A metamorfose – coup d’État ou revolução?
Transformações abruptas na situação política de Estados levam a uma batalha semântica sobre as ideias de golpe ou revolução. No caso do Brasil contemporâneo, o ato de absolver os algozes da ordem democrática converte-se em um lento processo de transformação em que a perda de forma e de propósito se disfarça sob a aparência da normalidade que aprisiona a sociedade num pesadelo

“Quando Gregor Samsa acordou certa manhã de sonhos intranquilos, encontrou-se em sua cama metamorfoseado num inseto monstruoso”
Franz Kafka (1)
Parafraseando Kafka, poder-se-ia facilmente inferir que quando o Estado, tal qual Gregor no emblemático romance A Metamorfose, perde sua utilidade, ele abandona também sua dignidade e seu lugar no mundo.
Transformações políticas podem ser classificadas segundo vários parâmetros: alguns com vocação normativa, qualificando-as de boas ou ruins; outros com tendência mais objetiva, atendo-se à velocidade dos acontecimentos e discriminando-as como céleres ou morosas.
Ao combinar estas distintas métricas surge uma diversidade de matrizes interpretativas que disputam o estabelecimento de narrativas para explicar a natureza da mudança do Estado.
Uma batalha semântica se instala, então, buscando a apropriação de conceitos que tornarão o fenômeno de mutação coerente com os objetivos daqueles que o propõem.
‘Quem semeia a metamorfose a classifica pomposamente de Revolução; e quem a ela se opõe reputa-a faustosamente como um golpe de Estado’
Dois destes conceitos são recorrentes e se confrontam ao longo da história. Quem semeia a metamorfose a classifica pomposamente de Revolução; e quem a ela se opõe reputa-a faustosamente como um golpe de Estado.
O fato é que os arranjos políticos democráticos procuram, no mais das vezes, a preservação da dignidade de seu povo e um lugar ao sol nas disputas globais. Em função de suas resiliências e capacidade de adaptação, a transformação pode – ou não – ocorrer.
O Cline Center for Advanced Social Research, da Universidade de Illinois, apoia cientistas a transformar grandes volumes de dados em conhecimento útil.
Localizada em um dos principais polos mundiais de ciência da computação, que abriga o National Center for Supercomputing Applications, a equipe do Cline Center organiza vastos acervos de informações para ajudar pesquisadores a enfrentar problemas globais urgentes.
E é dessa fonte que iremos extrair uma base de dados com 1.094 registros de metamorfoses institucionais abruptas, tal qual o pesadelo de Gregor. O primeiro passo é compreender a tipologia do fenômeno.
Tabela 1 – Frequência dos tipos de eventos
Tipo | n | % |
Tentativa | 374 | 34,19 |
Conspiração | 262 | 23,95 |
Golpe | 458 | 41,86 |
Total | 1.094 | 100,0 |
Fonte: Cline Center
Neste artigo, adota-se o conceito de golpe usado pelo Cline Center: “esforços organizados para promover a remoção súbita e irregular (por exemplo, ilegal ou extralegal) da autoridade executiva incumbente de um governo nacional, ou para deslocar a autoridade dos mais altos níveis de um ou mais poderes do Estado”.
‘Do total de registros, 34,19% se referem a tentativas fracassadas de metamorfosear o Estado com o uso da força bruta’
Do total de registros, 34,19% se referem a tentativas fracassadas de metamorfosear o Estado com o uso da força bruta. As conspirações, eventos em que o plot foi desmantelado durante o processo de elaboração, correspondem a 23,95%. Por fim, a categoria mais prevalente é o golpe propriamente dito, com 41,86%.
A Figura 1 ilustra a variação da quantidade de golpes de estado bem sucedidos pelo mundo entre 1945 e 2024.
Figura 1

Considerando os 458 golpes que foram codificados como bem sucedidos, observa-se uma tendência de queda em função do tempo (basta ver a inclinação da reta de regressão).
Isso significa que a chance de sucesso de uma mudança súbita e irregular de governo vem diminuindo ao longo dos anos, o que pode ser um sinal de fortalecimento de instituições democráticas e de mecanismos de controle político.
A base de dados conta ainda com registros de eventos que foram tentados e fracassaram, além dos casos em que houve conspiração, conforme estampam as Figura 2 e Figura 3, respectivamente.
Figura 2

Assim como a tendência dos golpes bem sucedidos, as tentativas de golpe também estão se tornando menos frequentes ao longo dos anos.
Apesar de um repique a partir de 2020, o nível da série nos últimos 25 anos é nitidamente inferior ao que foi praticado no pós-Segunda Guerra Mundial. Por fim, é possível examinar a variação da quantidade de conspirações de golpes de estado entre 1945 e 2024.
Figura 3

O Cline Center define conspiração como “um plano de golpe descoberto e interrompido ainda na fase de planejamento”. Como pode ser observado, a tendência também é de queda apesar do grande repique nos últimos anos da série. Em números absolutos: foram 7 conspirações em 2022, 8 em 2023 e outras 7 em 2024.
Depois de examinar a distribuição dos eventos por tipo e ao longo do tempo, o próximo passo é avaliar que atores políticos atuam para metamorfosear o Estado de acordo com seus interesses. A Figura 4 ilustra a proporção de golpes bem sucedidos por ator.
Figura 4

Comparativamente, os militares são o grupo político mais frequentemente associado a golpes de Estado bem sucedidos.
Dos 458 eventos da base, os militares aparecem 274 vezes, o que representa 60% do total.
Em segundo lugar, com 21%, aparece o golpe palaciano, ou seja, eventos iniciados por membros de uma facção dentro do próprio governo (isto é, ministros, membros do gabinete ou outras pessoas de alta patente no Poder Executivo).
A título de exemplo, a base de dados do Cline Center registra como golpe de Estado bem sucedido realizado por militares dois eventos ocorridos em Burkina Faso em 2022. Em 24 de janeiro, militares depuseram o presidente Roch Marc Christian Kaboré. O golpe foi liderado pelo tenente-coronel Paul-Henri Sandaogo Damiba, que justificou a tomada de poder pela incapacidade do governo em conter a violência de grupos jihadista. Em seguida, em 30 de setembro, o próprio Damiba foi derrubado em um segundo golpe, liderado pelo capitão Ibrahim Traoré. Os novos golpistas alegaram que Damiba também não conseguira melhorar a segurança do país diante dos ataques de insurgentes.
No que concerne às tentativas de golpe, a distribuição dos atores se apresenta como indicado na Figura 5.
Figura 5

Assim, nota-se que, como nos golpes bem sucedidos, os militares também aparecem, nesta categoria, como o grupo mais recorrente.
Dos 374 registros, 64% estão associados à caserna. Em segundo lugar aparecem grupos dissidentes, ou seja, eventos causados por um pequeno grupo de descontentes, incluindo ex-líderes militares, religiosos, ex-governantes, membros de parlamento e civis (2).
Em 2023, por exemplo, a base de dados do Cline Center conta com quatro registros de tentativas de golpes. A Tabela 2 reproduz parte dessas informações.
Tabela 2
País | Dia | Mês | Militar | Dissidentes |
Brasil | 8 | 1 | 0 | 1 |
Guiné-Bissau | 30 | 11 | 1 | 0 |
Rússia | 23 | 6 | 0 | 0 |
Serra Leoa | 26 | 11 | 1 | 1 |
Fonte: Cline Center
O Cline Center codifica o evento brasileiro como sendo uma tentativa de Coup d’Etat perpetrado por dissidentes, que inclui um pequeno grupo de descontentes, incluindo ex-líderes militares, líderes religiosos, ex-chefes de governo, membros do parlamento e civis.
Em 30 de novembro de 2023, a Guiné-Bissau viveu um episódio classificado de tentativa de golpe de Estado que se estendeu até a madrugada de 1º de dezembro e terminou com a prisão do comandante da Guarda Nacional, coronel Victor Tchongo.
Em 23 de de junho o grupo O Grupo Wagner, uma força paramilitar russa anteriormente estreitamente ligada ao governo de Vladimir Putin, insurgiu-se contra o próprio exército russo. A rebelião ocorreu após um período de tensões crescentes entre Yevgeny Prigojin, líder do Wagner, e o Ministério da Defesa da Rússia.
Por fim, em 26 de novembro de 2023, militantes atacaram alvos estratégicos em Freetown, capital da Serra Leoa. O governo impôs toque de recolher e caçou os insurgentes. Segundo o presidente Julius Maada Bio, as forças de segurança contiveram a ação, classificada por autoridades, observadores internacionais e pelo Cline Center como tentativa de golpe de Estado.
‘Tanto a modalidade bem sucedida quanto a frustrada vem caindo ao longo dos anos. Ou seja, essa é uma opção cada vez menos frequente no cardápio dos príncipes’
O que podemos então aprender sobre as metamorfoses institucionais do Estado a partir da análise de 1.094 registros de mudanças abruptas e irregulares? Bem, o primeiro achado é que tanto a modalidade bem sucedida quanto a frustrada vem caindo ao longo dos anos. Ou seja, essa é uma opção cada vez menos frequente no cardápio dos príncipes.
O segundo, é que os militares são, de longe, o principal ator envolvido em episódios dessa natureza. Essa evidência, a propósito, levanta o debate sobre a capacidade do controle civil sobre as instituições castrenses: cedant arma togae? Aparentemente não. Pelo menos de forma mais perene.
Apesar da frequência de Coups d’État estar em desaceleração, a formulação de Cícero de “que as armas cedam à toga” se mostra claramente fragilizada e ameaçada pelo vigor do sabre. O general romano Catilina ainda continua, decerto, assombrando as democracias e inspirando golpes, malgrado os esforços dos defensores do poder político ancorado na representatividade cidadã.
‘Ao fim e ao cabo, a definição de Coup d’État ou de revolução é dada pelos vencedores’
Ao fim e ao cabo, a definição de Coup d’État ou de revolução é dada pelos vencedores. E geralmente eles são militares. O 18 Brumário foi o epílogo da Revolução Francesa ou terá sido ele um golpe? Ou, ainda, um ato revolucionário contra a ineficácia do Consulado?
Aqui no Brasil há segmentos da sociedade que alcunham o 31 de março de 1964 como de revolução Redentora, enquanto outros estratos o concebem como um Coup d’État .
Em 18 de setembro de 2024 a Câmara dos Deputados aprovou a urgência para votar um projeto que prevê a anistia aos condenados por atos antidemocráticos e tentativa de golpe de Estado em 8 de janeiro de 2023. O professor Carlos Fico, do Departamento de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro, organizou uma tabela síntese com os golpes, as tentativas de golpe e os resultados políticos das punições. Usamos o software R, com o pacote gt, para reproduzir esse conteúdo integralmente na Tabela 3.
Tabela 3

Até o presente momento, todas as versões fracassadas de tentativas de golpe de Estado no Brasil foram acompanhadas por projetos de anistia que afastaram efetivas punições aos envolvidos.
Do ponto de vista estatístico, diríamos que a correlação entre os eventos é perfeita, de valor 1: toda vez que um evento ocorre, podemos saber exatamente o valor do outro.
Institucionalmente, por outro lado, anistiar quem tenta destruir a democracia pode ser interpretado como uma metamorfose kafkiana do próprio Estado: tal como Gregor Samsa, que desperta irreconhecível e, pouco a pouco, se habitua à sua condição, o corpo político naturaliza o extraordinário e se adapta ao inaceitável.
O ato de absolver os algozes da ordem democrática converte-se, assim, em um lento processo de transformação, em que a perda de forma e de propósito se disfarça sob a aparência da normalidade que aprisiona a sociedade num pesadelo monstruoso.
Notas
(1) KAFKA, Franz, A Metamorfose, p. 06, disponível em: https://colegiocngparanagua.com.br/wp-content/uploads/2021/02/A-METAMORFOSE.pdf (Acesso em 12/09/2025).
(2) Esta categoria não inclui forças de segurança ou policiais, pois estes são braços organizados do governo.
Anexo
(Fonte: Cline Center)
Tipo de Golpe | Definição em Português |
Golpe Militar (Military Coup) | Golpes iniciados por atores militares que não fazem parte formal do aparato governamental (por exemplo, uma junta militar). Não inclui forças de segurança, polícia ou oficiais aposentados/ex-militares, pois esses grupos ou indivíduos não pertencem às Forças Armadas ou não estão mais em serviço ativo. |
Golpe Dissidente (Dissident Coup) | Golpes iniciados por um pequeno grupo de descontentes, incluindo ex-líderes militares, líderes religiosos, ex-chefes de governo, membros do legislativo/parlamento e civis. Não inclui forças de segurança ou polícia, pois são braços organizados do governo. |
Golpe Rebelde (Rebel Coup) | Golpes iniciados por grupos militarizados organizados que romperam com o governo existente e contestam ativamente as forças governamentais. |
Golpe de Palácio (Palace Coup) | Golpes iniciados por membros de uma facção dentro do próprio governo (por exemplo, ministros, membros do gabinete ou outras altas autoridades do Poder Executivo). Não inclui membros do legislativo/parlamento. Pode incluir militares, desde que façam parte de uma junta militar governante. |
Golpe com Apoio Estrangeiro (Foreign-backed Coup) | Golpes em que uma potência estrangeira é a força motriz do evento. Em muitos casos, essa potência atua em colaboração com atores domésticos para remover o líder em exercício e instalar um governo alinhado a seus interesses. |
Auto Golpe (Auto Coup) | Golpes em que o chefe do Executivo existente toma medidas extremas para eliminar ou neutralizar outros poderes do governo (legislativo, judiciário etc.). Inclui situações em que o chefe do Executivo assume poderes extraordinários de forma ilegal ou extralegal, além das medidas excepcionais previstas na constituição. |
Renúncia Forçada (Forced Resignations) | Golpe brando em que não há deposição formal do chefe do Executivo. O líder renuncia sob ameaça iminente de remoção ilegal ou extralegal. Se a ameaça de remoção ocorrer por meios legais previstos na constituição, não se trata de renúncia forçada (ex.: renúncia do presidente Nixon em 1974). |
Revolta Popular (Popular Revolt) | Mudança irregular de regime motivada por insatisfação popular em larga escala, expressa por grandes protestos ou distúrbios civis. Ocorre quando uma rebelião popular de grande escala derruba o líder vigente, força sua renúncia ou leva elites a usar meios extralegais para promover a mudança e acalmar a população. Não é revolta popular quando as elites derrubam governantes “brandos” para justificar a repressão. |
Contragolpe (Counter Coup) | Golpe no qual a liderança instalada pelo golpe anterior é removida por membros do regime anterior dentro de um mês após o golpe inicial. |
Outros (Other) | Categoria residual usada quando os iniciadores não se enquadram nas categorias anteriores (militar, rebelde, dissidente etc.) ou quando não é possível identificar os atores do golpe. |
Marcelo de Almeida Medeiros é professor titular do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal de Pernambuco (DCP/UFPE) e Pesquisador PQ-1C do CNPq. Dalson Britto Figueiredo é professor associado do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal de Pernambuco (DCP/UFPE) e Pesquisador PQ-C do CNPq.
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