03 julho 2025

A ideia do interesse nacional –  O papel da ferramenta diplomática

A ideia de interesse nacional, alicerçada na democracia e na inserção internacional, revela-se essencial para o Brasil definir seu papel no mundo. Políticas que fragilizam esses valores, como o protecionismo econômico e a diplomacia partidarizada, ameaçam o desenvolvimento, a credibilidade e a capacidade do país de avançar em meio a desafios globais

Presidente Juscelino Kubitschek lança a pedra fundamental do Palácio Itamaraty em Brasília, em setembro de 1960 (Fonte: Arquivo Público do DF)

The Idea of National Interest foi o título que o grande historiador americano Charles Beard deu a um livro que publicou em 1934, em plena crise econômica e no início do New Deal, o programa de recuperação impulsionado por Franklin Roosevelt.

 O livro oferecia uma reflexão histórica de longo prazo sobre a construção do projeto nacional americano pela vertente das relações exteriores, tanto assim que o seu subtítulo era An Analytical Study in American Foreign Policy. Ele abre a obra citando um dos Secretários de Estado dos anos 1920, que havia se pronunciado sobre o interesse nacional na política externa nestes termos: 

As políticas externas não são elaboradas sobre a base de abstrações. Elas são o resultado de concepções práticas do interesse nacional que emergem a partir de alguns requerimentos imediatos ou de fundamentos essenciais, em perspectiva histórica. Quando mantidas por bastante tempo, essas concepções expressam as esperanças e os temores, os objetivos de segurança e de engrandecimento, que se tornaram dominantes na consciência nacional, transcendendo, assim, divisões partidárias e fazendo com que se atenuem as oposições que poderiam advir de certos grupos. (Discurso do Secretário de Estado Charles Hughes em 30/11/1923)

É possível que essas ideias tenham inspirado o célebre cientista político Hans Morgenthau – autor do clássico Politics Among Nations, publicado em 1948, o mesmo ano da morte de Charles Beard – a elaborar um outro livro, chamado justamente In Defense of the National Interest (1951), seguido, no ano seguinte, de um artigo sobre o mesmo tema: “What Is the National Interest of the United States?” (The Annals of the American Academy of Political and Social Science, julho de 1952).

O livro de Morgenthau sobre o interesse nacional americano foi republicado em 1982, e talvez tenha animado o famoso jornalista Irving Kristol a dar início, em 1985, à revista The National Interest, apoiada nos mesmos princípios da escola realista, identificada com a expressão política, econômica e militar do poder americano em escala global, mas cujos fundamentos devem sempre ser construídos internamente. 

‘Qual seria o interesse nacional brasileiro, e que tipo de políticas e orientações econômicas melhor serviriam à sua defesa e consolidação? Difícil dizer, já que existem concepções muito diversas do que seja o interesse nacional’

Pode ser também que essa mesma revista e sua ideia central tenham inspirado o embaixador Rubens Barbosa a lançar, em 2008, a revista Interesse Nacional, fundada em concepções similares sobre as bases internas da expressão internacional do Brasil. Qual seria, então, o interesse nacional brasileiro, e que tipo de políticas e orientações econômicas melhor serviriam à sua defesa e consolidação? Difícil dizer, já que existem concepções muito diversas do que seja o interesse nacional, como já dizia o próprio Beard em 1934. 

O editor da revista brasileira se encarregou, aliás, de expressar tal dificuldade em sua nota de apresentação: 

Sendo necessariamente genérica, a noção de interesse nacional não tem uma definição precisa. De um lado, porque, sobre o que seja concreta e especificamente o interesse nacional, haverá sempre visões não coincidentes, apoiadas em valores e/ou interesses diferentes. De outro, porque a definição do interesse nacional requer um juízo informado, mas sempre político e não estritamente técnico, sobre riscos e oportunidades que se apresentam à realização dos valores e interesses de um país em cenários estratégicos de longo prazo. E estes serão, sempre, objeto de incerteza e controvérsia. (revista Interesse Nacional, número inaugural: https://interessenacional.com.br/edicoes/edicao-1/)

Mas o editorial acrescentava logo em seguida: “O interesse nacional é, pois, uma construção política”, o que pode ser uma constatação óbvia, mas que não nos ajuda muito na busca por uma definição mais precisa sobre qual seria o interesse nacional brasileiro. 

Conceda-se, pois, que diferentes grupos políticos, e diferentes agregações de poder, representados pelas forças políticas temporariamente predominantes no sistema de governança, manifestem concepções diversas do chamado interesse nacional, e que eles defendam, portanto, suas orientações particulares, ou partidárias, com base numa legitimidade supostamente construída nas urnas, a cada escrutínio eleitoral. 

Na impossibilidade de se chegar a uma definição consensual de quais seriam as expressões efetivas do interesse nacional, talvez seja o caso de trabalhar com exemplos concretos do que com definições abstratas, como afirmou em 1923 o secretário de Estado Charles Hughes. Quais seriam, no caso brasileiro, as balizas mínimas sobre o que o país pretende ser como nação e como sociedade. É preciso saber o que se quer, para rejeitar o que não serve a tal fim. 

O editorial da revista Interesse Nacional nos fornece, mais uma vez, alguns dos parâmetros que podem ser aplicados ao caso: 

A democracia e a inserção internacional são parte do interesse nacional brasileiro, aquela como valor, esta como objetivo. Se a democracia é um valor que queremos preservar, e se a inserção internacional é hoje, mais do que nunca, uma condição do desenvolvimento, resta perguntar como se inserir no mundo para fortalecer a democracia e promover o desenvolvimento. (nota editorial da Interesse Nacional)

Se concordarmos com essa “plataforma”, democracia e inserção internacional passam a ser as palavras-chaves do interesse nacional brasileiro. Então, qualquer ação nacional que vise a diminuir as bases da democracia representativa, que constitui a forma atual da governança política no Brasil, seria contrária e prejudicial ao interesse nacional brasileiro, como, por exemplo, quaisquer tentativas de golpes continuístas.

Da mesma forma, qualquer política ou medida que obstaculize a integração da economia nacional aos circuitos internacionais da interdependência econômica pode ser considerada como contrária ao interesse nacional, na medida em que diminui nossa capacidade de absorção de know-how e de tecnologias de ponta que são essenciais ao processo de desenvolvimento do país. 

O protecionismo comercial representa, nesse sentido, uma postura irracional do ponto de vista econômico, uma espécie de “stalinismo para os ricos”, ou um projeto de “capitalismo num só país” que talvez ainda encante os arautos da burguesia industrial introvertida e alguns acadêmicos ingênuos.

‘A democracia brasileira e a inserção internacional da nação vêm sendo, por exemplo, afastados de nosso horizonte de realizações históricas’

A democracia brasileira e a inserção internacional da nação vêm sendo, por exemplo, afastados de nosso horizonte de realizações históricas, quando o objetivo estratégico do Mercosul, alimentado pela diplomacia brasileira nos anos 1990, assim como o projeto de incorporação do Brasil à OCDE, inicialmente formulado na mesma época, permanecem em um indefinido compasso de espera, sem qualquer atuação diplomática efetiva em favor desses dois grandes objetivos, talvez não coincidentes, no momento, com concepções partidárias determinadas.

Charles Beard, no capítulo de seu livro dedicado à “interpretation, advancement, and enforcement of national interest”, dizia que “By far the most important means used to advance and enforce national interest is the ‘system’, or institution, of diplomacy” (p. 341). Ele se referia, exatamente, à administração e ao funcionamento das atividades diplomáticas, bem como à “multitude of services performed by diplomatic agents in behalf of the citizens” (p. 347), ou seja, a cobertura que um país é capaz de dar aos seus cidadãos e às empresas nacionais presentes nos mais diversos cantos do mundo.

‘A ferramenta da política externa brasileira tem custado muito pouco à nação e tem prestado grandes serviços ao seu desenvolvimento’

Nesse particular, a ferramenta da política externa brasileira tem custado muito pouco à nação (menos de 1% do orçamento da União na maior parte de sua história) e tem prestado grandes serviços ao seu desenvolvimento. Não obstante, o Itamaraty tem sido muito pouco requisitado a conceber e a empreender iniciativas concebidas para integrar o Brasil ao mundo, segundo um objetivo estratégico de interdependência econômica com as grandes democracias de mercado. 

O embaixador Rubens Barbosa tem alertado, em seus muitos artigos no jornal O Estado de S. Paulo e no próprio portal da revista Interesse Nacional, sobre a marginalização da diplomacia profissional de alguns dos temas mais relevantes da política econômica externa do país, e até de algumas das grandes definições estratégicas relativas ao conflagrado ambiente atual de desmantelamento do multilateralismo político e econômico, sem solução imediata.

Ver a vocação tradicional da diplomacia brasileira para o exercício de uma plena autonomia decisória e imparcialidade diplomática em face de conflitos entre as grandes potências diminuída em função de escolhas pré-determinadas por interesses partidários de restrito alcance nacional, só pode atuar em detrimento da boa qualidade, do regular funcionamento e, sobretudo, da credibilidade e da respeitabilidade internacionais dessa ferramenta. Não parece, assim, ser a forma mais adequada de promover o interesse nacional. 

Paulo Roberto de Almeida é diplomata de carreira, doutor em ciências sociais pela Université Libre de Bruxelles, mestre em Planejamento Econômico pela Universidade de Antuérpia, licenciado em ciências sociais pela Université Libre de Bruxelles, 1975). Atua como professor de economia política no Programa de Pós-Graduação em direito do Centro Universitário de Brasília (Uniceub). É editor adjunto da Revista Brasileira de Política Internacional. Site: www.pralmeida.org; blog: http://diplomatizzando.blogspot.com

Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

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Diplomacia 🞌

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