01 julho 2022

A indústria global de armas está sendo sacudida pela guerra na Ucrânia – e China e EUA parecem ganhar com tropeços da Rússia

Independentemente de como o conflito acabe, as repercussões para a indústria de defesa global e para os países exportadores de armas serão enormes. A Rússia deve ser a grande perdedora, mas, além de EUA e China, países como a Índia, a Turquia e até o Brasil devem acelerar o desenvolvimento das suas próprias indústrias de defesa no processo

Independentemente de como o conflito acabe, as repercussões para a indústria de defesa global e para os países exportadores de armas serão enormes. A Rússia deve ser a grande perdedora, mas, além de EUA e China, países como a Índia, a Turquia e até o Brasil devem acelerar o desenvolvimento das suas próprias indústrias de defesa no processo

Militares ucranianos disparam contra forças russas durante invasão do país (Ministério de Defesa da Ucrânia)

Por Terrence Guay*

A guerra da Rússia na Ucrânia está revirando a indústria global de armas.

À medida que os EUA e seus aliados despejam quantias significativas de dinheiro para armar a Ucrânia, e a Rússia sangra tanques e militares, países de todo o mundo estão repensando os orçamentos de defesa, as necessidades de material e as relações militares. Países que historicamente tiveram baixos níveis de gastos com defesa, como Japão e Alemanha, estão aumentando esses gastos, enquanto nações que compram a maioria de suas armas da Rússia estão questionando sua confiabilidade e entrega futura.

Minha pesquisa nessa área sugere que, independentemente de como essa guerra acabe, as repercussões para a indústria de defesa global e para os países cujas empresas dominam esse setor serão enormes. Aqui estão quatro lições sobre isso.

1. A Rússia será a grande perdedora

O argumento geral de vendas de armas da Rússia tem sido que elas são “mais baratas e fáceis de manter do que as alternativas ocidentais”. É por isso que a Rússia respondeu por 19% das exportações mundiais de armas de 2017 a 2021, perdendo apenas para os EUA, que detinham 39% do mercado.

No entanto, esse argumento pode não ser mais eficaz para muitos países que viram perdas e falhas de equipamentos russos na Ucrânia.

Até o momento, os EUA estimam que a Rússia perdeu quase mil tanques, pelo menos 50 helicópteros, 36 caças-bombardeiros e 350 peças de artilharia, segundo o Business Insider. Milhares de soldados russos foram mortos, com estimativas variando de cerca de 15 mil a 30 mil, e a Rússia ainda não consegue controlar o espaço aéreo da Ucrânia.

‘As armas ofensivas da Rússia se mostraram decepcionantes. Sua taxa de falha de mísseis pode chegar a 50% ou 60% devido a falhas de projeto e equipamentos desatualizados ou inferiores’

A situação tornou-se tão terrível que há relatos de que os comandantes estão tentando preservar o equipamento, proibindo as tropas de usá-lo para evacuar soldados feridos ou apoiar unidades que avançaram demais.

As armas ofensivas da Rússia também se mostraram decepcionantes. Sua taxa de falha de mísseis –a parcela que falhou no lançamento, falhou no meio do voo ou errou o alvo– pode chegar a 50% ou 60% devido a falhas de projeto e equipamentos desatualizados ou inferiores.

Esses problemas, juntamente com o lento progresso dos militares russos em alcançar qualquer um dos objetivos declarados do presidente Vladimir Putin, levantaram sérias dúvidas entre os clientes tradicionais do país para a exportação de armas. A Rússia vende quase 90% de suas armas para apenas 10 países, incluindo Índia, Egito e China.

Além disso, a capacidade da Rússia de substituir essas perdas de equipamentos foi prejudicada por sanções econômicas, que proíbem componentes estrangeiros importantes, como placas de circuito. E a Rússia quase certamente precisará substituir seu próprio equipamento militar antes de exportar qualquer coisa para o exterior.

Isso significa que mesmo os países que desejam continuar comprando tanques e caças russos terão que esperar na fila ou se procurar outro lugar para atender às suas necessidades de defesa.

2. A perda da Rússia é o ganho da China

O país que provavelmente verá os maiores ganhos com o deslocamento da Rússia como grande fornecedor de armas é a China.

Nos últimos anos, o país ficou com 4,6% do comércio global de armas, ficando em quarto lugar, atrás dos 11% da França. Ao mesmo tempo, sete das 20 maiores empresas globais de defesa em termos de receitas obtidas com vendas de defesa são chinesas, sinalizando as grandes ambições do setor.

Atualmente, o governo chinês compra a maioria de suas armas e veículos desses fabricantes nacionais de armas, mas a China tem capacidade para exportar mais produtos militares para o exterior.

‘A China tem capacidade para exportar mais produtos militares para o exterior’

Por exemplo, a China já é o maior construtor de navios do mundo, portanto, exportar mais navios de guerra é um próximo passo natural. O país está expandindo seu papel de nicho na tecnologia de drones e tentando alavancar a modernização de sua força aérea com aeronaves construídas internamente para aumentar as exportações.

No momento, apenas três dos 40 maiores importadores de armas do mundo –Paquistão, Bangladesh e Mianmar– compram a maioria de suas armas da China. Isso pode mudar, se a China aproveitar a fraqueza russa para se posicionar como um parceiro confiável de segurança nacional, econômico e político –uma característica central de sua Iniciativa do Cinturão e Rota.

A China não é capaz de suplantar as armas americanas e europeias, que são consideradas as melhores por causa de sua alta qualidade e preço. Mas a China pode muito bem preencher o nicho de mercado que os fabricantes de armas russos dominavam, aumentando assim o papel de Pequim como um grande exportador de armas –e ganhando os benefícios políticos e econômicos que acompanham isso.

Um dos maiores desafios da China envolverá provar que suas armas funcionam bem em situações de combate real.

a javelin missile is fired from a rocket launcher held on the shoulder of a ukrainian soldier standing in a field in donetsk as another solider looks on
Os EUA mandaram à Ucrânia mais de um terço dos seus mísseis Javelin (Ukrainian Defense Ministry Press Service)

3. Os fabricantes de armas americanos também serão grandes vencedores

Os fabricantes de armas dos EUA dominam a indústria global de armas. A guerra na Ucrânia provavelmente garantirá que isso permaneça assim por algum tempo.

As cinco maiores empresas de armas do mundo são todas americanas: Lockheed Martin, Raytheon, Boeing, Northrop Grumman e General Dynamics. Na verdade, metade dos 100 maiores produtores de armas estão sediados nos EUA. Vinte são europeus. Apenas dois são russos – apesar de o país ser a segunda maior fonte de armas do mundo.

As enormes quantidades de armas sendo transferidas dos EUA para a Ucrânia manterão os fabricantes de armas americanos ocupados por algum tempo. Por exemplo, os EUA transferiram cerca de um terço de seu estoque de mísseis antitanque Javelin para a Ucrânia, e levará de três a quatro anos para que a joint venture Raytheon-Lockheed Martin os substitua. O pacote de ajuda de US$ 40 bilhões recentemente assinado pelo presidente Joe Biden inclui US$ 8,7 bilhões para restabelecer os estoques de armas dos EUA.

Os preços crescentes das ações das empresas são um sinal de que os investidores acreditam que dias lucrativos estão por vir. O preço das ações da Lockheed Martin subiu mais de 12% desde o início da invasão –com a maioria dos ganhos ocorrendo logo após este início. A Northrop Grumman saltou 20%. Ao mesmo tempo, o mercado de ações mais amplo, medido pelo S&P 500, caiu cerca de 4%.

4. Mais países se tornarão fabricantes de armas

O outro lado disso é que alguns países que dependiam de outros para suas necessidades de defesa podem procurar se tornar mais autossuficientes.

A Índia, que dependia da Rússia para quase metade de suas importações de armas nos últimos anos, está percebendo que a Rússia precisará da maior parte ou de toda a sua capacidade de produção para substituir tanques, mísseis, aeronaves e outras armas usadas ou perdidas na Ucrânia, com menos sobras para exportar.

Isso significa que a Índia precisará obter peças de reposição para veículos e armas de outros ex-clientes de armas da Rússia, como Bulgária, Geórgia e Polônia, ou construir sua própria indústria de defesa. Em abril, a Índia anunciou que aumentaria a produção de helicópteros, motores de tanque, mísseis e sistemas de alerta aéreo antecipado para compensar qualquer redução potencial nas exportações russas.

As preocupações com a confiabilidade russa também estão crescendo. Em maio, a Índia cancelou um acordo de compra de helicópteros de US$ 520 milhões com a Rússia. Embora haja relatos de que a pressão dos EUA desempenhou um papel, também parece fazer parte da estratégia do governo nos últimos anos para construir sua própria base industrial de defesa doméstica.

‘O Brasil, a Turquia e outros países de mercados emergentes também vêm desenvolvendo suas próprias indústrias de defesa nas últimas duas décadas para reduzir sua dependência das importações de armas’

O Brasil, a Turquia e outros países de mercados emergentes também vêm desenvolvendo suas próprias indústrias de defesa nas últimas duas décadas para reduzir sua dependência das importações de armas. A guerra na Ucrânia acelerará esse processo.

Putin provavelmente não esperava abalar o mercado global de armas com seu esforço para anexar a Ucrânia –ou causar o declínio do setor de armas de seu país. Mas essa é apenas mais uma maneira pela qual sua guerra está causando um terremoto geopolítico.


*Terrence Guay é professor de negócios internacionais e diretor do Center for Global Business Studies, Penn State


Este texto é uma republicação do site The Conversation sob uma licença Creative Commons. Leia o artigo original, em inglês.


Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

Editor-executivo do portal Interesse Nacional. Jornalista e doutor em Relações Internacionais pelo programa de PhD conjunto do King’s College London (KCL) e do IRI/USP. Mestre pelo KCL e autor dos livros Brazil’s international status and recognition as an emerging power: inconsistencies and complexities (Palgrave Macmillan), Brazil, um país do presente (Alameda Editorial), O Brazil é um país sério? (Pioneira) e O Brasil voltou? (Pioneira)

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