07 maio 2025

A eterna ameaça de invasão de Taiwan

Relatos sobre perspectivas de conflito na região ignoram a sutileza das relações entre o continente e a ilha e a interdependência econômica entre os dois que se contrapõem ao discurso separatista – mas envolvimento ocidental pode acabar criando riscos reais

Ilustração criada com ajuda de inteligência artificial para representar a interdependência entre China e Taiwan apesar da retórica de inimizade e ameaças (Foto: ChatGPT)

Uma vez mais a imprensa ocidental se volta para a recorrente “ameaça da invasão de Taiwan pela China”. Desta feita, o Estadão replicou matéria alarmista da Economist intitulada Exercícios da China são recado a Taiwan. O texto inicia pela alegação de que “o poderio militar da China está crescendo e assediando Taiwan implacavelmente. A política da ilha está se polarizando, mesmo com o seu principal apoiador, os EUA, se tornando menos confiável . Alguns observadores veem ‘luzes de alerta piscando’, mostrando que a China está se preparando para promover a ‘reunificação’ à força”.

Será? O quanto disto é ameaça real e o quanto é retórica?

Eu tive a oportunidade de servir tanto na nossa Embaixada em Pequim quanto no nosso Escritório Comercial em Taipé ao longo da minha carreira. Gostaria de fazer algumas ponderações baseadas nestas minhas vivências que, mesmo envelhecidas, ainda repercutem a(s) realidade(s).

‘Tomo como referência a minha experiência na nossa Embaixada em Pequim, em 1995. (…) pensávamos que a situação poderia derivar para um confronto armado de dimensões incalculáveis. Isto não aconteceu, como sabemos’

Tomo como referência a minha experiência quando servia na nossa Embaixada em Pequim, em 1995; foi quando o então presidente “separatista” de Taiwan, Lee Teng-hui, realizou uma visita “privada” à Iowa State University, sua alma mater americana. Pequim reagiu com grande contundência, e o ELP realizou várias manobras intimidatórias ao largo do Estreito de Taiwan. Os que estávamos servindo na China pensávamos que a situação poderia se derivar para um confronto armado de dimensões incalculáveis, visto o compromisso que os Estados Unidos assumiram de preservar a segurança e a incolumidade da Ilha pelo Taiwan Relations Act, em 1979, quando transferiram o reconhecimento do país de Taipé para Pequim. Isto não aconteceu, como sabemos.

A visita de Nancy Pelosi, presidente da Câmara dos Representantes do Congresso americano a Taiwan, em agosto de 2022 novamente acirrou a beligerância de Pequim, que, como esperado, considerou a visita uma “provocação militar”. Foram deslocados aviões de caça para o Estreito de Taiwan, ameaçando romper o acordo tácito entre os dois lados do estreito de manter uma “segurança insegura” na área.

O mesmo ocorreu agora quando Lai Ching-te, do Partido Democrático Progressista (PDP), de resistência a Pequim, venceu em janeiro do ano passado as eleições presidenciais na ilha, sucedendo a Tsai Ing-wen, do mesmo partido. A história se repetiu. Para intimidar, o Exército de Libertação Popular (ELP) fez manobras militares nos arredores da ilha durante a campanha e o governo chinês aumentou as tarifas sobre uma série de produtos taiwaneses, sinalizando que poderia impor sanções mais amplas caso Lai vencesse o pleito e ameaçasse o status quo vigente. A campanha foi definida por Pequim como uma “escolha entre a guerra e a paz”. Lai venceu, e foi tudo.

Agora, novamente, a matéria da Economist assinala que “a China está corroendo o status quo no Estreito de Taiwan. Suas forças cruzam regularmente a linha mediana, a fronteira informal entre Taiwan e o continente, e entram na zona de identificação de defesa aérea (ZIDA) de Taiwan (…) Drones e balões chineses entram periodicamente no espaço aéreo taiwanês”. Ainda segundo a matéria, “os taiwaneses estão perdendo a confiança nos EUA (de Trump) e não acreditam em ajuda em caso de guerra” (contrariando o Acordo de 1974). Volta e meia a imprensa ocidental ataca este tema.

‘Existe um “código civilizacional” de “morde e assopra” entre os dois lados do estreito que escapa à percepção do Ocidente’

Isto me parece, s.m.j, um raciocínio simplista. Explico-me… existe um “código civilizacional” de “morde e assopra” entre os dois lados do estreito que escapa à percepção do Ocidente. Deng Xiaoping afirmava que Mao Zedong e Chiang Kai-shek deveriam ter resolvido esta questão ainda em vida, porque quanto mais o tempo passa, mais difícil se torna a solução. Ele tinha razão.

Recorramos, então, como sempre à história.

Quando o Kuomintang se refugiou em Taiwan, em 1947, encontrou um universo devastado que os invasores japoneses haviam deixado, e uma economia agrária muito debilitada. Decidiu, então, “reinventar” a Ilha. Seus líderes fizeram uma reforma agrária e concomitantemente decidiram apostar na indústria, sobretudo nas empresas de pequeno e médio porte, frente à constante sensação de instabilidade que a vizinhança do continente representava. Diante desta realidade, seus líderes buscaram explorar as vantagens comparativas que uma indústria nesse formato poderia propor, e as encontraram na fabricação de microchips de computador e nas indústrias eletrônicas de alta tecnologia, o que colocou a Ilha entre os países mais avançados tecnologicamente do mundo. 

‘Taiwan tornou-se numa economia de livre mercado altamente desenvolvida, levando o Fundo Monetário Internacional a incluir a Ilha no grupo das economias avançadas’

Com este sucesso, Taiwan tornou-se numa economia de livre mercado altamente desenvolvida – a 8º maior da Ásia e a 21º maior do mundo em paridade de poder de compra -, levando o Fundo Monetário Internacional a incluir a Ilha no grupo das economias avançadas.

Com o sucesso alcançado com este paradigma, um forte sentimento consolidou-se no seio da população no sentido de renegar, não a “chinesidade ancestral”, mas a diferença dos universos político-econômicos. Com efeito, no início, enquanto o Continente se engalfinhava nas comoções do Grande Salto Adiante e da Revolução Cultural de Mao Zedong, a ilha, sob a batuta do Kuomintang, prosperava. Fruto disto, as gerações mais jovens se sentiam – e se sentem cada vez mais – “taiwanesas” e não “chinesas”. 

Isto economicamente; entretanto, do ponto-de-vista civilizacional, todos se consideram “chineses”. 

‘Um dos pilares para se entender o que é a China, antes mesmo do que é o país “China”, reside no conceito de “chinesidade”’

Com efeito, um dos pilares para se entender o que é a China, antes mesmo do que é o país “China”, reside no conceito de “chinesidade”. O significado de “China” em mandarim é Zhonguo (中華), “terra do Meio/Centro”, e envolve a ancestralidade, as tradições e os anseios compartilhados. 

Disto me dei conta quando servi em Taipé.

Só que o Continente, após a morte de Mao, em 1976, a partir do final da década de 1970 decidiu também se reinventar, sob a batuta de Deng Xiaoping, e através da política de “reforma e abertura” lançada por ele, em 1978, mudou radicalmente seu perfil e inseriu-se com avidez no comércio internacional. 

Fruto disso, como todos sabemos, a República Popular tem hoje o segundo maior PIB, segundo o FMI. É na realidade a maior economia do planeta em termos de paridade de poder de compra, ameaçando (se é que ainda o faz…) a hegemonia dos americanos.

Neste cenário, os crescentes custos de produção e de mão-de-obra em Taiwan decorrentes deste mesmo “sucesso” levaram os empresários taiwaneses, com o objetivo de manter competividade, a transferir cada vez mais suas bases de produção para as Zonas Econômicas Especiais que as reformas estavam impulsionando no Vale do Rio das Pérolas, no sul da China. 

‘Hoje o continente é o principal parceiro comercial da ilha. “Inimigos” e maiores parceiros ao mesmo tempo – paradoxo difícil para a cabeça ocidental entender’

A imbricação econômico-comercial entre os dois chegou a tal ponto que hoje o continente é o principal parceiro comercial da ilha. “Inimigos” e maiores parceiros ao mesmo tempo – paradoxo difícil para a cabeça ocidental entender -, a ponto de em 2010 Taiwan ter assinado um acordo com a República Popular o Acordo-Quadro de Cooperação Econômica (ECFA), que viabilizou o crescimento do comércio intraestreito. 

Desta forma, o continente, que já era o principal parceiro comercial de Taiwan desde 2005 – quando representava 17% de seus fluxos comerciais – passou a responder a partir de 2022 por 25% das exportações da Ilha, e 20% de suas importações. Ou seja, uma interdependência real, que se contrapõe ao discurso separatista.

Em resumo, talvez as tradições positivistas do Ocidente não permitam entender este jogo sutil multimilenar. O perigo está no ditado que reza “de tanto se cutucar o boi com vara curta, corre-se o risco de se levar uma chifrada”. Ou seja, de tanto se imiscuir num tema que, no fundo, não apreende por ser-lhe alheio, este lado do planeta pode deslanchar uma reação de consequências imprevisíveis, como se não bastassem Ucrânia e Gaza.

Fausto Godoy é colunista da Interesse Nacional. Bacharel em direito, doutor em direito internacional público pela Universidade de Paris (I) e diplomata, serviu nas embaixadas do Brasil em Bruxelas, Buenos Aires e Washington. Concentrou sua carreira na Ásia, onde serviu em onze países. Foi embaixador do Brasil no Paquistão e Afeganistão (2004/2007) e Cônsul-Geral em Mumbai (2009/10). É coordenador do “Centro de Estudos das Civilizações da Ásia” da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM) e curador da Ala Asiática do MON.

Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

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