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Interesse Nacional
29 junho 2022

A inteligência artificial nos países do G20

O avanço da IA é um recurso estratégico com impactos econômicos, políticos, sociais e culturais, o que gera uma corrida internacional pelo domínio da tecnologia. Em artigo, Fernando Filgueiras explica que governos que adotam estratégias nacionais e instrumentos de políticas de IA alcançam melhores resultados na transição tecnológica; e o Brasil, infelizmente, tem uma estratégia de inteligência artificial mal desenhada e corre o risco de ficar para trás no desenvolvimento global

O avanço da IA é um recurso estratégico com impactos econômicos, políticos, sociais e culturais, o que gera uma corrida internacional pelo domínio da tecnologia. Em artigo, Fernando Filgueiras explica que governos que adotam estratégias nacionais e instrumentos de políticas de IA alcançam melhores resultados na transição tecnológica; e o Brasil, infelizmente, tem uma estratégia de inteligência artificial mal desenhada e corre o risco de ficar para trás no desenvolvimento global

Evento discute o uso de IA em segurança digital (Foto: École polytechnique – J.Barande)

Por Fernando Filgueiras*

Inteligência artificial (IA) não é propriamente uma coisa. E por isso não há na literatura especializada sobre o tema uma definição precisa do que vem a ser inteligência artificial. Basicamente, inteligência artificial é compreendida como um campo científico interdisciplinar, que envolve contribuições da ciência da computação, engenharias, psicologia, sociologia, economia, medicina, biologia, física, entre outros campos do conhecimento. Inteligência artificial é um conjunto de tecnologias digitais que emulam a inteligência humana para tomar uma decisão ou realizar uma tarefa de maneira mais eficiente e otimizada do que humanos podem fazer.

De pronto, temos um problema. Como, afinal, definir inteligência? E como definir artefatos que possam usar alguma inteligência? Quando se afirma que estas tecnologias emulam a inteligência humana, imediatamente o conceito de inteligência se torna difícil de operar e vai encontrar uma gama diferente de definições. Inteligência pode conter a ideia de uma racionalidade para a tomada de decisão, que busca a explicação das coisas pela motivação da ação humana. Inteligência também pode conter a ideia de aprendizado, afinal humanos aprendem com as suas ações e buscam padrões para o seu comportamento em sociedade. Inteligência também pode ser capacidade. Em muitas situações humanos constroem abstrações que proporcionam o entendimento do mundo. Enfim, existem diferentes maneiras de conceituar inteligência e não há consenso sobre o que ela significa.

https://interessenacional.com.br/edicoes-posts/fernando-filgueiras-estrategia-brasileira-para-inteligencia-artificial-e-ambigua-mal-formulada-e-sem-clareza-de-proposito/

Agora imaginemos que máquinas possam construir e utilizar inteligência. O artificial contido nesses sistemas de inteligência significa que eles são desenhados por humanos para atingir um propósito. Essa é a lição básica defendida por Herbert Simon, laureado com o prêmio Nobel e um dos pais fundadores do campo científico da inteligência artificial.

Imagine uma empresa que quer otimizar suas vendas. O primeiro insumo para esse propósito é conhecer as preferências dos consumidores no mercado. Antes isso demandava pesquisas de mercado caras e com uma restrição temporal específica. Uma inteligência que possa conhecer a partir dos dados o que os consumidores preferem em tempo real é um artefato poderoso para as empresas. Máquinas podem “raspar” dados em redes sociais e conhecer uma gama ampla de preferências de consumo que são expressas em pequenos textos, imagens ou números contidos em transações comerciais. Sistemas de aprendizado de máquina podem aprender a ler esses textos a partir de bases de treinamento que dão a elas o poder de classificar os consumidores a partir do propósito da empresa, fazendo com que ela possa conhecer seus consumidores e tomar a melhor decisão estratégica. Ou essa empresa pode ir mais longe e constituir sistemas que não apenas aprendam quais são as preferências dos consumidores, mas que digam o que eles devem consumir, utilizando perfis que são construídos em redes neurais artificiais que alimentem o marketing.

Podemos ir um pouquinho mais longe. Imaginemos governos que queiram otimizar ações de segurança. Por exemplo, governos monitoram potenciais ameaças à segurança cibernética, evitando vazamento de dados ou ações indevidas no ciberespaço. É inimaginável que essas ações de monitoramento sejam realizadas por humanos, considerando que existem bilhões de pessoas incluídas na internet e que as conexões são globais, ou seja, muitas ações ocorrem fora do espaço nacional. Redes neurais artificiais podem reconhecer e identificar essas ameaças de forma muito mais otimizada e veloz, indicando ações governamentais para proteger o ciberespaço. O mesmo pode ser dito em várias ações de segurança pública, como a utilização de policiamento preditivo, que antecipa ameaças e mobiliza a atuação policial a partir de grandes bases de dados.

‘O avanço da inteligência artificial é um recurso bastante estratégico para os países, tendo impactos econômicos, políticos, sociais e culturais os mais diversos’

Em todas essas situações, uma inteligência artificial pode otimizar diversas atividades de corporações ou governos para tomar decisão ou realizar uma tarefa, as quais requerem algum conhecimento do mundo e que pode ser computável na forma de dados. Ou seja, o avanço da inteligência artificial é um recurso bastante estratégico para os países, tendo impactos econômicos, políticos, sociais e culturais os mais diversos. A IA está revolucionando mercados e governos de formas sem precedente. A inteligência artificial tem potencial para otimizar a produtividade econômica de um país, com aplicações diversas na indústria, em mercados e no comércio local e exterior. A inteligência artificial otimiza diversos campos das políticas públicas desenhadas por um governo, como, por exemplo, nas áreas sociais, de segurança pública, aplicações em saúde ou em regulação.

Assim, muitos analistas apontam que existe uma corrida internacional pelo domínio da tecnologia de IA, uma vez que elas representam um recurso estratégico importante para economias e mercados. Mas essa mesma tecnologia não é ilesa a problemas. Tecnologias não são ferramentas neutras e podem impactar negativamente a sociedade. Inteligências artificiais são artefatos e pelo menos até o momento não têm capacidade de julgamento. Muitas inteligências artificiais, por exemplo, produzem formas de discriminação algorítmica a partir de bases de dados racializadas, o que impacta negativamente a vida de pessoas pretas. Inteligências artificiais também criam zonas de exclusão, ou technological redlines, onde o serviço público não chega de forma adequada. Talvez uma inteligência artificial não seja tão inteligente assim.

‘Tecnologias não são ferramentas neutras e podem impactar negativamente a sociedade. Inteligências artificiais são artefatos e pelo menos até o momento não têm capacidade de julgamento’

Por esta razão, diversas organizações internacionais estão incentivando que os países desenhem políticas para a inteligência artificial, com o objetivo de incentivar o uso dessa tecnologia dentro de parâmetros institucionais que assegurem a acurácia e o cumprimento de princípios que a torne mais transparente, responsável, orientada por critérios de justiça e que evitem os impactos negativos sobre direitos humanos.

A corrida pela IA e os países do G20

O grupo G20 foi formado em 1999, inicialmente reunindo ministros das finanças para estabelecer políticas de cooperação para o desenvolvimento econômico. Em 2008, o grupo G20 agregou os chefes de governo desses países. Desde então, as reformas das novas regras de supervisão bancária global ocorreram na agenda do G20, assim como as reformas de governança coordenadas com o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial e uma expansão real da cooperação entre eles no desenvolvimento de vários tópicos relacionados a políticas públicas. O G20 hoje é composto por Argentina, Austrália, Brasil, Canadá, China, França, Alemanha, Índia, Itália, Japão, Holanda, México, Coreia do Sul, Rússia, Arábia Saudita, África do Sul, Espanha, Turquia, Reino Unido, e os Estados Unidos, reunindo as 20 maiores economias do mundo. 

Especificamente no G20, vários grupos de trabalho buscam fortalecer a cooperação para o desenvolvimento a fim de moldar políticas comuns em diferentes temas. Em 2019, no seio da estrutura do G20, foi criado o S20, um grupo multidisciplinar dedicado a estruturas de cooperação para a ciência e tecnologia. O S20 reúne as academias de ciências dos países que compõem o G20. 

Como resultado da reunião do G20 em 2020, foi publicado o relatório Foresight: Science for Navigating Critical Transitions – Task Force 3 – The Digital Revolution. O relatório contém várias recomendações para o desenvolvimento da ciência e para a transição tecnológica dos países membros. Dentre essas recomendações, o relatório especifica políticas para o desenvolvimento de inteligência artificial, com foco especial na perspectiva da Ciência Aberta e no desenvolvimento de mecanismos de governança que reduzam os riscos geopolíticos para o uso de IA. Essa posição do G20 decorre de uma concepção da abertura da tecnologia como um recurso para reduzir monopólios e possibilitar a redução das assimetrias. Basicamente, as políticas de IA devem incentivar o desenvolvimento tecnológico com instrumentos financeiros, criar mecanismos regulatórios adequados, modos de governança e estruturas colaborativas.

‘As políticas de IA devem incentivar o desenvolvimento tecnológico com instrumentos financeiros, criar mecanismos regulatórios adequados, modos de governança e estruturas colaborativas’

Assim, diversos países compõem estratégias nacionais, as quais definem as linhas gerais do desenho das políticas de inteligência artificial. Primeiro, estas estratégias nacionais reconhecem a necessidade de princípios que orientem a ação de governos junto aos desenvolvedores da tecnologia. Estes princípios foram organizados em organizações internacionais como a OCDE e as Nações Unidas. Do ponto de vista das Nações Unidas, o desenvolvimento da inteligência artificial deve respeitar a uma ordem de interdependência digital. A OCDE é mais específica, delimitando que governos desenham políticas que alcancem uma cadeia de valor orientada por: (1) crescimento inclusivo, desenvolvimento sustentável e bem-estar; (2) valores humanos e equidade; (3) transparência e explicabilidade de sistemas; (4) robustez e segurança; (5) accountability.

Princípios são essenciais para a definição de parâmetros institucionais para o desenvolvimento e uso da inteligência artificial e reflui diretamente no desafio regulatório. Os princípios são orientativos e procuram definir padrões de comportamento de desenvolvedores e para o uso de inteligências artificiais. As estratégias nacionais procuram definir portfólios de instrumentos de políticas que serão desempenhados pelos governos para alcançar o domínio da tecnologia de IA.

O primeiro portfólio de instrumentos é o de financiamento. Governos ao redor do mundo definem os instrumentos financeiros que empregarão para incentivar desenvolvedores e a adoção de soluções de IA junto à indústria e mercados. Dentre estes instrumentos estão o financiamento à pesquisa de IA junto a universidades, a criação de centros de excelência em pesquisa, fundos para desenvolvimento em empresas, uso das compras públicas governamentais para incentivar desenvolvedores.

O segundo portfólio é o de estruturas colaborativas, demandando que governos criem plataformas de colaboração, aproximando universidades, desenvolvedores e indústria e mercado, suporte dedicado a estruturas de pesquisa, serviços de informação e acesso a dados.

O terceiro portfólio é o de governança, fazendo com que governos utilizem consultas públicas para envolver a sociedade, criem padrões e certificações, ações coordenadas de inteligência de políticas, conscientização pública e supervisão regulatória.

Por fim, o quarto portfólio de políticas de IA decorre dos instrumentos regulatórios que serão utilizados para alcançar o objetivo de política. Isso compreende o assessoramento empresarial para a mudança tecnológica, regulação de tecnologias emergentes, ações para treinamento de mão de obra e incentivos para a mobilidade do trabalho, criação de prêmios para ciência e inovação.

Estes diferentes portfólios devem ser desenhados de forma que a política seja coerente e consistente e que estes instrumentos sejam desempenhados pelos governos para alcançar os objetivos. Comparando os diferentes países do G20, observa-se quanto mais estes instrumentos são utilizados dentro das estratégias nacionais, melhores os resultados alcançados com relação ao processo de transição tecnológica e domínio da tecnologia de IA.

A diversidade do uso de instrumentos em diferentes portfólios é fundamental para a qualidade do desenho de políticas de IA e sua efetividade. A corrida pela IA passa pela liderança de Estados Unidos, China, Coréia do Sul, Alemanha, Japão e França, que constroem políticas bem desenhadas, que buscam de forma coerente e consistente empregar instrumentos diversos que incentivem o desenvolvimento tecnológico de IA. Já países em desenvolvimento carecem de capacidades e, em geral, aplicam menos combinações de portfolios, criando dificuldades na corrida pela IA.

O Brasil dentro do G20

O Brasil é o curioso caso de uma estratégia de inteligência artificial mal desenhada, embora disponha dos instrumentos necessários para alcançar os objetivos de domínio tecnológico e desenvolvimento. A estratégia brasileira de inteligência artificial (EBIA) não é composta de uma orientação clara à indústria e mercados, mas é compreendida como um benchmark de iniciativas para estado e municípios dirigida pelo Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovação. Ela não dispõe e nem diz como os objetivos serão alcançados, definindo ações estratégicas de curto, médio e longo prazo, sendo mais um corolário de princípios sem fundamentos.

‘O Brasil é o curioso caso de uma estratégia de inteligência artificial mal desenhada’

Embora o Brasil seja um caso de não desenho de uma estratégia nacional de IA, o país dispõe de diferentes portfólios financeiros, de governança, de regulação e estruturas colaborativas, os quais são descoordenados, fragmentados e não disponibilizados de maneira consistente e coerente com qualquer objetivo posto.

Dentre os instrumentos financeiros, temos iniciativas importantes como as da FINEP para criar linhas de financiamento para empresas desenvolverem IA. Outra iniciativa importante é a constituição de centros de excelência com financiamento do MCTI, constituindo experiências importantes como o Centro de Inovação em IA para a Saúde, coordenado pela UFMG, o centro de excelência da USP, em parceria com a IBM, o BIOS – Brazilian Institute for Data Science, da  UNICAMP, o Centro de Excelência em IA da UFG, o Centro de Excelência em Pesquisa Aplicada em Inteligência Artificial para a Indústria, coordenado pelo SENAI, dentre outros.

O Brasil também dispõe de instrumentos de infraestrutura para pesquisa, criação de redes de desenvolvedores, serviços de informação e acesso a dados, como data lakes de dados públicos. Porém pouco se avança na criação de estruturas colaborativas que aproximem desenvolvedores e indústria, que demonstre para a indústria as inovações produzidas de forma coordenada e coerente com os objetivos da política.

O Brasil está discutindo agora a criação de uma Lei de Inteligência Artificial, recebendo diversas contribuições da comissão de juristas instalada pelo Senado Federal, após pouca discussão no âmbito da Câmara dos Deputados. A regulação emergente aponta para uma regulação baseada em princípios que orientem a aplicação de responsabilidade objetiva à indústria no desenvolvimento de IA. Instituições do sistema S patrocinam ações para a transição do trabalho e capacitação de mão de obra.

‘Comparado aos países do G20, falta ao governo brasileiro definir claramente os objetivos de sua política’

Comparado aos países do G20, falta ao governo brasileiro definir claramente os objetivos de sua política. O governo sabe que quer chegar, mas não sabe quais são os objetivos de curto, médio e longo prazo, como construir uma política coerente com esses objetivos e como perseguir consistentemente o desenvolvimento da inteligência artificial.

O risco de ficar para trás é bem alto, com impactos econômicos diretos, prejudicando a produtividade da indústria, não possibilitando criar novos mercados e o risco de dependência tecnológica que embarreira o desenvolvimento brasileiro. Embora o país participe dos fóruns do G20, falta uma posição governamental clara, que sinalize o desenvolvimento de pesquisa e sua aplicação na indústria para a realização de propósitos públicos de desenvolvimento e bem-estar nacional.


*Fernando Filgueiras é professor associado da Faculdade de Ciências Sociais da Universidade Federal de Goiás (UFG). Professor afiliado do Ostrom Workshop on Political Theory and Policy Analysis, Indiana University. Professor do Programa de Pós-Graduação Profissional em Políticas Públicas da Escola Nacional de Administração Pública (ENAP).

Editor-executivo do portal Interesse Nacional. Jornalista e doutor em Relações Internacionais pelo programa de PhD conjunto do King’s College London (KCL) e do IRI/USP. Mestre pelo KCL e autor dos livros Brazil’s international status and recognition as an emerging power: inconsistencies and complexities (Palgrave Macmillan), Brazil, um país do presente (Alameda Editorial), O Brazil é um país sério? (Pioneira) e O Brasil voltou? (Pioneira)

Artigos e comentários de autores convidados não refletem, necessariamente, a opinião da revista Interesse Nacional

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