A aversão da extrema direita pela universidade
O governo Trump e a extrema direita que o apoia têm consciência de que precisam das inovações propiciadas pelas instituições acadêmicas para assegurar aquilo que ele persegue: o domínio absoluto nos campos da tecnologia, da economia e da força militar

Por José Eduardo Campos Faria*
A exemplo do que ocorreu com o nazismo e o fascismo, na década de 1930, e com o bolsonarismo e o trumpismo entre os anos de 2017/2018 e 2021/2022, as instituições acadêmicas continuam suscitando um desafio para governos autoritários e iliberais, como se vê no início do segundo mandato de Donald Trump, à frente do governo dos Estados Unidos.
Por um lado, Trump vê as universidades como ameaça aos valores tradicionais, motivo pelo qual seu governo só decidiu oferecer subsídios e financiar as atividades de ensino e pesquisa às universidades que se submetem à sua visão de mundo. Para se ter ideia do alcance dessa medida, em 2023 foram repassados pelo governo Biden a essas universidades US$ 60 bilhões para atividades de pesquisa e desenvolvimento – e, das 25 instituições que mais obtiveram recursos federais, 16 passaram a ser investigadas após o governo Trump tê-las acusado de desprezar os tais valores tradicionais.
Por outro lado, o governo Trump e a extrema direita que o apoia têm consciência de que precisam das inovações propiciadas pelas instituições acadêmicas para assegurar aquilo que ele persegue: o domínio absoluto nos campos da tecnologia, da economia e da força militar. No entanto, é possível conciliar as duas coisas? Se a resposta for afirmativa, como promover essa conciliação?
Esta discussão não é nova. A história moderna e contemporânea sempre evidenciou como as relações entre Estado e financiamento de universidades – especialmente no que se refere à formação de quadros técnicos e desenvolvimento da ciência e tecnologia de ponta – tendem a converter saber eficaz muitas vezes é sinônimo de poder econômico e político. Também mostrou como, num determinado momento, a extrema direita americana alargou o conceito de inimigo político interno, com o objetivo de incluir nele professores e intelectuais com pensamento crítico.
Os Estados Unidos, por exemplo, obtiveram a hegemonia econômica, política e militar em termos mundiais quando passaram a atrair as elites científicas europeias depois da primeira guerra mundial, entre 1914 e 1918. E, a partir do momento em que sucessivos governos americanos se tornaram um dos principais financiadores de pesquisa científica, inovação e desenvolvimento, eles impuseram a chamada pax americana a partir do final da segunda guerra mundial, ocorrida entre 1939 e 1945.
Agora, num período da história contemporânea em que os problemas sociais, econômicos e políticos mais importantes exigem a produção e o processamento de um alto grau de conhecimento científico inovador, o mundo assiste a ofensiva da extrema direita liderada por Trump contra a autoridade científica, à liberdade de expressão e à liberdade acadêmica, chegando até mesmo ao ponto de tentar intervir no Departamento de Estudos sobre Oriente Média da Harvard University e de tentar obrigá-la a reformular o processo seletivo de estudantes estrangeiros para impedir a matrícula de alunos hostis aos valores americanos.
Trata-se de uma iniciativa que retira isenções fiscais, subsídios e financiamentos às universidades americanas que se negam a ser submissas. E a justificativa – baseada em falsidades e mentiras – é que essas universidades não estariam combatendo o antissemitismo, seriam palco de um ativismo excessivamente progressista e enfatizariam a tríade diversidade, a equidade e a inclusão, pondo assim o ativismo à frente do conhecimento e, por consequência, deixando de formar “melhores cidadãos”.
Na realidade, o que se está vendo são dois fatos preocupantes – ambos ligados ao que a filósofa Hannah Arendt chamava de mentiras públicas. De um lado, destaca-se o risco de erosão da autoridade do establishment científico americano contemporâneo. De outro, a corrosão dos próprios os valores políticos americanos, baseados numa democracia multicultural.
Quando governantes mentirosos mascaram a verdade que desejam esconder paras se manter no poder, dizia Arendt, eles vão muito além do oportunismo e da má fé. Isto porque, quando têm sucesso, destroem tradições sociais, políticas e jurídicas, o que lhes abre caminho para transferir o poder democrático para a política, para o exército e para a massa alienada que os apoia.
Mentiras são mais clamantes à razão do que a realidade, pois os políticos mentirosos sabem, de antemão, o que a plateia ou o auditório quer ouvir. “A negação deliberada da verdade dos fatos – isto é, a capacidade de mentir – e a faculdade de mudar os fatos – a capacidade de agir – estão interligadas, devendo sua existência a uma mesma fonte. Trata-se da imaginação”, dizia Arendt. Publicado há quase seis décadas, seu ensaio sobre a mentira na política prima por uma preocupante atualidade. Um dos meios mais eficazes de deter o avanço da mentira e da manipulação da verdade quase sempre passa pela independência e pela autoridade dos espaços acadêmicos – concluía. Por isso, fica claro porque políticos como Trump e sua versão tupiniquim, Jair Bolsonaro, jamais hesitaram em investir contra o saber científico, contra as liberdades de expressão e de pesquisa, contra os processos vigentes de contratação de docentes e de seleção de estudantes e contra a autonomia universitária em didática e administrativa.
Para eles, o desprezo pela ciência e a compulsão pela mentira são as armas que têm para ascender ao poder e tentar nele se manter, independentemente do que dizem as constituições de seus países. São os meios que utilizam para reduzir a autonomia universitária e acabar com a auto-organização da ciência. São os instrumentos de que se valem ao destinar recursos financeiros apenas às instituições de ensino superior que substituem debates abertos – mas teórica e analiticamente bem fundamentados – pelo princípio do magister dixit e pelo culto ao líder.
Para aqueles de minha geração que entraram na universidade na segunda metade dos anos de 1960, nada do que vemos hoje nos Estados Unidos surpreende. Naquela época, a ditadura brasileira cassava, torturava e exilava professores e intervinha nos programas acadêmicos, vetando determinados autores. Para aqueles de minha geração que seguiram a carreira universitária, também não surpreendeu o lançamento, pelo Instituto General Villas Bôas, meses antes das eleições presidenciais de 2022, de um “projeto de nação” formulado por militares vinculados ao bolsonarismo, no qual pregavam a luta contra “a ideologização radical do ensino”, o combate “práticas comportamentais distorcidas que afetam as atividades de ensino superior, prejudicando a formação do cidadão” e mudanças no “processo de escolha de reitores das universidades públicas com o objetivo de restringir as influências de grupos de interesses políticos, ideológicos e outros que não voltados ao bem comum”.
A verdade é que não há muita diferença entre o que Trump vem fazendo nos Estados Unidos, comprometendo o desenvolvimento da ciência, da tecnologia e da inovação, e o que já ocorreu no Brasil por iniciativas decorrentes de golpes militares. É assim que a extrema-direita trata a universidade: como um locus em que os horizontes de vida e as ideias de alunos e professores são encarados pelo poder político dominante tão perigosos que não têm direito a salvaguardas constitucionais.
Se na década de 1930 nazistas e fascistas promoviam queimas públicas de livros como parte da sua política de perseguição a intelectuais e acadêmicos, na década de 2020 a extrema direita promove a asfixia financeira da universidade.
José Eduardo Campos Faria, professor da Faculdade de Direito da USP
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