17 junho 2022

A confiança política exige o reconhecimento do mérito

Eleições na França demarcaram uma divisão entre a confiança e a desconfiança dos cidadãos em relação à política e às instituições, o que revelou um problema de coesão e de reconhecimento do mérito que servem de base aos ideais democráticos

Eleições na França demarcaram uma divisão entre a confiança e a desconfiança dos cidadãos em relação à política e às instituições, o que revelou um problema de coesão e de reconhecimento do mérito que servem de base aos ideais democráticos

Emmanuel Macron comemora vitória nas eleições presidenciais francesas (Foto: Divulgação)

Por Luc Rouban*

A eleição presidencial de 2022 na França, como o primeiro turno das eleições legislativas, destacou uma divisão que separa a França da confiança e a França da desconfiança. De fato, todos os estudos realizados há anos mostram que a cisão entre os chamados movimentos políticos “populistas” de direita ou de esquerda e os partidos políticos ou movimentos de defesa das instituições da Quinta República se traduz em linguagem política nesta oposição entre dois conjuntos de cidadãos.

Enquanto os populistas favorecem a democracia direta, o controle permanente dos eleitos e a ação imediata dos cidadãos na ação pública, os antipopulistas pretendem preservar o mundo das profissões políticas e uma certa distância entre eleitores e eleitos. Eles devem ser capazes de compreender um mundo complexo onde os efeitos das políticas públicas se desdobram no longo prazo. Esta dicotomia encontra-se muito claramente entre aqueles que defendem o reforço da soberania nacional e aqueles que, pelo contrário, pretendem reforçar o nível europeu.

A questão que se coloca é sobre qual é a base da desconfiança ou da confiança política. A confiança, vale lembrar, é a capacidade de se engajar em uma relação social com os outros, sejam indivíduos ou instituições, com base na aposta de que cumprirão seus compromissos e cumprirão sua palavra. A confiança pressupõe, portanto, um compromisso moral, mas também respeito e, portanto, a permanente revitalização de um vínculo social para que os indivíduos possam formar uma “comunidade” e assim garantir a segurança de suas trocas.

‘A confiança pressupõe um compromisso moral, mas também respeito e, portanto, a permanente revitalização de um vínculo social para que os indivíduos possam formar uma “comunidade”’

A confiança é, portanto, central não só na vida econômica e dos mercados, cujas transacções são liquidadas em longo prazo, mas também na vida política, pois é a base da escolha eleitoral para além das preferências ideológicas ou dos interesses que pretendemos defender. Qual é o sentido de votar, se os programas não são respeitados, se os políticos mudam de ideia, se novos atores inesperados intervêm no campo da tomada de decisões?

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Uma desconfiança que alimenta a vida política

Mesmo uma análise rápida dos níveis de confiança nas instituições políticas mostra, por um lado, que são muito baixos, em particular no que se refere ao que se verifica nas pesquisas comparativas realizadas pelo barômetro de confiança política do Centro de Pesquisas Políticas da Sciences Po (Cevipof). Por outro lado mostra que distingue-se claramente entre as instituições políticas locais, como o prefeito –que é o único a se beneficiar de um nível de confiança bastante alto, independentemente das escolhas políticas dos entrevistados.

Esses resultados também diferenciam claramente os eleitores e candidatos dos partidos políticos que defendem as instituições da Quinta República de todos aqueles que defendem uma profunda revisão dessas instituições em nome da democracia direta e da representação proporcional de todas as forças políticas na Assembleia Nacional. Podemos, assim, constatar isso quando cruzamos o voto no primeiro turno da eleição presidencial de 2022 e o nível de confiança no sistema político.

‘A eleição presidencial de 2022 veio para ilustrar perfeitamente esse mecanismo de fratura da vida política já que seu resultado cria uma tripartição do espaço político francês’

A eleição presidencial de 2022 veio para ilustrar perfeitamente esse mecanismo de fratura da vida política já que seu resultado cria uma tripartição do espaço político francês entre o macronismo, a France Insoumise e o Rassemblement National, cuja lógica é na realidade binária. Opõe-se aos que confiam no sistema político –e que aderem mais ou menos ao macronismo na preparação das eleições legislativas– e a todos os que rejeitam esta eleição como resultado de um voto à revelia (é o apelo de Jean-Luc Mélenchon para ser eleito primeiro-ministro) ou um bloqueio midiático e oligárquico da vida política (tema amplamente desenvolvido pelo Rassemblement National).

Mas podemos ver claramente: a crise de confiança leva a críticas ao presidente eleito muito além da contestação dos resultados de seu mandato anterior de cinco anos ou de seu programa político para o futuro para questionar a legitimidade do resultado das urnas. Esta última, ligada a uma taxa de abstenção particularmente elevada, tende a tornar execrável a democracia representativa para grande parte do eleitorado, a parte mais modesta, a menos instruída e que vive em situação de exclusão social.

As explicações tradicionais e seus limites

A desconfiança política não é nova e, pode-se dizer, permanece associada à própria ideia de democracia, pois um regime democrático limita o mandato dos eleitos no tempo, divide poderes, coloca sua ação sob o controle da Justiça no que diz respeito às regras do direito e, em particular, a Constituição, estabelece mecanismos de controle das finanças públicas (“não à tributação sem representação” seria a palavra de ordem da Revolução Americana) e avaliação de políticas públicas. Assim sendo, a desconfiança permanece sob controle e não diz respeito aos próprios mecanismos de controle.

‘A desconfiança política contemporânea é diferente na medida em que está fortemente associada tanto à desconfiança interpessoal quanto à desconfiança da ciência e de todos os procedimentos racionais que deveriam dar conta da ação pública’

No entanto, a desconfiança política contemporânea é diferente na medida em que está fortemente associada tanto à desconfiança interpessoal (aquela que se mostra espontaneamente em relação aos outros) quanto à desconfiança da ciência e de todos os procedimentos racionais que deveriam dar conta da ação pública, como estatísticas ou relatórios oficiais. A crise da Covid-19 destacou, por exemplo, que a desconfiança na política de saúde do governo era apenas o subproduto de uma desconfiança geral das autoridades públicas e que quanto mais o discurso e a ciência especializados se afastavam dos círculos de tomada de decisão do governo mais a confiança cresceu.

Essa desconfiança de princípio torna, portanto, ineficazes as explicações tradicionais dadas sobre as críticas que os cidadãos fazem ao mundo político em geral e aos funcionários eleitos em particular.

Não podemos, portanto, explicar o nível de desconfiança pelos maus resultados obtidos pelos governos no campo econômico. Isso é claramente ilustrado hoje na França, onde o nível de confiança em Emmanuel Macron é muito baixo (cerca de 34%), embora o nível de desemprego não tenha sido tão baixo há uma década. De maneira mais geral, a análise histórica de longo prazo mostra que a confiança nos políticos começou a declinar sob a Quinta República a partir de 1974, inexoravelmente e sem que os resultados dos vários governos sucessivos tivessem menos efeito.

Nem a desconfiança pode ser explicada apenas pela interação das instituições. Para muitos analistas, bastaria modificar os métodos de votação e multiplicar os referendos ou os procedimentos da democracia participativa para que a confiança voltasse. A passagem para o voto proporcional para eleger deputados permitiria, sem dúvida, representar mais fielmente as várias sensibilidades políticas no seio da Assembleia Nacional. Mas não é porque um deputado é eleito em lista que os eleitores terão mais confiança nele.

https://interessenacional.com.br/edicoes-posts/eleicoes-na-franca-o-que-representam-e-o-que-esperar/

A elaboração das listas é objeto de muitas negociações dentro dos partidos políticos no âmbito dos mercados profissionais. Isso pode ser visto muito claramente no contexto das eleições regionais, onde o voto proporcional permite filtrar sucessivamente aqueles que conseguem vencer. Os referendos também podem ser multiplicados, mas o nível de confiança política em um país como a Itália, que os pratica com frequência, e em particular para revogar certas leis, não é superior ao observado na França.

A confiança nas pessoas ou nas instituições políticas também não varia de acordo com a estrutura mais ou menos descentralizada de um país. É, por exemplo, muito baixo na Espanha, que, no entanto, se organiza em um modelo quase-federalista, confiando as políticas públicas mais importantes em nível doméstico às comunidades autônomas.

Reconhecimento social do mérito

De fato, uma análise comparativa minuciosa revela um fenômeno comum a países tão diferentes quanto Alemanha, França, Itália e Reino Unido. A confiança política não nasce e não depende do funcionamento do sistema democrático, mas da coesão social e do reconhecimento do mérito que servem de base aos ideais democráticos.

Existe uma correlação muito forte entre estas duas dimensões e não é por acaso que a democracia é predominantemente considerada de boa saúde nos países do norte da Europa, onde também encontramos um nível muito mais baixo de conflitos sociais no local de trabalho, como uma maior mobilidade social do que na França. De acordo com análises da OCDE, a inércia social de uma geração para a outra é muito menor na Dinamarca (12%) e na Suécia (26%) do que na França (53%).

‘É a sensação de não ver reconhecido o mérito que constitui a fonte mais poderosa da desconfiança política’

No entanto, além das questões de mobilidade social, há uma questão moral. É a sensação de não ver reconhecido o mérito que constitui a fonte mais poderosa da desconfiança política, seja qual for a categoria socioprofissional, nível de educação, idade ou renda. A França continua a ser o país onde o sentimento de injustiça social ou mesmo de desprezo tem os efeitos políticos mais devastadores, uma vez que põe em causa não só a política pública, mas a avaliação que é feita sobre elas. Essa ausência de reconhecimento social atinge até mesmo as categorias superiores (um quarto das profissões superiores considera, portanto, que a sociedade as trata com desprezo), tornando os ideais republicanos igualitários bastante ilusórios.

Entramos aqui em um nível do que hoje é chamado de mal-estar democrático, que se baseia em última análise na ideia de uma mentira institucional, até mesmo uma mentira estatal, sobre a realidade da meritocracia. É certo que o assunto está longe de ser novo na educação. Mas hoje a questão vai muito além desse horizonte, onde se disputam critérios de excelência ou desempenho para abranger todo o status social prejudicado pela desvalorização dos diplomas, pela existência de mercados profissionais fortemente corporatizados e hierarquizados de acordo com trajetórias educacionais e recursos sociais (como evidenciam as trajetórias altamente contrastantes dos enarques, formandos pela Escola Nacional de Administração), pela ilegitimidade que afeta o sucesso social quando só é justificado pelo trabalho.

Outra leitura da eleição presidencial de 2022 é, portanto, ver nela uma luta em torno da questão da meritocracia, desenvolvida no terreno liberal pelo macronismo em nome de uma maior abertura na vida profissional, também exigida pela esquerda em busca de um ponto de equilíbrio entre igualdade e equidade, sem dúvida também presente nos direitos radicais que se engolfaram no campo do poder de compra, mas também da invisibilidade social.


*Luc Rouban é diretor de pesquisa do CNRS, na Sciences Po


Este texto é uma republicação do site The Conversation sob uma licença Creative Commons. Leia o artigo original, em francês.


Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

Editor-executivo do portal Interesse Nacional. Jornalista e doutor em Relações Internacionais pelo programa de PhD conjunto do King’s College London (KCL) e do IRI/USP. Mestre pelo KCL e autor dos livros Brazil’s international status and recognition as an emerging power: inconsistencies and complexities (Palgrave Macmillan), Brazil, um país do presente (Alameda Editorial), O Brazil é um país sério? (Pioneira) e O Brasil voltou? (Pioneira)

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