% de aumento real do salário-mínimo dos trabalhadores da era Lula de volta aos especuladores financeiros. Com o primeiro ponto, que explica o apoio americano, temos a destruição do Brasil como potência regional ascendente. Não à toa a “lava-jato” concentrou-se em destruir empresas como a Petrobras e a Odebrecht, que representavam a expansão do capitalismo brasileiro na região e no mundo.  

Para a política brasileira, no entanto, o último ponto foi o mais decisivo. Afinal, o público cativo e segmento social suporte de Bolsonaro foi precisamente o “pobre remediado” que ganha entre 2 e 5 salários-mínimos e que era chamado, muito erroneamente de “nova classe média”. Afinal, a “renda média” num país desigual e pobre reflete o “pobre remediado”, e não a classe média que é uma classe de privilegiados pelo monopólio do capital cultural legítimo. Mas o que realmente importa é que essa classe social empobreceu com o golpe de 2016 e sua ascensão social, simbolizada pelo aumento real de 70% do salário-mínimo na era Lula, foi contida pelos mecanismos financeiros que repuseram o nível salarial em níveis baixos anteriores e repassaram a massa salarial para os bolsos dos especuladores financeiros. 

A antiga “nova classe média”, de maioria evangélica, não encontrou na mídia privada, e muito menos nas redes sociais, nenhuma explicação acerca do seu empobrecimento súbito. Ao contrário, “a corrupção do PT”, ou os gastos sociais como o bolsa-família, foram apresentados como os mais óbvios candidatos para a fábrica de mentiras midiática explicar o que estava acontecendo. Com isso, fecha-se o horizonte de compreensão da população acerca do que realmente estava acontecendo. 

Identificação imediata, libidinal e emotiva

Impedidos, portanto, de identificar os seus verdadeiros algozes na Faria Lima como causa da sua decadência e pobreza, a antiga classe C se torna presa fácil do combo “pregação evangélica e extrema direita”. Sem a possibilidade de transformar sua raiva legítima em indignação, posto que as causas reais e o inimigo real foram invisibilizados pela imprensa venal, o pobre remediado tem duas alternativas: ou bem ele se culpa como causa do próprio fracasso, já que os pobres são os mais meritocráticos e foram ensinados a pôr a culpa neles próprios; ou eles canalizam essa humilhação, sentida e experenciada sem reflexão, para os grupos estigmatizados, de modo a produzir “bodes expiatórios” para aquilo que, de outro modo, teriam que perceber como fracasso individual.  

Tanto a pregação evangélica quanto a extrema direita sabem nadar de braçada neste pântano. Ambos têm no pobre remediado seu público mais cativo. Como o caminho para a indignação contra o saque elitista é cuidadosamente evitado, resta ao humilhado transferir o fardo da humilhação aos pobres e marginalizados que ganham entre zero e dois salários-mínimos e que perfazem quase 40% da população brasileira. Culpar bodes expiatórios é a fórmula da extrema direita em todos os casos. O racismo ajudou, como sempre faz na nossa sociedade, muitíssimo. 

Nesse sentido, Bolsonaro, “lixo branco” ele próprio além de raivoso e perverso, vai permitir que os brancos pobres, especialmente da região Sul e de São Paulo, sintam-se “representados” como se eles próprios, com sua vida obscura e sem perspectivas, estivessem, finalmente no poder, afinal tem alguém tão raivoso e primitivo como eles na presidência. Para quem não tem nada e sempre se viu alijado dos processos políticos e decisórios isso é muito. A identificação do branco pobre com Bolsonaro é muito semelhante à identificação do nordestino pobre com Lula. Eles perfazem o tipo “exemplar” de liderança carismática no sentido de Max Weber. Dito de outro modo, a identificação popular é garantida pela identificação imediata, libidinal e emotiva, com um líder percebido como “um dos nossos”.

Isso se casa também com a reflexão freudiana acerca do líder carismático. Para Freud, basta que o líder incorpore de modo exagerado as características dos seus próprios seguidores para ser visto por eles, por um processo de identificação libidinosa e de difícil controle racional, como uma espécie de extensão de si mesmo. É isso que explica a dificuldade de crítica racional e as coisas bizarras que fomos obrigados a testemunhar nos últimos anos. 

O racismo é, em todos os casos, a pedra de toque para compreender toda a dinâmica política e social brasileira. Para o branco pobre do Sul e de São Paulo, a culpa do seu empobrecimento relativo é o nordestino fazedor de filhos e recebedor do que é visto como o lanche grátis do bolsa-família. Mas, também aí há racismo racial em jogo e não apenas “racismo regional” como se imagina comumente. Os nordestinos, afinal, são em quase 80% mestiços e negros, enquanto o Sul e São Paulo é 70% branco e se acredita ainda hoje “europeu” e nunca se identificou, como não se identifica até hoje, como fazendo parte do “povinho” mestiço e preto. Bolsonaro vai representar e “incorporar” esse racismo, que estava apenas adormecido, “performaticamente”, ou seja, sendo apenas ele mesmo: raivoso, covarde, racista, misógino e agressivo. 

Como ninguém explicou, nem na mídia privada e elitista ela própria, nem as redes sociais a serviço da desinformação, como os empobrecidos pelo golpe poderiam compreender sua real posição? Afinal, todo conhecimento e toda informação são “mediatizados”. Se não chega nada até ele, o empobrecido não tem como saber quem o deixou mais pobre. Ele possui, então, duas opções: como ele é meritocrata, é necessário então assumir o fracasso como culpa própria; ou canalizar o ressentimento e a frustração para alguém ainda mais frágil e sem defesa. 

A luta contra a sua desumanização

A pregação evangélica e a extrema direita se especializaram no mesmo trabalho: criam uma guerra entre os pobres remediados e os pobres excluídos e marginalizados quase todos pretos. As vítimas do racismo racial e de classe são sempre as mesmas ainda que as máscaras sejam diferentes. O ódio ao nordestino, como vimos, não tem nada de preconceito regional, mas sim de racismo racial pelo elevado número de negros e mestiços naquela região. É isso que explica o ódio do sulista branco pobre contra os nordestinos. 

O outro grande grupo popular que vota em e apoia Bolsonaro e a extrema direita é o próprio negro evangélico. A situação do negro evangélico, que compõe o outro grande grupo social importante dos pobres remediados de direita, é muito distinta do branco pobre do Sul. O branco pobre se sente inferior ao branco mais rico da classe média, mas ele se sabe “gente humana”. A polícia não sai matando brancos impunemente. Afinal, seu maior objetivo desde sua criação foi matar preto, serviço este sempre aplaudido pela classe média branca e pela elite. 

Já o negro tem sempre que lutar contra a sua desumanização. A polícia pode matá-lo impunemente e literalmente tudo que o preto faz se torna crime: sua música, sua religião, sua droga recreativa. Criminoso não é o cara da elite que assalta todo mundo e deixa o povo pobre. Criminoso, refletindo a máxima de Michel Foucault que o crime e o criminoso têm que ser construídos – o arbitrário que se transforma em norma enquanto tais, é o preto que, por falta de opções, tem que vender uma trouxa de maconha na esquina. Se for pego, ganha uma bala na cabeça ou 15 anos de reclusão. 

A situação social desesperadora do negro é a parteira do processo social de “branqueamento”. Tornar-se “branco” não significa mudar a pigmentação da pele. Significa se identificar, como se fossem os seus, com os valores dos seus algozes. O racismo do preto contra o preto é possibilitado pela transformação do negro em criminoso. Precisamente para escapar desta condenação, o negro evangélico se entrega de corpo e alma às distinções morais criadas pelo neopentecostalismo e pelo pentecostalismo. Primeiro, a aderência aos valores elitistas que condenam sua própria raça e classe social; racismo transfigurado e renomeado de “segurança pública” para moralizar o racismo e o assassinato de pretos, depois o ataque a qualquer ética sexual divergente e, por último, mas não menos importante, a subordinação da figura feminina. 

O próprio negro evangélico passa a apoiar o assassinato indiscriminado de pretos pobres de modo a se distinguir destes. Uma nova máscara do racismo que permite que ele diga que defende a “segurança pública” quando apoia o massacre diário de seus irmãos de cor nas cidades brasileiras. Ao se subordinar à moralidade elitista, ele se crê participando do mundo dos brancos e dos ricos: ele “embranquece”. E ajuda, ainda, a eleger prefeitos e governadores, como o de São Paulo, que prometem matança purificadora de pretos e pobres. 

Corrupção como bandeira das classes do privilégio

A própria religiosidade evangélica, no entanto, é racista no seu núcleo. O neopentecostalismo da Igreja universal, por exemplo, é a mais perfeita tradução das crenças populares da religiosidade afro, na medida em que o mundo social é percebido como dominado por espíritos bons e maus, religiosidade esta que o neopentecostalismo apenas “renomeia”, com uma pátina de judaísmo e cristianismo, precisamente para “embranquecer” o sincretismo religioso afro-popular. A perseguição da religiosidade africana é maior aqui precisamente por sua proximidade e similitude quando se trata de eliminar uma concorrência direta.

Bolsonaro e a extrema direita, comprovam a tese de que modo a escravidão e o racismo que a acompanha perfazem o núcleo de toda a vida política e social do Brasil. No contexto do “racismo cordial”, que se cria nos anos 1930 pela pregação antirracista de Getúlio Vargas, o racismo vai se esconder atrás de nomes e figuras convenientes. Primeiro, vem “o povo corrupto eleitor de corruptos” criada por intelectuais como Sérgio Buarque e Raymundo Faoro, que supostamente dizia respeito a todo o povo. 

No entanto, como o branco imigrado entre 1880 e 1930 jamais se viu fazendo parte deste povinho mestiço e preto, corrupto e eleitor de corruptos vai ser o preto, o mestiço e o pobre de modo a criminalizar seu voto e participação popular. Os branquinhos da classe média saem às ruas em todos os golpes de Estado para “moralizar”, como se fossem representantes da moralidade pública, e não racistas, o racismo que não pode mais dizer seu nome. 

O tema da corrupção entre nós, uma mentira que imbeciliza o povo como um todo, serve para manter as classes pobres e pretas no seu lugar frágil e desprotegido para poder ser mais bem explorado e humilhado. Como todos sabemos, a classe média branca não tem, na verdade, nada contra a corrupção, se for a dela ou da elite que ela inveja. O tema da corrupção, que não precisa ser comprovada se toda a imprensa venal decidir criar uma realidade virtual distorcida, serve, na realidade, para evitar qualquer forma de inclusão popular. Ao impossibilitar qualquer inclusão e ascensão dos pobres e pretos, a classe média branca assegura seu monopólio do capital cultural dos bons empregos, e a elite assegura seu domínio do Estado para o saque elitista. 

Como fica feio assumir estes objetivos de público, inventou-se a corrupção como bandeira das classes do privilégio contra qualquer forma de inclusão popular. O branco racista agora pode ter a pachorra de dizer que ele é um “penhor da moralidade pública” para enfeitar seu racismo prático com as cores douradas da moralidade. 

No final, tudo é racismo e herança escravocrata, mas reluzem como se fosse “alta moralidade”, afagando a consciência do racista e legitimando a desigualdade, humilhação e exploração mais abjeta. A construção do bandido como o preto e do nordestino como preguiçoso que vive às custas do trabalho de outrem, são outras formas de “moralizar” o racismo, uma prática na qual os brasileiros são os verdadeiros campeões mundiais.

é sociólogo, advogado, professor universitário, escritor e pesquisador brasileiro, que atua nas áreas de Teoria Social e de estudos sobre a desigualdade e as classes sociais no Brasil contemporâneo

Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

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Democracia 🞌

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