A história do lítio no Brasil e a disputa global por matérias-primas
Brasil teve dificuldade para se posicionar como um ator relevante e desenvolver sua indústria de sais de lítio na década de 1990. A indústria brasileira de lítio avançou, mas seu pioneirismo segue subestimado, inclusive dentro do país
Há cerca de dois anos, escrevi nesta seção sobre como a pandemia expôs as fragilidades das cadeias de abastecimento globais. Um dos exemplos mais marcantes foi a incapacidade de diversos países de produzir itens básicos, como máscaras e álcool em gel, evidenciando a dependência crítica de insumos externos. O que parecia um evento isolado revelou-se parte de uma crise mais ampla e permanente, marcada por instabilidade econômica, tensões geopolíticas e extremos ambientais e climáticos.
Na Europa, essa vulnerabilidade acelerou iniciativas para reduzir a dependência de matérias-primas estratégicas, como as terras raras. O bloco é 100% dependente da China para o fornecimento desses elementos essenciais na produção de veículos elétricos e híbridos, fibra óptica e semicondutores. Além disso, importa 97% do magnésio necessário para as indústrias automotiva e aeroespacial. Outro dado relevante é que quase 80% do lítio utilizado nas baterias dos veículos elétricos provém da China.
Em muitos aspectos, a Europa não lidera em quase nada quando se trata de recursos essenciais para a transição energética. Em resposta, foi criado o Minerals Security Partnership (MSP), um consórcio de 14 países, incluindo Austrália, Canadá, Japão e União Europeia, para garantir que minerais críticos sejam extraídos, processados e reciclados de maneira mais segura. Ainda em 2024, a Europa publicou um regulamento para matérias-primas críticas, com o objetivo de diversificar seu abastecimento, reforçar a reciclagem e incentivar inovação em eficiência de recursos e substituição de insumos estratégicos.
No entanto, em âmbito global, a questão central acerca das cadeias de abastecimento permanece: como os EUA e a Europa podem enfrentar a China, que domina o fornecimento de matérias-primas e avança na expansão comercial e tecnológica? (O recém-lançado DeepSeek é um exemplo desta força.) O relatório de Mario Draghi sobre o futuro da competitividade europeia alerta que, apesar da força econômica do continente, a falta de investimentos em novas tecnologias coloca a região em desvantagem frente aos EUA e à China.
Enquanto a Europa formula planos… a China continua a produzir, e a reeleição de Donald Trump adicionou um novo nível de incerteza a esse “desafio existencial” do continente, tornando ainda mais evidente a disputa comercial global. Logo nas primeiras horas de seu novo mandato, Trump revogou normas de emissão de carbono para veículos e cortou subsídios para energias renováveis, priorizando combustíveis fósseis. Em sua gestão anterior (2017-2021), já havia aplicado uma série de tarifas sobre produtos chineses, além de impor restrições à exportação de semicondutores, enquanto a China retaliou, limitando a exportação de gálio e germânio. Desta vez, o embate não se limitou à China: Canadá e México também foram alvo de tarifas e responderam com medidas de retaliação.
Vale lembrar que México e Canadá são, respectivamente, os dois maiores mercados de exportação dos EUA, com vendas de bens totalizando US$ 680 bilhões em 2023. Os EUA, por sua vez, são o maior destino das exportações canadenses e mexicanas, sustentando juntos mais de 17 milhões de empregos. Essa relação comercial é amparada pelo Acordo Estados Unidos-México-Canadá (USMCA), que substituiu o Nafta e foi negociado e finalizado durante o primeiro mandato do governo Trump.
Apesar do “reality show” político diário de Trump, há um lado positivo para analistas menos atentos: “todas as contradições do mundo e do planeta parecem se mover à superfície” como bem destacou Daniel Afonso, que também escreve nesta seção. Em outras palavras, está tudo à mostra — e quem não tomar uma posição será engolido. O que significa que não há mais espaço para a “fábula da globalização”, o momento é de protecionismo, em que blocos historicamente hegemônicos não buscam apenas sua ascensão, mas, sobretudo, evitar uma derrocada ainda maior.
No que diz respeito às matérias-primas, essas sanções e ações protecionistas não são novidade. Em um artigo que publiquei recentemente sobre a história do lítio no Brasil, mostrei como o País teve dificuldade para se posicionar como um ator relevante e desenvolver sua indústria de sais de lítio na década de 1990. Esse processo ocorreu em um contexto histórico marcado por sensibilidades nucleares, sanções e ameaças diretas, que foram parte das negociações.
Nesse cenário, a indústria brasileira de lítio avançou, mas seu pioneirismo segue subestimado, inclusive dentro do Brasil. O mesmo ocorre com as terras raras, em que o Brasil detém a terceira maior reserva global, mas permanece à margem das grandes disputas comerciais. Enquanto isso, potências como China e EUA transformam a posse desses minerais em estratégia de poder.
A história da indústria do lítio no Brasil deve servir como um alerta para as nossas dificuldades e estratégias… especialmente considerando o nosso potencial.
No caso brasileiro, há expectativa de que, em 2025, seja lançada uma política mineral específica para os minerais da transição energética, como terras raras, lítio e grafite. Como pesquisadora de temas energéticos, percebo que poucos governantes estão à altura do momento para tomar decisões estratégicas. O ministro sul-africano de Recursos Minerais e Energia, Gwede Mantashe, não chegou a tomar uma medida concreta, mas elevou o tom do discurso ao declarar, na primeira semana de fevereiro, que a África do Sul não enviará mais recursos naturais aos Estados Unidos caso o financiamento ao país seja interrompido. “Se não nos dão dinheiro, não lhes damos minerais“, afirmou, em resposta às críticas de Trump sobre a lei de expropriação sul-africana.
Outro exemplo é Claudia Sheinbaum, que conseguiu suspender as tarifas impostas ao México e, nas últimas semanas, lançou uma versão preliminar do Plan México, com mudanças importantes no setor da mineração, a fim de compor uma estratégia nacional de industrialização. O ponto central aqui é que países exportadores precisam compreender que não podem aceitar perpetuamente desigualdades estruturais nas relações comerciais. Nossos recursos, fundamentais para a economia global, precisam ser, antes de tudo, estratégicos para o nosso próprio desenvolvimento.
Por Elaine Santos, pesquisadora do Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP
Este texto é uma reprodução autorizada de conteúdo do Jornal da USP - https://jornal.usp.br/
Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional